sexta-feira, 18 de março de 2011

Para uma economia política das carreiras jurídicas

Praticamente todas as faculdades de Direito já iniciaram suas atividades nesse ano de 2011 (muitas inclusive antes do feriado de Carnaval), e é comum a organização de uma recepção aos calouros, geralmente com aulas magnas, semanas acadêmicas, palestras, recepções, oficinas etc. Sendo assim, um dos temas mais abordados nessas atividades é o das chamadas “carreiras jurídicas”, isto é, de que forma um bacharel em Direito pode se inserir no “mundo do trabalho jurídico” quando tiver em suas mãos o famigerado diploma.

Interessante a postura dos grupos políticos no movimento estudantil de Direito em relação a esse tema. A turma mais conservadora tende a restringir suas semanas jurídicas a essa pauta (mesclada com incompreensíveis palestras sobre o efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores, ou o papel da tutela inibitória no Estado Democrático de Direito etc etc), apresentando-a obviamente de forma despolitizada e, não raro, buscando seduzir os novos colegas para um sentimento de poder que supostamente emanaria das “autoridades jurídicas”. Já a turma da esquerda não raro torce o nariz para essa pauta, que no máximo admite estar em um mirrado e desorganizado painel para fins de “desencargo da consciência” e para “agradar” ao ansioso e aflito público em busca de uma luz nessa tão angustiante questão.

O resultado disso é que um tema tão sensível, inclusive para nós da AJP, se torna geralmente refúgio ideológico dos defensores do status quo (geralmente sob o surrado argumento da “neutralidade”), e não é devidamente apreendido por aqueles que querem empenhar seus conhecimentos e sua atuação jurídica nas causas populares, mas não sabem bem como nem onde, dada a falta de oportunidades. Então, para tentar resgatar a politização inerente ao tema (que já é em si político), faço aqui uma singela pro-vocação, desde a perspectiva da crítica da economia política, sobre o tema das carreiras jurídicas. Desnecessário dizer que outras perspectivas de abordagem (como da sociologia, da ciência política, da antropologia etc) são igualmente válidas e necessárias para a recomposição da questão dentro da totalidade concreta, já que sua divisão em “gavetas do conhecimento” em geral mais atrapalham do que ajudam.

O trabalho jurídico é um produto histórico do desenvolvimento da divisão social do trabalho, cuja primeira etapa foi a divisão sexual (com a consequente ascensão da forma de dominação do patriarcado), e que depois se configurou como divisão intelectual (que fez preponderar o trabalho intelectual – dos padres, ideólogos, políticos etc – ao trabalho manual) ao qual é concomitante a divisão entre campo e cidade (sob o domínio cada vez maior desta). É importante enfatizar esse ponto inicialmente para compreender a historicidade da atividade jurídica, que não existiu desde sempre e nem existirá para sempre. Trata-se de um fenômeno histórico específico de uma determinada fase da divisão social do trabalho.

Na formação social capitalista (conceito que tomo emprestado de Samir Amin, e que reúne em si uma série de modos de produção na qual prepondera o Capital), a divisão social do trabalho é aprofundada com a separação cada vez mais absoluta entre trabalhadores de um lado, e meios de produção de outro, sob a propriedade da burguesia industrial, latifundiária, financeira etc. Isso traz evidentes reflexos para o trabalho jurídico, que se insere nessa estrutura de forma tão complexa quanto peculiar.


Teoria do valor-trabalho: o que o “mundo do trabalho jurídico tem a ver com isso”?

Para compreender a especificidade do trabalho jurídico, deve ficar claro que a base da economia do atual sistema-mundo capitalista encontra-se descrita na chamada “teoria do valor-trabalho”, cuja fundamentação concreta foi dada pela primeira vez por David Ricardo (inspirado em pistas dadas por Adam Smith e a escola fisiocrática francesa), e que foi retomada e aprofundada por Marx, que a partir dela descobriu o grande segredo e base de funcionamento da economia capitalista: a extração da mais-valia do trabalhador assalariado. Segundo estes autores, todo valor econômico é produzido pelo trabalho, que, como atividade essencialmente humana, incide sobre a natureza para modificá-la e assim obter valores de uso, isto é, bens úteis à existência humana nos mais diversos sentidos.

O fato de todo valor econômico ser produzido pelo trabalho não significa que todo trabalho na sociedade capitalista produza valor. É que, dentre as 4 atividades econômicas necessárias à reprodução social (produção, distribuição, reprodução/manutenção social, consumo), nem todas são trabalho (é o caso do consumo), e nem todas produzem novos valores de uso que se convertam em valores de troca (caso do trabalho na distribuição e na reprodução/manutenção social). Dessa forma, temos a distinção entre trabalho produtivo (que fornecerá todos os valores econômicos que circulam na sociedade, e que são produzidos não apenas na forma de bens, mas também – e cada vez mais – enquanto serviços) e trabalho improdutivo, dentro do qual, em geral (ou seja, admitindo algumas exceções que devem ser tratadas a parte), se insere o trabalho intelectual em geral, e portanto também o trabalho jurídico.

O trabalho improdutivo não significa que se trate de um trabalho inútil ou desnecessário à reprodução social, e isso é fácil de compreender em virtude de sua importância cada vez maior numa sociedade em que a produtividade do trabalho (produtivo) possibilita o desenvolvimento cada vez maior de novas modalidades de trabalho improdutivo, porém essenciais nas tarefas de distribuição de bens e serviços, e na manutenção e reprodução da atual estrutura social. Isso significa que, por mais importante que seja o trabalho jurídico, ele não se sustenta por si só, pois depende do trabalho produtivo para se desenvolver.


Salário, preço e lucro no “mundo do trabalho jurídico”

O trabalho produtivo do trabalhador assalariado (dado que, na definição de Marx, trabalho produtivo na sociedade capitalista é aquele que produz mais-valia) produz o valor, que se reparte então em diversas partes que são apropriadas por sujeitos e classes distintos. O salário remunera a força de trabalho do trabalhador; a renda remunera um direito de propriedade do dono do meio de produção (terra, máquina, instalações etc) no qual o valor foi produzido; o juro remunera o capitalista usurário que emprestou dinheiro, instrumentos de trabalho e outros meios para a produção; o tributo é destinado ao Estado por mecanismos legais e um sistema institucional de cobranças; e o lucro é aquilo que “resta” ao empresário capitalista, após ter pago as matérias-primas e outros meios de produção necessários à atividade econômica. No caso das economias dependentes, há ainda mecanismos intensamente explorados como as remessas de lucros, pagamento de royalties e outros mecanismos que se relacionam com a chamada “troca desigual”, discutida tanto por autores terceiro-mundistas como Ruy Mauro Marini (já devidamente apresentado neste blogue), Theotônio dos Santos, André Gunder Frank, Samir Amin, até autores críticos do centro do atual sistema-mundo, como Ernest Mandel e Arrighi Emmanuel.

Afora o pagamento das matérias-primas e meios de trabalho, além do salário do trabalhador, tudo o mais (rendas, juros, tributos, lucro, troca desigual) são formas concretas de apropriação da mais-valia extraída do trabalhador. Mas de qual dessas fontes o trabalho jurídico se remunera nessa repartição? Creio que a resposta é: de todas elas!

Os servidores estatais (magistrados, membros do MP e da DP, advogados de entidades públicas, oficiais de justiça, analistas, assistentes jurídicos, técnicos administrativos etc) têm seus ordenados pagos a partir dos tributos recolhidos pelo Estado. Os advogados das empresas (ou de escritórios contratados por elas) e das diferentes frações da classe burguesa são remunerados a partir das formas pelas quais estas acessam a mais-valia (juros no caso de bancos, financeiras, agiotas etc; lucro no caso de empresas produtoras de bens ou prestadoras de serviços; renda no caso de imobiliárias e proprietários de imóveis urbanos ou rurais; troca desigual no caso das empresas transnacionais, organismos internacionais e em alguns casos até mesmo fundos de “apoio” aos países dependentes). Há ainda os advogados contratados pelos trabalhadores, que pagam pelos serviços jurídicos prestados com seus salários – o que, aliás, nem sempre é possível, dado que geralmente o trabalho jurídico é muito caro para o mirrado salário do trabalhador, cuja função em geral é apenas de proporcionar a manutenção da força de trabalho. Sob tais condições, muitas vezes o jeito é apelar para as defensorias públicas (isto é, nos Estados em que elas efetivamente existem, e é por isso que se insurge o povo do Paraná nesse momento).

A AJP, como sabemos, presta seus serviços legais (tanto tradicionais quanto alternativos, usando a denominação de Celso Campilongo) à classe-que-vive-do-trabalho e também ao campesinato, além de populações tradicionais que, em geral, não produzem mais-valia mas apenas valores de uso para sua própria existência. Nesse caso, a organização do trabalho jurídico depende de outras fontes, algumas mais “confiáveis” (caso de alguns fundos de solidariedade organizados por entidades ecumênicas, da classe-que-vive-do-trabalho nacional e internacional etc) e outras repletas de contradições (caso de muitos editais e apoios financeiros do Estado e de organismos e fundos internacionais), mas que obviamente não podem ser descartadas a priori.

Fica claro a partir da perspectiva da crítica da economia política que, se todos os valores econômicos produzidos na sociedade capitalista vigente são produzidos pela classe-que-vive-do-trabalho, apenas uma pequena parte é disposta por esta para a organização de serviços jurídicos para a defesa de seus interesses (e parte ainda menor se identifica com a AJP, como vemos hoje na advocacia tradicional prestada aos sindicatos, associações e confederações de trabalhadores). É irônico dizer, mas a AJP, como atividade jurídica que mais se identifica com a única classe produtora de valores, é justamente a que menos tem condições materiais para a luta política e jurídica!

Se a luta histórica da classe-que-vive-do-trabalho é pelo fim de sua exploração e a apropriação cada vez maior dos valores produzidos, rumo a uma “livre sociedade de produtores associados”, uma das facetas desse processo está no avanço do campo dos serviços jurídicos organizados com autonomia por esta classe, e prestados conforme seus interesses históricos (que perpassam, sem dúvida alguma, pelo internacionalismo e pela solidariedade com setores tão ou mais oprimidos pelo atual sistema-mundo vigente). Serviços que, evidentemente, devem ser organizados e prestados de forma a garantir cada vez mais autonomia aos trabalhadores e povos oprimidos, e não como mera repetição da burocracia jurídica criada pelas classes dominantes. Me parece perfeita a noção de presentação, discutida aqui no blogue.

Então, sempre que vier a lume a discussão sobre as carreiras jurídicas, creio que nossa tarefa é lembrar, inclusive aos colegas conservadores, que o trabalho jurídico só é possível em virtude dos valores produzidos pela classe-que-vive-do-trabalho.

Sugestões de leitura:

- Salário, preço e lucro (Karl Marx)

- O Capital em quadrinhos (K. Ploeckinger e G. Wolfram)

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