Interessante a postura dos grupos políticos no movimento estudantil de Direito em relação a esse tema. A turma mais conservadora tende a restringir suas semanas jurídicas a essa pauta (mesclada com incompreensíveis palestras sobre o efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores, ou o papel da tutela inibitória no Estado Democrático de Direito etc etc), apresentando-a obviamente de forma despolitizada e, não raro, buscando seduzir os novos colegas para um sentimento de poder que supostamente emanaria das “autoridades jurídicas”. Já a turma da esquerda não raro torce o nariz para essa pauta, que no máximo admite estar em um mirrado e desorganizado painel para fins de “desencargo da consciência” e para “agradar” ao ansioso e aflito público em busca de uma luz nessa tão angustiante questão.
O resultado disso é que um tema tão sensível, inclusive para nós da AJP, se torna geralmente refúgio ideológico dos defensores do status quo (geralmente sob o surrado argumento da “neutralidade”), e não é devidamente apreendido por aqueles que querem empenhar seus conhecimentos e sua atuação jurídica nas causas populares, mas não sabem bem como nem onde, dada a falta de oportunidades. Então, para tentar resgatar a politização inerente ao tema (que já é em si político), faço aqui uma singela pro-vocação, desde a perspectiva da crítica da economia política, sobre o tema das carreiras jurídicas. Desnecessário dizer que outras perspectivas de abordagem (como da sociologia, da ciência política, da antropologia etc) são igualmente válidas e necessárias para a recomposição da questão dentro da totalidade concreta, já que sua divisão em “gavetas do conhecimento” em geral mais atrapalham do que ajudam.
O trabalho jurídico é um produto histórico do desenvolvimento da divisão social do trabalho, cuja primeira etapa foi a divisão sexual (com a consequente ascensão da forma de dominação do patriarcado), e que depois se configurou como divisão intelectual (que fez preponderar o trabalho intelectual – dos padres, ideólogos, políticos etc – ao trabalho manual) ao qual é concomitante a divisão entre campo e cidade (sob o domínio cada vez maior desta). É importante enfatizar esse ponto inicialmente para compreender a historicidade da atividade jurídica, que não existiu desde sempre e nem existirá para sempre. Trata-se de um fenômeno histórico específico de uma determinada fase da divisão social do trabalho.
Na formação social capitalista (conceito que tomo emprestado de Samir Amin, e que reúne em si uma série de modos de produção na qual prepondera o Capital), a divisão social do trabalho é aprofundada com a separação cada vez mais absoluta entre trabalhadores de um lado, e meios de produção de outro, sob a propriedade da burguesia industrial, latifundiária, financeira etc. Isso traz evidentes reflexos para o trabalho jurídico, que se insere nessa estrutura de forma tão complexa quanto peculiar.
Teoria do valor-trabalho: o que o “mundo do trabalho jurídico tem a ver com isso”?
Para compreender a especificidade do trabalho jurídico, deve ficar claro que a base da economia do atual sistema-mundo capitalista encontra-se descrita na chamada “teoria do valor-trabalho”, cuja fundamentação concreta foi dada pela primeira vez por David Ricardo (inspirado em pistas dadas por Adam Smith e a escola fisiocrática francesa), e que foi retomada e aprofundada por Marx, que a partir dela descobriu o grande segredo e base de funcionamento da economia capitalista: a extração da mais-valia do trabalhador assalariado. Segundo estes autores, todo valor econômico é produzido pelo trabalho, que, como atividade essencialmente humana, incide sobre a natureza para modificá-la e assim obter valores de uso, isto é, bens úteis à existência humana nos mais diversos sentidos.
O fato de todo valor econômico ser produzido pelo trabalho não significa que todo trabalho na sociedade capitalista produza valor. É que, dentre as 4 atividades econômicas necessárias à reprodução social (produção, distribuição, reprodução/manutenção social, consumo), nem todas são trabalho (é o caso do consumo), e nem todas produzem novos valores de uso que se convertam em valores de troca (caso do trabalho na distribuição e na reprodução/manutenção social). Dessa forma, temos a distinção entre trabalho produtivo (que fornecerá todos os valores econômicos que circulam na sociedade, e que são produzidos não apenas na forma de bens, mas também – e cada vez mais – enquanto serviços) e trabalho improdutivo, dentro do qual, em geral (ou seja, admitindo algumas exceções que devem ser tratadas a parte), se insere o trabalho intelectual em geral, e portanto também o trabalho jurídico.
O trabalho improdutivo não significa que se trate de um trabalho inútil ou desnecessário à reprodução social, e isso é fácil de compreender em virtude de sua importância cada vez maior numa sociedade em que a produtividade do trabalho (produtivo) possibilita o desenvolvimento cada vez maior de novas modalidades de trabalho improdutivo, porém essenciais nas tarefas de distribuição de bens e serviços, e na manutenção e reprodução da atual estrutura social. Isso significa que, por mais importante que seja o trabalho jurídico, ele não se sustenta por si só, pois depende do trabalho produtivo para se desenvolver.
Salário, preço e lucro no “mundo do trabalho jurídico”
O trabalho produtivo do trabalhador assalariado (dado que, na definição de Marx, trabalho produtivo na sociedade capitalista é aquele que produz mais-valia) produz o valor, que se reparte então em diversas partes que são apropriadas por sujeitos e classes distintos. O salário remunera a força de trabalho do trabalhador; a renda remunera um direito de propriedade do dono do meio de produção (terra, máquina, instalações etc) no qual o valor foi produzido; o juro remunera o capitalista usurário que emprestou dinheiro, instrumentos de trabalho e outros meios para a produção; o tributo é destinado ao Estado por mecanismos legais e um sistema institucional de cobranças; e o lucro é aquilo que “resta” ao empresário capitalista, após ter pago as matérias-primas e outros meios de produção necessários à atividade econômica. No caso das economias dependentes, há ainda mecanismos intensamente explorados como as remessas de lucros, pagamento de royalties e outros mecanismos que se relacionam com a chamada “troca desigual”, discutida tanto por autores terceiro-mundistas como Ruy Mauro Marini (já devidamente apresentado neste blogue), Theotônio dos Santos, André Gunder Frank, Samir Amin, até autores críticos do centro do atual sistema-mundo, como Ernest Mandel e Arrighi Emmanuel.
Afora o pagamento das matérias-primas e meios de trabalho, além do salário do trabalhador, tudo o mais (rendas, juros, tributos, lucro, troca desigual) são formas concretas de apropriação da mais-valia extraída do trabalhador. Mas de qual dessas fontes o trabalho jurídico se remunera nessa repartição? Creio que a resposta é: de todas elas!
Os servidores estatais (magistrados, membros do MP e da DP, advogados de entidades públicas, oficiais de justiça, analistas, assistentes jurídicos, técnicos administrativos etc) têm seus ordenados pagos a partir dos tributos recolhidos pelo Estado. Os advogados das empresas (ou de escritórios contratados por elas) e das diferentes frações da classe burguesa são remunerados a partir das formas pelas quais estas acessam a mais-valia (juros no caso de bancos, financeiras, agiotas etc; lucro no caso de empresas produtoras de bens ou prestadoras de serviços; renda no caso de imobiliárias e proprietários de imóveis urbanos ou rurais; troca desigual no caso das empresas transnacionais, organismos internacionais e em alguns casos até mesmo fundos de “apoio” aos países dependentes). Há ainda os advogados contratados pelos trabalhadores, que pagam pelos serviços jurídicos prestados com seus salários – o que, aliás, nem sempre é possível, dado que geralmente o trabalho jurídico é muito caro para o mirrado salário do trabalhador, cuja função em geral é apenas de proporcionar a manutenção da força de trabalho. Sob tais condições, muitas vezes o jeito é apelar para as defensorias públicas (isto é, nos Estados em que elas efetivamente existem, e é por isso que se insurge o povo do Paraná nesse momento).
A AJP, como sabemos, presta seus serviços legais (tanto tradicionais quanto alternativos, usando a denominação de Celso Campilongo) à classe-que-vive-do-trabalho e também ao campesinato, além de populações tradicionais que, em geral, não produzem mais-valia mas apenas valores de uso para sua própria existência. Nesse caso, a organização do trabalho jurídico depende de outras fontes, algumas mais “confiáveis” (caso de alguns fundos de solidariedade organizados por entidades ecumênicas, da classe-que-vive-do-trabalho nacional e internacional etc) e outras repletas de contradições (caso de muitos editais e apoios financeiros do Estado e de organismos e fundos internacionais), mas que obviamente não podem ser descartadas a priori.
Fica claro a partir da perspectiva da crítica da economia política que, se todos os valores econômicos produzidos na sociedade capitalista vigente são produzidos pela classe-que-vive-do-trabalho, apenas uma pequena parte é disposta por esta para a organização de serviços jurídicos para a defesa de seus interesses (e parte ainda menor se identifica com a AJP, como vemos hoje na advocacia tradicional prestada aos sindicatos, associações e confederações de trabalhadores). É irônico dizer, mas a AJP, como atividade jurídica que mais se identifica com a única classe produtora de valores, é justamente a que menos tem condições materiais para a luta política e jurídica!
Se a luta histórica da classe-que-vive-do-trabalho é pelo fim de sua exploração e a apropriação cada vez maior dos valores produzidos, rumo a uma “livre sociedade de produtores associados”, uma das facetas desse processo está no avanço do campo dos serviços jurídicos organizados com autonomia por esta classe, e prestados conforme seus interesses históricos (que perpassam, sem dúvida alguma, pelo internacionalismo e pela solidariedade com setores tão ou mais oprimidos pelo atual sistema-mundo vigente). Serviços que, evidentemente, devem ser organizados e prestados de forma a garantir cada vez mais autonomia aos trabalhadores e povos oprimidos, e não como mera repetição da burocracia jurídica criada pelas classes dominantes. Me parece perfeita a noção de presentação, discutida aqui no blogue.
Então, sempre que vier a lume a discussão sobre as carreiras jurídicas, creio que nossa tarefa é lembrar, inclusive aos colegas conservadores, que o trabalho jurídico só é possível em virtude dos valores produzidos pela classe-que-vive-do-trabalho.
Sugestões de leitura:
- Salário, preço e lucro (Karl Marx)
- O Capital em quadrinhos (K. Ploeckinger e G. Wolfram)
Nenhum comentário:
Postar um comentário