Na 3ª parte do artigo de Diego Diehl intitulado "O Brasil à
beira de um golpe de Estado de novo tipo", são analisados
alguns elementos centrais da conjuntura geopolítica internacional, e
também da conjuntura brasileira que evidenciam um pouco da
"essência" dos interesses de classe que movimentam a atual
escalada golpista no nosso país. Essas forças golpistas buscam
utilizar o Direito como ferramenta de legitimação do golpe
midiático-jurídico-parlamentar, como foi visto na parte 2.
***
3. Da aparência à essência do “golpe de Estado de novo tipo”:
a conjuntura política que movimenta as instituições
jurídico-políticas
Qualquer tentativa de analisar a conjuntura da crise brasileira
atual que não tome como ponto de partida o cenário geopolítico
internacional se equivoca tremendamente (em sua “dialética social
do direito”, Lyra Filho falava na “sociedade internacional”
como ponto de partida para qualquer análise sócio-jurídica). O
Brasil está longe de ser o “país campeão da corrupção” como
a narrativa conservadora procura afirmar, ainda que saibamos que o
capitalismo brasileiro (como toda formação social capitalista) é
marcado de forma
estrutural pela “corrupção” (que nada mais é
que a violação das normas jurídicas em prol de benefícios
pessoais, quase sempre de caráter econômico). É da geopolítica
internacional e de sua conjuntura atual que temos necessariamente que
partir para compreender a crise brasileira.
3.1. A conjuntura política internacional: reascenso da China,
decadência dos EUA e o início da “guerra fria 2.0”
Com a eleição de Lula em 2003, o Brasil começa um lento
movimento de (relativo) afastamento da influência geopolítica dos
EUA e busca formatar novas parcerias geopolíticas como player
autônomo no cenário mundial. O mundo vive hoje o
avassalador
retorno da
maior potência civilizacional da história da Humanidade:
a China, civilização mais poderosa dos últimos 3000 anos e que
apenas foi submetida a um período de dependência pelos “ocidentais”
nos últimos 200 anos. Ao mesmo tempo, vemos hoje a
crise – e quiçá
a
decadência – cada vez mais profunda (em termos econômicos,
políticos, ideológicos, culturais etc) da
maior potência bélica
da história: os EUA.
Na nova inserção internacional do capitalismo brasileiro a
partir de 2003, o Brasil volta-se à China, África e América
Latina, e isso se reflete na formação dos BRICS. O papel do Brasil
nos BRICS tem sido formatado como fornecedor de
commodities
(basicamente petróleo do pré-sal, minérios, grãos, celulose,
carne etc) sobretudo ao
capitalismo de Estado da China, o que se
reflete em diversos projetos de infra-estrutura que foram financiados
pelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), em rodadas de
concessões e realização de PPPs (parcerias público-privadas) que
vão entregando o controle de setores estratégicos da economia
brasileira ao capital chinês, substituindo a dependência dos EUA
por um novo tipo de dependência (cujas características estão ainda
em processo de discussão e não serão analisadas neste texto).
Muitos analistas internacionais (Pepe Escobar por exemplo) já
falam em uma
“Guerra Fria 2.0”, que será
muito mais difícil
para o capitalismo ocidental pois agora o “outro lado” é
mais
estruturado e dinâmico que a antiga União Soviética: a
China
realizou nos últimos 30 anos
as 3 etapas da Revolução Industrial
(mecânica, química e informacional)
de uma só vez, configurando-se
atualmente como a “fábrica do mundo” (crescendo 14% ao ano e
reduzindo agora seu crescimento a “apenas” 7%, de forma planejada
sob a indução estatal); a
Rússia se reunificou em torno de um
projeto nacionalista e se vale de todo o poderio bélico da ex-URRS
para fazer frente aos EUA como “polícia do mundo” (basta ver os
casos da Ucrânia e agora da Síria); o
Irã constituiu um
nacionalismo islâmico que se mostra como alternativa aos povos
árabes diante da política estadunidense de “dividir para
dominar”; a
Índia afasta-se paulatinamente da influência
geopolítica “ocidental” a partir de um projeto também
nacionalista que começa a estabelecer parcerias estratégicas com a
China; os chamados “governos progressistas” na
América Latina se
aproximam deste novo bloco geopolítico que emerge no início do séc.
XXI.
Nesse cenário, o papel do Brasil e da América Latina em geral é
colocado como de grande fornecedor de matérias-primas básicas para
as potências hegemônicas que disputam o controle do mundo. Por
isso, é de
total interesse dos EUA que o Brasil reverta sua
orientação geopolítica atual, realinhando-se à velha dependência
que marcou desde sempre (1500, ou 1492) a nossa existência enquanto
nação colonizada, voltando a ser fornecedora preferencial de
commodities às empresas transnacionais do bloco ocidental, dirigido
pelos EUA.
No entanto essa mudança de orientação não pode mais se dar por
meio de golpes militares como ocorrera no período anterior em toda a
América Latina. Os militares saíram de cena e o “golpe de Estado
de novo tipo” depende agora de uma outra “corporação” para a
sua legitimação: essa corporação é a dos
juristas, e o argumento
jurídico utilizado é o
“combate à corrupção”. Para isso, o
Departamento de Estado dos EUA e alguns dos principais
think tanks do
pensamento jurídico estadunidense (com destaque para a
Harvard Law
School) realizam cursos, promovem “consultorias” e atuam no
sentido de formatar o sistema jurídico brasileiro (normas jurídicas,
instituições, formação de agentes
etc) para o “combate à
corrupção”. São públicas e já conhecidas as informações
sobre as parcerias do MPF com as autoridades estadunidenses; que
juízes como Sérgio Moro realizaram cursos de formação ofertados
por estes centros
etc.
Com isso os interesses geopolíticos dos EUA são introduzidos no
"campo jurídico" dos países dependentes. A
colonialidade
do poder e do saber jurídico, no caso do Direito brasileiro, se
configuram hoje por meio do seu alinhamento com instituições
jurídicas do modelo estadunidense, sobretudo em campos como o
Direito Constitucional (praticamente adotando hoje – de forma
anti-democrática – o modelo de construção jurisprudencial do
Direito por meio do controle de constitucionalidade) e o
Direito
Penal (que assimilará figuras como o “terrorismo” enquanto tipo
penal, instituirá as “delações premiadas”, acordos de
leniência de empresas
etc). Ademais, o “realismo jurídico”
estadunidense ensinará aos juristas brasileiros sobre a necessidade
de contato da atuação das instituições jurídicas com a “opinião
pública”, para que suas ações de “combate à corrupção”
tenham êxito. Isso exige a mobilização (por partes dessas
instituições jurídicas e de seus agentes) de
redes sociais (fator
que se tornou importante desde junho de 2013, como veremos adiante),
além de uma atuação em simbiose com a
mídia hegemônica, que é o
ator
central do golpe.
Como foi dito anteriormente, o “golpe de Estado de novo tipo”
é um golpe midiático-jurídico-parlamentar. É portanto em
primeiríssimo lugar um golpe
midiático, pois quem contrói a agenda
de legitimação da atuação das instituições jurídico-políticas
é a mídia dominante (aquilo que se convencionou chamar de “Partido
da Imprensa Golpista” - PiG,
alinhado aos interesses geopolíticos
dos EUA). Esta mantém uma relação promíscua com órgãos e
agentes de Estado, que promovem vazamentos seletivos de informações
que vão construindo uma agenda de denúncias que vai minando
sistematicamente as bases de apoio do governo, liquidando reputações,
legitimando prisões preventivas inconstitucionais, que são
utilizadas como elemento de coação psicológica para a realização
de “delações premiadas”. Estas, por sua vez, são tomadas como
“verdades em si” e argumentos jurídicos suficientes para
sustentar acusações que visam dar sustentação legal ao
impeachment.
Quem promove portanto internamente, perante a sociedade nacional,
o “golpe de Estado de novo tipo” no plano ideológico e de
conformação dessa agenda política é a mídia burguesa (em
especial a
Rede Globo). Os juristas (sobretudo da Polícia Federal,
Ministério Público, Poder Judiciário, e agora também a OAB)
contribuem com os
argumentos jurídicos que pretendem conferir
legitimidade jurídica ao “golpe de Estado de novo tipo”. E os
parlamentares valem-se da atuação da mídia e dos argumentos
construídos pelos juristas para sacramentar um
impeachment já
decidido de antemão, mas que precisava de fundamentos jurídicos
sólidos para não ser considerado como um golpe de Estado.
Nesse cenário, o Direito se torna a arena
central de disputa
quanto ao caráter
golpista ou
constitucional do processo de
impeachment em curso. De fato, se houvesse argumentos jurídicos
suficientes, não poderíamos denominar o processo em curso como um
golpe. Porém, como não há crime de responsabilidade configurado, e
como as garantias constitucionais não estão sendo respeitadas neste
processo, já podemos dizer de antemão que estamos diante de um
“golpe de Estado de novo tipo”, cujas condições sociais
internas passaram a ser viabilizadas a partir de
junho de 2013.
3.2. A conjuntura política nacional: a implosão da “Nova
República” desde junho de 2013 até o processo de impeachment de
2016
As mobilizações de
junho de 2013 lançaram o Brasil num novo
patamar da luta de classes, colocando em crise um conjunto de fatores
que estruturavam o grande consenso das elites brasileiras e que
estava materializado na
“Nova República”, arquitetada pelas
classes dominantes como resultado de uma transição “lenta, segura
e gradual” em relação à ditadura empresarial-militar. É preciso
em primeiro lugar compreender a arquitetura política (e também
jurídica) da “Nova República” para entender então o caráter
da crise brasileira atual.
O período ditatorial (1964-1985) teve o papel de atualizar o
padrão de
dependência da economia e da sociedade brasileira ao
imperalismo estadunidense, liquidando com a tentativa de
desenvolvimento autônomo de um capitalismo nacional baseado na
reforma agrária, no aumento da massa salarial (consolidando um
mercado de consumo de massa), na contenção das remessas de lucros
ao exterior e no impulso à industrialização e à modernização do
Estado brasileiro (que estava em pleno processo de estruturação no
governo João Goulart, por meio de seu Ministro do Planejamento, o
professor Celso Furtado). Em lugar deste projeto (que nada tinha de
“comunista”, como se percebe) foi instituída uma
“modernização
conservadora”, que apostou na indústria de base (sobretudo
petrolífera), no impulso do agronegócio, na financeirização da
economia e na atração de multinacionais para o Brasil a partir de
benefícios fiscais e da baixa remuneração dos trabalhadores
brasileiros (o conceito de “superexploração” de Rui Mauro
Marini).
No plano
ideológico, a legitimação da ditadura se deu por meio
da formação de um grande conglomerado privado de comunicações que
funcionava na prática como canal de televisão oficial do governo
militar: a
Rede Globo de Televisão foi estruturada como uma grande
rede nacional a partir de benefícios fiscais concedidos pelo
governo, empréstimos a juros favoráveis, concessões não onerosas,
ocupações irregulares (porém toleradas) de terrenos públicos e
uso não remunerado de antenas e transmissores do sistema nacional de
telecomunicações. Com isso, a ditadura promovia não apenas a
legitimação do regime, mas também a
integração nacional a partir
da construção de uma narrativa unificada, ditada por Roberto
Marinho.
No entanto, na perspectiva das elites dominantes, mais cedo ou
mais tarde os militares teriam que sair de cena e uma nova ordem
jurídico-constitucional teria que ser estruturada, sob a direção
dos partidos da oposição civil burguesa à ditadura. Essa direção
foi dada pelo único partido político de oposição reconhecido pelo
governo ditatorial: o
MDB, que reuniu diversos caudilhos liberais dos
Estados brasileiros em torno de uma complexa federação partidária,
sob a direção de grupos distintos como o de Ulysses Guimarães, o
de Tancredo Neves, o de Orestes Quercia, além de setores que aderiam
ao MDB no fim da ditadura, provenientes do partido oficial do regime
(a ARENA, de onde migrou José Sarney e seu grupo político).
A “Nova República”, iniciada em 1985 com a eleição indireta
de Tancredo Neves e José Sarney para a Presidência e
Vice-Presidência da República, tinha os seguintes compromissos
fundamentais: convocação de uma
assembleia constituinte para a
estruturação de um novo sistema constitucional tido como
democrático pela sociedade nacional e internacional; garantia da
manutenção de compromissos assumidos pela ditadura e de seus
interesses por meio da manutenção de Ministros nomeados pela
ditadura em postos-chave do Poder Judiciário, dos chamados
“Senadores biônicos” e outras fórmulas artificiais
estabelecidas pelos militares como condição para “retornar aos
quartéis”;
manutenção do monopólio das telecomunicações como
forma de garantia dos interesses dessas classes dominantes no plano
ideológico, sobretudo em virtude dos perigos trazidos pelo
reascenso
das lutas populares representada pelas greves operárias do ABC
paulista, pelo renascimento do movimento camponês e pelo
fortalecimento do movimento popular, da teologia da libertação e
das comunidades eclesiais de base.
A chamada
“Constituição Cidadã” de Ulysses Guimarães é
portanto o grande pacto jurídico-político fundamental que estrutura
as bases da “Nova República”. Por mais que seja, em toda a
história constitucional brasileira, uma das leis fundamentais mais
democráticas, legítimas e progressistas que já se teve, a CF/1988
traz consigo todas as
contradições do contexto da “Nova
República”, que teve e segue tendo hoje como partido dirigente o
PMDB. Desde o início da “Nova República”, os 2 únicos momentos
em que o PMDB não foi governo no plano federal foram no período
Collor (que terminou com o
impeachment) e nos 2 primeiros anos do
governo Lula (que só não terminou em
impeachment na famosa “crise
do mensalão” porque, para sobreviver, Lula negociou a entrada do
PMDB no governo, trocando cargos e verbas públicas em Ministérios e
empresas estatais em troca de apoio político no Congresso Nacional).
Desde o fim da crise política do “Mensalão” (com a entrada
do PMDB no governo) e a reeleição de Lula em 2006, parecia que o
clima de estabilidade política seria duradouro. O Brasil viveu nesse
período sua efêmera “era de ouro”, com a implementação do
PAC, a alta do preço das
commodities no mercado internacional, o
forte crescimento do PIB (puxado sobretudo pelo consumo interno,
especialmente no contexto da rápida recuperação em relação à
crise econômica de 2008) etc. Porém rapidamente o cenário começa
a mudar, e o momento simbólico que inicia o processo de
corrosão
das
bases políticas da “Nova República” será, sem sombra de
dúvidas, as mobilizações de
junho de 2013.
As jornadas de junho de 2013 começaram como pequenas mobilizações
da chamada “oposição de esquerda”, além da esquerda anarquista
e autonomista. Enquanto a oposição de esquerda (sobretudo PSOL e
PSTU) impulsionava as mobilizações contra os gastos promovidos pelo
governo federal com megaeventos como a Copa das Confederações
(dentro dos Comitês Populares da Copa), o movimento anarquista e
autonomista impulsionava os protestos contra os aumentos de passagens
de ônibus por meio do Movimento Passe Livre (MPL). Como os aumentos
de tarifas ocorreram em praticamente todas as capitais brasileiras no
início de junho de 2013, ambas as lutas acabaram confluindo num
momento em que o Brasil se tornava o centro das atenções na
imprensa internacional em virtude do início da Copa das
Confederações.
Apesar de significativas, as mobilizações não eram no entanto
massivas nesse primeiro momento. A mídia dominante, como sempre,
tratava de rotular a militância como “baderneira” e se
posicionava contra os protestos. No entanto, como que num “passe de
mágica”,
de um dia para outro 2 novos fatores surgem e serão
decisivos para a grande mobilização que viria em seguida: 1º o
surgimento de
novas pautas que passaram a mobilizar sobretudo setores
da juventude de classe média e da pequena burguesia, chegando até
alguns setores da juventude beneficiada por programas como o PROUNI,
mobilizados às ruas por pautas ligadas ao
combate à corrupção
(sobretudo uma misteriosa “PEC 37”, sobre a qual voltarei na
sequência); e 2º uma
mudança de atitude da mídia, que passou a
apoiar as manifestações e a realizar coberturas abrangentes, em
tempo real, buscando estimular a participação da juventude e
direcionar sua revolta contra o governo federal.
Esse novo momento é aquele que produziu toda a massificação das
“jornadas de junho”, e é o momento mais conhecido desse
processo. Quem esteve nas ruas neste período sabe bem que a
mobilização estava longe de ter um conjunto definido de bandeiras
de luta, um programa de reivindicações ou qualquer liderança que
tivesse a legitimidade para negociar pautas que representassem
resultados concretos daquelas manifestações. Junho de 2013 foi um
momento de catarse da juventude brasileira, insatisfeita com os
avanços insuficientes ocorridos no Brasil no período “lulista”,
porém sem uma consciência política e histórica formadas para além
dos discursos convencionais da mídia e das redes sociais.
Um ator que pode ser considerado decisivo para a mobilização da
juventude em junho de 2013, mas que até hoje não havia sido
devidamente caracterizado como força política, como “fator real
de poder” que emergiu no atual período histórico, é o
Ministério
Público. É notório a todos aqueles que participaram das jornadas
de junho de 2013 que pautas até então
completamente desconhecidas,
como a famigerada
“PEC 37” (que pretendia retirar os poderes
constitucionais de investigação criminal do Ministério Público),
levaram uma
grande quantidade de jovens da classe média às ruas
mobilizada pelo tema do “combate à corrupção”. Como isso foi
possível?
Certamente, tal agenda não foi estabelecida por “geração
espontânea”. Ainda há que se confirmar os modos como tal processo
se deu, mas parece cada vez mais forte a evidência de que
grupos
internos do Ministério Público (e especialmente do Ministerio
Público Federal), passaram a construir
ferramentas de mobilização
política e instituição de redes de influência, de modo que suas
agendas corporativas próprias passassem a reverberar na sociedade. E
a principal ferramenta de mobilização utilizada foram as
redes
sociais. Como resultado, a PEC 37 foi imediatamente arquivada no
Congresso Nacional, e o Ministério Público compreendeu que a
mobilização da “opinião pública” era uma ferramenta
fundamental que deveria ser explorada de forma concomitante às ações
jurídicas propriamente ditas (algo que nós da AJP já sabemos há
muito tempo e fazemos a partir das mobilizações dos movimentos
sociais).
Diante da crise de junho de 2013, a presidenta Dilma Roussef veio
a público com 5 propostas para atender uma pequena mas importante
parte das reivindicações das ruas. Uma delas, certamente a mais
estrutural e estratégica de todas, era a convocação de uma
Assembleia Constituinte exclusiva para a realização de uma profunda
reforma política, dado que a CF/1988 (não por acaso) atribui de
forma exclusiva ao Congresso Nacional a competência normativa sobre
o tema. O resultado foi que, em
menos de 24 horas, diante das
pressões e chantagens do
PMDB (sobretudo o ultimato do
vice-presidente Michel Temer), a proposta teve que ser descartada,
pois afetava de forma estrutural as bases políticas da “Nova
República”.
Diferente portanto de análises que afirmam que junho de 2013
representou uma crítica ao “lulismo”, na verdade essas
mobilizações colocaram na agenda política nacional algo muito mais
profundo: trata-se da
dissolução dos elementos estruturais da
chamada “Nova República”. Diferente do que muitos analistas
acreditam, a “Nova República” não se refere apenas àquele
período de transição até um novo regime constitucional
caracterizado pelo governo Sarney. A “Nova República” iniciada
em 1985
perdura até hoje, e são seus
fundamentos centrais que estão
em
crise desde
junho de 2013.
A “Nova República” estabeleceu seus fundamentos na CF/1988,
sendo alguns de seus elementos centrais:
- a manutenção de uma economia capitalista, garantida pelas
instituições jurídico-políticas que protegem a propriedade
privada e monopolista dos meios de produção;
- a manutenção de uma economia dependente, impedindo que o
Estado atuasse de forma direta em determinados setores da economia
nacional, como fizera anteriormente Getúlio Vargas ao criar empresas
estatais estratégicas (como a Petrobrás, CSN, Fábrica Nacional de
Motores etc). Tudo o que a CF/88 autoriza é o papel “regulamentador”
ou “fiscalizador” do Estado, mas que não pode “competir” em
atividades econômicas pois isto geraria “desequilíbrios”
(segundo os economistas neoliberais) na economia nacional. Com isso,
o principal agente de promoção do desenvolvimento econômico numa
economia dependente como o Brasil, que é o próprio Estado, passou a
ser proibido de se valer de diversas ferramentas de atuação,
condenando o Brasil a passar por um lento mas sistemático processo
de desindustrialização desde o início da “Nova República”;
- a manutenção dos privilégios corporativos atribuídos a
instituições provenientes da ditadura e que não passaram por
processos internos de democratização, como o Poder Judiciário, o
Ministério Público, a Polícia Federal, as Polícias Civis e
Militares, as Forças Armadas etc. Essa medida resultou numa espécie
de “pacto” destas instituições com as forças políticas
dominantes, que puderam governar o país durante todo o período
seguinte sem serem acossadas por investigações, denúncias e
responsabilização jurídica por irregularidades que ocorrem de
forma estrutural em todos os âmbitos da Administração Pública
(municipal, estadual, distrital e federal);
- A instituição de uma democracia de “baixa intensidade”,
limitada quase que exclusivamente à representação política e à
competição entre os partidos políticos sem qualquer limite
estabelecido à influência do poder econômico e midiático nas
eleições;
- A manutenção do oligopólio dos meios de comunicação;
- A afirmação de um conjunto amplo de direitos fundamentais
para legitimar a Constituição da "Nova República", mas
que não confere ferramentas institucionais para “tirá-los do
papel” (ex: o direito a reforma agrária existe na CF88, mas não
pode ser realizado pois há o dever de indenizar os proprietários, o
que inviabiliza a política pública no plano orçamentário).
Muitos outros elementos poderiam ser destacados como estruturantes
da Constituição da “Nova República”, cujas
contradições
decorrem de
suas próprias bases políticas, que se encontram
atualmente numa crise que, muito provavelmente, é
terminal. Qualquer
que seja o desfecho da atual crise brasileira, é certo que aquele
grande
“consenso social” que estruturara a “Nova República”
(da qual também participaram os trabalhadores, gostemos disso ou
não) está esgotado, e seu resultado será, de uma forma ou de
outra, o
fim da Constitução da “Nova República”. Vejamos
brevemente as razões dessa conclusão:
- caso o impeachment seja derrotado, a maior parte do PMDB se
encontrará na oposição ao governo Dilma e seguirá atuando junto
com as forças sociais e políticas golpistas para desgastar o
governo e o PT com o intuito de formar um novo bloco político de
orientação neoliberal, com vistas a vencer a próxima eleição
presidencial e com isso implementar um conjunto de medidas
neoliberais que representam, na prática, o fim da maior parte dos
direitos e garantias fundamentais da CF/88 (que são elementos do
pacto de classes instaurado pela “Nova República”);
- caso o impeachment ocorra, simbolicamente ter-se-á o golpe
definitivo contra a CF/88, e a implementação imediata desse
conjunto de medidas neoliberais que representam, na prática, o fim
de tais direitos e garantias fundamentais.
Dado que a classe trabalhadora brasileira (que bem ou mal foi
representada durante todo o período da “Nova República” por
Lula e pelo PT) dá sinais de que
não aceitará a destruição deste
conjunto de direitos e garantias fundamentais que
lhe atraíram para
o “pacto de classes” instaurado pela “Nova República”, o
resultado é que neste momento, taticamente, sua atuação ocorrerá
no sentido de exigir a manutenção destes direitos previstos na
CF/1988. No entanto, assim como tal Carta já não mais interessa ao
principal partido da “Nova República” (o PMDB), tampouco
interessará à massa trabalhadora no longo prazo a manutenção de
suas bases fundamentais, por seus próprios limites
estruturais. E
isso se torna mais evidente a partir do momento em que os movimentos
sociais defendem a realização de uma
Assembleia Constituinte
exclusiva para a reforma política, ou agora com propostas que
começam a ganhar força de convocação de uma
nova Assembleia
Constituinte geral, que proporcione romper com as amarras sob as
quais estávamos submetidos até então.
É evidente que existem muitos riscos no processo que está em
curso neste momento. O fim da Constituição da “Nova República”
pode levar a uma nova conformação social, jurídica e política que
não é necessariamente melhor que as condições que tínhamos até
este momento. No entanto, de nada adianta neste momento se lamentar
ou defender um "pacto social" que se esgotou. No atual
momento de crise, todas as “ilusões constitucionalistas”
(lembrando o termo utilizado por Lenin) terão que ser deixadas de
lado. Direito é “política concentrada”, e são os cenários
políticos da luta de classes que devem ser analisados.
É o que pretendemos fazer no próximo post:
4. O "golpe de Estado de novo tipo", se consolidado,
representará simbolicamente o fim da Constituição da "Nova
República". Mas o que virá depois?
5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?