quarta-feira, 13 de abril de 2016

Direito e conjuntura - Cenários possíveis com o fim da "Nova República"


No post anterior, a nova coluna "Direito e conjuntura" procurou traçar um panorama geral (bastante resumido, e por isso mesmo incompleto) da conjuntura política internacional e também nacional, buscando identificar a "essência" do "golpe de Estado de novo tipo" a partir da análise das forças sociais e políticas que confluíram para a edificação da estratégia golpista atualmente em curso no Brasil.

Neste post, a coluna faz um exercício de avaliação das condições jurídico-políticas da conjuntura brasileira no caso de uma eventual consumação do golpe midiático-jurídico-parlamentar. Para isso, busca elementos da história constitucional brasileira para avaliar possíveis desdobramentos que decorreriam do próprio caráter do golpe de Estado em curso. A hipótese aqui é de que as características de cada golpe definem as condições fundamentais do regime político instituído a partir de então.

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4. O "golpe de Estado de novo tipo", se consolidado, representará simbolicamente o fim da Constituição da "Nova República". Mas o que virá depois?
Diego Augusto Diehl

Em toda a história constitucional brasileira, a elaboração de novas Constituições ocorreu após um processo de deslegitimação da Constituição anterior, que tem sempre um ato ou momento simbólico de ruptura:
  • a Constituição Imperial de 1824 foi outorgada por D. Pedro I a partir de um golpe que fechou a Assembleia Constituinte em novembro de 1823;
  • a Constituição Republicana de 1891 foi produzida após o golpe militar que instituiu a República em 1889;
  • a Constituição social de 1934 foi promulgada após a dissolução da ordem constitucional anterior com a chamada “Revolução de 1930” encabeçada por Getúlio Vargas, que logo na sequencia, em 1937, rompeu com a ordem constitucional a partir do golpe do Estado Novo, e outorgou nova “lei fundamental” no mesmo ano;
  • a Constituição democrática de 1946 foi fruto do cenário geopolítico mundial instituído com o fim da 2ª Guerra Mundial no ano anterior, que contribuiu para o esgotamento das condições internas da ditadura do “Estado Novo”;
  • as Constituições ditatoriais de 1967 e 1969 foram outorgadas pelos militares após a ruptura com a ordem constitucional em virtude do golpe de 1º de abril de 1964;
  • a Constituição da “Nova República”, promulgada em 1988, foi o produto do grande “pacto de classes” materializado em 1985 na eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney (que não deixou de ser um “golpe”, neste caso contra o movimento das “Diretas Já”).

Desde essa perspectiva histórica talvez seja mais fácil perceber que não se trata de mero “exagero” falar no fim da CF/1988 no caso de o impeachment da Presidenta da República ocorrer neste momento, sem a presença de crime de responsabilidade cometido em mandato atual, vindo portanto a romper com os preceitos estabelecidos pela Constituição vigente. O golpe midiático-jurídico-parlamentar, se ocorrer, representará mais um momento de ruptura institucional na história do Brasil, e há que se compreender que o próprio sentido social, político e ideológico de cada uma dessas rupturas que ocorreram ao longo da história brasileira ditaram as características do novo regime que viria a seguir: de um golpe republicano produziu-se o regime republicano liberal da “República Velha”; de um golpe fascista produziu-se talvez a mais violenta ditadura que o Brasil já viu no chamado “Estado Novo”; de um golpe encabeçado pelos militares surgiu uma ditadura militar.

O que viria após um golpe midiático-jurídico-parlamentar, que é o que se está gestando hoje? Muito provavelmente, uma ditadura da mídia dominante (reconciliada com o governo e muito bem remunerada por isso, responsável pelo linchamento moral da esquerda e pela definição da agenda política e jurídica nacional), combinada com uma espécie de “ditadura judicial” (na qual tudo e todos estão constantemente sob suspeição e ameaçados por grampos, prisões preventivas repentinas ou “delações premiadas” vindas sabe-se lá de onde), e sacramentada por uma ditadura parlamentar (que buscará elaborar uma nova Constituição anti-democrática e anti-povo sem qualquer tipo de convocação do poder constituinte originário, apenas por meio de emendas à Constituição da “Nova República”, já tão “remendada” após tantos anos de neoliberalismo...).

Estes 3 braços bem articulados conseguiriam promover a criminalização da esquerda, dos movimentos sociais, do povo pobre; a perseguição da imprensa livre e independente do grande poder econômico (sob a pecha pejorativa de “blogueiros sujos”); o acobertamento de ações violentas contra a militância social (o que em outros países latinoamericanos é denominado “guerra suja”); a imposição no plano da cultura e dos costumes de uma agenda neoconservadora ditada pelos grupos evangélicos mais reacionários; entre outras tantas consequencias que quiçá hoje não seja possível de se imaginar, dado que o caráter de ruptura institucional leva à conformação de um novo bloco de forças políticas que pode, assim como ocorrera na ditadura empresarial-militar brasileira, assumir uma lógica própria de funcionamento que acaba saindo de toda forma de controle, de toda dimensão de previsibilidade.

É importante que se lembre que, em 1964, a ruptura jurídico-constitucional promovida pelos militares foi defendida pela mídia hegemônica sob o argumento de que muito rapidamente os civis retornariam ao poder, e a democracia e a ordem constitucional seriam restabelecidas no Brasil. Tudo se tratava de enfrentar o “mal maior” que era a suposta “ameaça comunista”, e contra ela qualquer “mal menor” seria admissível, inclusive a retirada do Presidente da República democraticamente eleito por meios que estavam fora dos preceitos da Constituição vigente. O resultado foi a potencialização de uma determinada corporação profissional (os militares), que acabou ganhando força própria e permaneceu no poder até 1985.

Hoje a tragédia se repete como “farsa”. A tragédia que fora a truculência dos “gorilas” é hoje a “farsa” da nova corporação escolhida pelas classes dominantes para legitimar o golpe: a corporação dos juristas, que vai sendo potencializada e começa a ganhar força própria na sociedade por meio de ferramentas de mobilização social que buscamos identificar em nosso post anterior. Como resultado, essa “corporação” pode também “fugir do controle” das elites dominantes, do mesmo modo como ocorrera no período anterior com os militares. O resultado, nesse caso, seria o fortalecimento dessa espécie de “ditadura judicial”, arbitrada pelo Poder Judiciário e tendo na vanguarda instituições como o Ministério Público e as Polícias Federal, Civis e Militares.

Esse novo tipo de ditadura corresponde a um Estado policialesco, que criminaliza e judicializa a política, cerceia de forma sistemática a atuação dos Parlamentos e da Administração Pública, ignora ou flexibiliza direitos e garantias fundamentais construídos no Ocidente nos últimos 3 séculos (presunção de inocência, direito a intimidade e privacidade, direito de defesa etc), aplica (ou não aplica) sanções jurídicas de forma seletiva para diferentes tipos de conflitos sociais (criminalizando militantes como “terroristas” por um lado, e deixando de apurar casos de violência contra integrantes de movimentos sociais e partidos de esquerda por outro) etc. O cenário em termos ideológicos numa tal conjuntura é de ascenso do fascismo e do ódio contra a esquerda, contra os movimentos sociais, contra os pobres e contra as diversas minorias sociais.

É importante que se compreenda que ainda que tal cenário preocupe sobretudo a estes grupos, também as elites dominantes temem “perder o controle” do processo, podendo vir a ser vitimizada no futuro por essa corporação de juristas empoderados. O exemplo que a “Operação Lava Jato” oferece quanto aos maiores empreiteiros do país pode ser tido como um aviso do que pode vir a ocorrer com muitos outros setores da burguesia brasileira (ainda que não chegue nem perto das atrocidades que se virá a promover contra a militância de esquerda, os pobres etc.).

Em termos constitucionais, o cenário que se desenha no contexto de um golpe bem sucedido é portanto o da flexibilização dos direitos e das garantias constitucionais. Isso pode se dar tanto pela dissolução oficial da Constituição da “Nova República” (tida pelos setores neoliberais como "excessiva" no plano do reconhecimento de direitos trabalhistas e sociais), como pode se dar também pela manutenção estritamente simbólica dessa mesma Constituição mas com a aprovação de um conjunto de emendas constitucionais desfiguradoras, ou mesmo a instituição de uma série de burlas às regras constitucionais estabelecidas (como é o caso das reformas trabalhistas que se pretende implementar a partir da ideia da “autonomia negocial” das categorias profissionais). O resultado em ambos os cenários é no entanto o mesmo: aquele conjunto de direitos e garantias fundamentais da CF/1988, já difíceis de se implementar hoje, deixariam de ter exigibilidade jurídica. Na prática, teríamos uma nova Constituição neoliberal, com muito menos direitos e garantias, submetidas ainda, sistematicamente, a “interpretações” desfigurantes por parte das instituições jurídicas em geral.

O caso europeu também nos ensina que o capitalismo contemporâneo encontrou novos meios jurídicos para passar por cima dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos nas Constituições nacionais: por meio do chamado “direito comunitário” estebelecido pela União Europeia, as decisões da tecnocracia instituída pela “troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) tem mais força jurídica que as decisões das autoridades nacionais e mesmo que a manifestação direta dos cidadãos (vide o caso do referendo grego contra o pagamento da dívida externa). Esse caso, associado a novas formas jurídicas supra-estatais estabelecidas pelas empresas transnacionais e seus “Estados clientes” (caso da lex mercatória) levam ao atual contexto de crise do constitucionalismo moderno. O capitalismo flexível impulsionado hoje busca por diversos modos a dissolução das barreiras jurídicas estabelecidas pelo constitucionalismo desde o séc. XIX para a proteção da classe-que-vive-do-trabalho.

Independente dos modos jurídico-políticos que possam vir a ser assumidos no Brasil para passar por cima dos direitos e garantias fundamentais no caso de um golpe bem sucedido, o que parece claro é que tais medidas têm como principal objetivo resgatar as taxas de lucro dos capitalistas por meio do aumento do desemprego, da redução progressiva do salário mínimo, do corte de diversos direitos trabalhistas (férias, 13º salário, horas extras, jornada de trabalho definida etc), do ataque aos direitos sociais (privatização gradual do SUS e do INSS, precarização ainda maior na educação pública, estrangulamento das políticas sociais, afetando sobretudo os programas de transferência de renda etc), dos cortes orçamentários e congelamento da máquina pública, do enxugamento do Estado por meio de novas rodadas de privatizações, da entrega do petróleo a empresas transnacionais estadunidenses e europeias, entre muitas outras medidas que passariam a ser viabilizadas desde o Poder Executivo e também desde o Parlamento (mais reacionário desde 1964), no caso de um novo governo Temer-Cunha.

Esse cenário de “terra arrasada” não é nem um pouco exagerado (na verdade o “pacote de maldades” aqui citado é apenas exemplificativo), e já tem sido anunciado há tempos pelos diversos representantes das forças golpistas. Quem pensa (como muitos companheiros e companheiras da militância de esquerda) que, do ponto de vista da classe-que-vive-do-trabalho, do povo brasileiro, não haveria grandes diferenças entre um governo Dilma-Lula (no caso de o golpe fracassar) e um governo Temer-Cunha (no caso de o golpe de fato ocorrer) simplesmente não entende nada do que está ocorrendo no Brasil e no mundo neste momento histórico. E infelizmente acabará se tornando também vítima da ascensão do fascismo e do ódio que contamina nossa sociedade hoje. Nesse caso, seu pecado no atual momento histórico terá sido o de haver “lavado as mãos” na batalha do impeachment que está sendo travada nesta semana decisiva (mas ainda não definitiva).

Essa é uma questão que deixaremos para discutir no post final desta análise, que procurará pensar sobre o papel histórico da AJP no atual momento que vivemos no Brasil.

5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?

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