No post anterior, a nova coluna "Direito e
conjuntura" procurou traçar um panorama geral (bastante
resumido, e por isso mesmo incompleto) da conjuntura política
internacional e também nacional, buscando identificar a "essência"
do "golpe de Estado de novo tipo" a partir da análise das
forças sociais e políticas que confluíram para a edificação da
estratégia golpista atualmente em curso no Brasil.
Neste post, a coluna faz um exercício de
avaliação das condições jurídico-políticas da conjuntura
brasileira no caso de uma eventual consumação do golpe
midiático-jurídico-parlamentar. Para isso, busca elementos da
história constitucional brasileira para avaliar possíveis
desdobramentos que decorreriam do próprio caráter do golpe de
Estado em curso. A hipótese aqui é de que as características de
cada golpe definem as condições fundamentais do regime político
instituído a partir de então.
***
4. O "golpe de Estado de novo tipo", se
consolidado, representará simbolicamente o fim da Constituição da
"Nova República". Mas o que virá depois?
Diego Augusto Diehl
Em toda a história constitucional brasileira, a
elaboração de novas Constituições ocorreu após um processo de
deslegitimação da Constituição anterior, que tem sempre um ato ou
momento simbólico de ruptura:
- a Constituição Imperial de 1824 foi outorgada por D. Pedro I a partir de um golpe que fechou a Assembleia Constituinte em novembro de 1823;
- a Constituição Republicana de 1891 foi produzida após o golpe militar que instituiu a República em 1889;
- a Constituição social de 1934 foi promulgada após a dissolução da ordem constitucional anterior com a chamada “Revolução de 1930” encabeçada por Getúlio Vargas, que logo na sequencia, em 1937, rompeu com a ordem constitucional a partir do golpe do Estado Novo, e outorgou nova “lei fundamental” no mesmo ano;
- a Constituição democrática de 1946 foi fruto do cenário geopolítico mundial instituído com o fim da 2ª Guerra Mundial no ano anterior, que contribuiu para o esgotamento das condições internas da ditadura do “Estado Novo”;
- as Constituições ditatoriais de 1967 e 1969 foram outorgadas pelos militares após a ruptura com a ordem constitucional em virtude do golpe de 1º de abril de 1964;
- a Constituição da “Nova República”, promulgada em 1988, foi o produto do grande “pacto de classes” materializado em 1985 na eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney (que não deixou de ser um “golpe”, neste caso contra o movimento das “Diretas Já”).
Desde essa perspectiva histórica talvez seja mais
fácil perceber que não se trata de mero “exagero” falar no fim
da CF/1988 no caso de o impeachment da Presidenta da República
ocorrer neste momento, sem a presença de crime de responsabilidade
cometido em mandato atual, vindo portanto a romper com os preceitos
estabelecidos pela Constituição vigente. O golpe
midiático-jurídico-parlamentar, se ocorrer, representará mais um
momento de ruptura institucional na história do Brasil, e há que se
compreender que o próprio sentido social, político e ideológico de
cada uma dessas rupturas que ocorreram ao longo da história
brasileira ditaram as características do novo regime que viria a
seguir: de um golpe republicano produziu-se o regime republicano
liberal da “República Velha”; de um golpe fascista produziu-se
talvez a mais violenta ditadura que o Brasil já viu no chamado
“Estado Novo”; de um golpe encabeçado pelos militares surgiu uma
ditadura militar.
O que viria após um golpe
midiático-jurídico-parlamentar, que é o que se está gestando
hoje? Muito provavelmente, uma ditadura da mídia dominante
(reconciliada com o governo e muito bem remunerada por isso,
responsável pelo linchamento moral da esquerda e pela definição da
agenda política e jurídica nacional), combinada com uma espécie de
“ditadura judicial” (na qual tudo e todos estão constantemente
sob suspeição e ameaçados por grampos, prisões preventivas
repentinas ou “delações premiadas” vindas sabe-se lá de onde),
e sacramentada por uma ditadura parlamentar (que buscará elaborar
uma nova Constituição anti-democrática e anti-povo sem qualquer
tipo de convocação do poder constituinte originário, apenas por
meio de emendas à Constituição da “Nova República”, já tão
“remendada” após tantos anos de neoliberalismo...).
Estes 3 braços bem articulados conseguiriam
promover a criminalização da esquerda, dos movimentos sociais, do
povo pobre; a perseguição da imprensa livre e independente do
grande poder econômico (sob a pecha pejorativa de “blogueiros
sujos”); o acobertamento de ações violentas contra a militância
social (o que em outros países latinoamericanos é denominado
“guerra suja”); a imposição no plano da cultura e dos costumes
de uma agenda neoconservadora ditada pelos grupos evangélicos mais
reacionários; entre outras tantas consequencias que quiçá hoje não
seja possível de se imaginar, dado que o caráter de ruptura
institucional leva à conformação de um novo bloco de forças
políticas que pode, assim como ocorrera na ditadura
empresarial-militar brasileira, assumir uma lógica própria de
funcionamento que acaba saindo de toda forma de controle, de toda
dimensão de previsibilidade.
É importante que se lembre que, em 1964, a
ruptura jurídico-constitucional promovida pelos militares foi
defendida pela mídia hegemônica sob o argumento de que muito
rapidamente os civis retornariam ao poder, e a democracia e a ordem
constitucional seriam restabelecidas no Brasil. Tudo se tratava de
enfrentar o “mal maior” que era a suposta “ameaça comunista”,
e contra ela qualquer “mal menor” seria admissível, inclusive a
retirada do Presidente da República democraticamente eleito por
meios que estavam fora dos preceitos da Constituição vigente. O
resultado foi a potencialização de uma determinada corporação
profissional (os militares), que acabou ganhando força própria e
permaneceu no poder até 1985.
Hoje a tragédia se repete como “farsa”. A
tragédia que fora a truculência dos “gorilas” é hoje a “farsa”
da nova corporação escolhida pelas classes dominantes para
legitimar o golpe: a corporação dos juristas, que vai sendo
potencializada e começa a ganhar força própria na sociedade por
meio de ferramentas de mobilização social que buscamos identificar
em nosso post anterior. Como resultado, essa “corporação” pode
também “fugir do controle” das elites dominantes, do mesmo modo
como ocorrera no período anterior com os militares. O resultado,
nesse caso, seria o fortalecimento dessa espécie de “ditadura
judicial”, arbitrada pelo Poder Judiciário e tendo na vanguarda
instituições como o Ministério Público e as Polícias Federal,
Civis e Militares.
Esse novo tipo de ditadura corresponde a um Estado
policialesco, que criminaliza e judicializa a política, cerceia de
forma sistemática a atuação dos Parlamentos e da Administração
Pública, ignora ou flexibiliza direitos e garantias fundamentais
construídos no Ocidente nos últimos 3 séculos (presunção de
inocência, direito a intimidade e privacidade, direito de defesa
etc), aplica (ou não aplica) sanções jurídicas de forma seletiva
para diferentes tipos de conflitos sociais (criminalizando militantes
como “terroristas” por um lado, e deixando de apurar casos de
violência contra integrantes de movimentos sociais e partidos de
esquerda por outro) etc. O cenário em termos ideológicos numa tal
conjuntura é de ascenso do fascismo e do ódio contra a esquerda,
contra os movimentos sociais, contra os pobres e contra as diversas
minorias sociais.
É importante que se compreenda que ainda que tal
cenário preocupe sobretudo a estes grupos, também as elites
dominantes temem “perder o controle” do processo, podendo vir a
ser vitimizada no futuro por essa corporação de juristas
empoderados. O exemplo que a “Operação Lava Jato” oferece
quanto aos maiores empreiteiros do país pode ser tido como um aviso
do que pode vir a ocorrer com muitos outros setores da burguesia
brasileira (ainda que não chegue nem perto das atrocidades que se
virá a promover contra a militância de esquerda, os pobres etc.).
Em termos constitucionais, o cenário que se
desenha no contexto de um golpe bem sucedido é portanto o da
flexibilização dos direitos e das garantias constitucionais. Isso
pode se dar tanto pela dissolução oficial da Constituição da
“Nova República” (tida pelos setores neoliberais como "excessiva"
no plano do reconhecimento de direitos trabalhistas e sociais), como
pode se dar também pela manutenção estritamente simbólica dessa
mesma Constituição mas com a aprovação de um conjunto de emendas
constitucionais desfiguradoras, ou mesmo a instituição de uma série
de burlas às regras constitucionais estabelecidas (como é o caso
das reformas trabalhistas que se pretende implementar a partir da
ideia da “autonomia negocial” das categorias profissionais). O
resultado em ambos os cenários é no entanto o mesmo: aquele
conjunto de direitos e garantias fundamentais da CF/1988, já difíceis de se implementar hoje, deixariam de ter exigibilidade jurídica. Na prática,
teríamos uma nova Constituição neoliberal, com muito menos
direitos e garantias, submetidas ainda, sistematicamente, a
“interpretações” desfigurantes por parte das instituições
jurídicas em geral.
O caso europeu também nos ensina que o
capitalismo contemporâneo encontrou novos meios jurídicos para
passar por cima dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos
nas Constituições nacionais: por meio do chamado “direito
comunitário” estebelecido pela União Europeia, as decisões da
tecnocracia instituída pela “troika” (Comissão Europeia, Banco
Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) tem mais força
jurídica que as decisões das autoridades nacionais e mesmo que a
manifestação direta dos cidadãos (vide o caso do referendo grego
contra o pagamento da dívida externa). Esse caso, associado a novas
formas jurídicas supra-estatais estabelecidas pelas empresas
transnacionais e seus “Estados clientes” (caso da lex mercatória)
levam ao atual contexto de crise do constitucionalismo moderno. O
capitalismo flexível impulsionado hoje busca por diversos modos a
dissolução das barreiras jurídicas estabelecidas pelo
constitucionalismo desde o séc. XIX para a proteção da
classe-que-vive-do-trabalho.
Independente dos modos jurídico-políticos que
possam vir a ser assumidos no Brasil para passar por cima dos
direitos e garantias fundamentais no caso de um golpe bem sucedido, o
que parece claro é que tais medidas têm como principal objetivo
resgatar as taxas de lucro dos capitalistas por meio do aumento do
desemprego, da redução progressiva do salário mínimo, do corte de
diversos direitos trabalhistas (férias, 13º salário, horas extras,
jornada de trabalho definida etc), do ataque aos direitos sociais
(privatização gradual do SUS e do INSS, precarização ainda maior
na educação pública, estrangulamento das políticas sociais,
afetando sobretudo os programas de transferência de renda etc), dos
cortes orçamentários e congelamento da máquina pública, do
enxugamento do Estado por meio de novas rodadas de privatizações,
da entrega do petróleo a empresas transnacionais estadunidenses e
europeias, entre muitas outras medidas que passariam a ser
viabilizadas desde o Poder Executivo e também desde o Parlamento
(mais reacionário desde 1964), no caso de um novo governo
Temer-Cunha.
Esse cenário de “terra arrasada” não é nem
um pouco exagerado (na verdade o “pacote de maldades” aqui citado
é apenas exemplificativo), e já tem sido anunciado há tempos pelos
diversos representantes das forças golpistas. Quem pensa (como
muitos companheiros e companheiras da militância de esquerda) que,
do ponto de vista da classe-que-vive-do-trabalho, do povo brasileiro,
não haveria grandes diferenças entre um governo Dilma-Lula (no caso
de o golpe fracassar) e um governo Temer-Cunha (no caso de o golpe de
fato ocorrer) simplesmente não entende nada do que está ocorrendo
no Brasil e no mundo neste momento histórico. E infelizmente acabará
se tornando também vítima da ascensão do fascismo e do ódio que
contamina nossa sociedade hoje. Nesse caso, seu pecado no atual
momento histórico terá sido o de haver “lavado as mãos” na
batalha do impeachment que está sendo travada nesta semana decisiva
(mas ainda não definitiva).
Essa é uma questão que deixaremos para discutir
no post final desta análise, que procurará pensar sobre o papel
histórico da AJP no atual momento que vivemos no Brasil.
5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?
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