quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O quilombo Paiol de Telha e a emancipação do Paraná

Ricardo Prestes Pazello
professor de Antropologia Jurídica do curso de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)

O artigo abaixo já virou história: neste 19 de dezembro, dia da emancipação política do Paraná, realizou-se o final do julgamento da argüição de inconstitucionalidade do decreto federal 4.887/2003 sobre demarcação de terras quilombolas, no âmbito da ação que envolve o processo administrativo em prol do quilombo Invernada Paiol de Telha (Guarapuava, Paraná). Por 12 a 3, decidiram os desembargadores que se trata de ato normativo constitucional, vitória para as 4 mil comunidades existentes no Brasil hoje, mesmo diante das dificuldades que o próprio decreto impõe para os processos de titulação e que as quase inexistentes políticas em defesa dos territórios das comunidades tradicionais indicam.


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A data de 19 de dezembro marca a solenidade que trouxe à 5ª Comarca de São Paulo sua emancipação. O Paraná, em cerimônia solene, empossava Zacarias de Goes e Vasconcelos, seu primeiro presidente provincial (ao tempo do império, os estados se chamavam províncias e os governadores, presidentes) e arrefecia os ânimos das elites locais que, desde pelo menos 1811, aspiravam ter seu próprio governo regional.

Por coincidência histórica, ficou destinada para este dia importante tomada de decisão, por parte do aparelho judicial brasileiro, acerca da continuidade da luta quilombola não só no estado do Paraná, mas em todo o país. Se a 19 de dezembro os paranaenses relembram a cerimônia que executou a lei imperial 704 a qual criava a nova província e a isto chamam de emancipação do Paraná; agora, à mesma data só que 160 depois, os paranaenses guardam expectativa sobre qual o futuro anunciado pelo judiciário (e, portanto, pelo estado nacional) para as comunidades remanescente de quilombos, em sede de argüição de inconstitucionalidade quanto ao decreto 4.887/2003 que regulamenta artigo da Constituição de 1988 referente à demarcação de terras quilombolas.

Os anos que separam 1853 de 2013 são uma boa régua para medir a distância entre a emancipação formal e a material. A historiografia mais tradicional, no Paraná, não se contenta em exaltar a importância da emancipação formal e fundamenta-a em episódios históricos que assinalam o quão engajada esteve a elite local nesta empreita: o movimento emancipacionista de 1811, capitaneado por Correia de Sá; a conjura separatista de 1821, abraçada por Bento Viana; a cooptação legalista (antifarroupilha e antiliberal) de 1842; a propaganda pró-emancipação, de Paula Gomes e Correia Júnior; os 10 anos de debates parlamentares, em que se destacaram Cruz Machado e Carneiro de Leão; enfim, todos os meios que estiveram à disposição da ordeira classe política paranaense durante o império.

Pouco se fala, entretanto, que enquanto as elites ervateiras e pecuaristas de então buscavam se separar de São Paulo, o Paraná se constituía em um privilegiado palco de resistência, em que indígenas, negros e caboclos assumiam todo o protagonismo. E é exatamente esta resistência que fica resgatada no cerne do debate judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

A argüição de inconstitucionalidade foi suscitada por desembargadores da 3ª turma do TRF4 no âmbito da apreciação de procedimento administrativo do INCRA que visava a demarcar o território quilombola Invernada Paiol de Telha, em Guarapuava. Assim, ao analisar o caso concreto, os julgadores pretenderam atacar o próprio ato normativo que torna possível a demarcação, o decreto 4.887/2003.

Ocorre, contudo, que ao atacarem o decreto acabam por atacar a própria história. Se algum tipo de emancipação formal houve em 1853, agora corremos o risco de retornar à estaca zero em termos de emancipação material. Ainda que o decreto de 2003 não seja a regulamentação ideal reivindicada pelo movimento quilombola, justamente por suas intrincadas exigências procedimentais muito próprias de um sistema jurídico que fetichiza a pretensa segurança jurídica, ele se apresenta como um avanço jurídico em relação a) à total invisibilidade em que foram colocadas as comunidades tradicionais negras no Brasil até 1988; b) à inércia normativa que se assumiu a partir da promulgação da Constituição e à ineficácia de se destinar a competência para realizar demarcação de terras para órgão sem estrutura técnica e financeira (caso da lei 7.668, que criou a Fundação Cultural Palmares); e c) à despropositada regulamentação promovida em 2001, por meio do decreto 3.912, que exigia que os territórios quilombolas, para serem reconhecidos, estivessem ocupados por pelo menos 100 anos, desde 1888 até 1988 (da abolição da escravatura até a Constituição da nova república), o que explicita o abismal déficit que carregou consigo referido decreto, quanto a fundamentos históricos, sociais, econômicos e culturais.

É de se salientar que o risco frente ao qual os quilombolas estão expostos é o risco de adiarem uma vez mais as condições de sua emancipação material. A comunidade quilombola do Paiol de Telha, mesmo existindo desde 1860, decorrência de herança recebida por 11 negros escravizados na região de Guarapuava, tem o condão de servir de paradigma em termos de reconhecimento institucional de sua condição. A constituição dos quilombos não pode continuar dando margem a interpretações que considerem estes grupos como “coisa de negros fugidos”. Este é o primeiro passo que devemos dar no sentido de denunciar e superar as estruturas racistas nas quais estamos inseridos. No entanto, outros passos precisam igualmente ser dados e, dentre eles, a luta pelo reconhecimento institucional, ainda que mesmo esta luta não esteja a salvo de vários limites e contradições.

Os quilombolas do Paiol de Telha possuem a marca da resistência e da luta pelos “modos de criar, fazer e viver” que lhes são próprios. Carregam consigo uma história esquecida, a partir da qual podemos reviver os indígenas guarapuavanos resistindo às bandeiras portuguesas e à caça a eles empreendida após a chegada família real ao Brasil, em 1808; a Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, que serviu de chamariz para que caboclos ocupassem a região; os mais de 40% da população do Paraná escravizada em 1853 e sua resistência comunitária; a substituição da mão-de-obra, conhecida como política “linista” (de Lamenha Lins), que passou a promover o suposto branqueamento populacional, com a inserção do imigrante europeu no interior paranaense, em detrimento da população negra aqui já estabelecida.

A grande questão em jogo é saber até que ponto o estado brasileiro, via seus poderes instituídos, compactuará e promoverá o etnocídio e o genocídio. No caso, das comunidades quilombolas. Na medida em que se trata de considerar o território das comunidades negras como terras tradicionalmente ocupadas e não como a forma jurídica “propriedade”; na medida em que “democracia” e “segurança jurídica” não são expressões que se prestem à desfaçatez da lógica mercantil e dos interesses daqueles que sempre estiveram despreocupados com as maiorias a não ser quando elas se rebelam; na medida em que os 160 anos que separam a emancipação formal do Paraná, em 1853, da ainda distante emancipação material de nosso povo, neste 2013, são a mais eloqüente régua que computa toda a desigualdade que vige entre nós; considerando todas estas “medidas” é que nossos olhos se voltarão ao TRF4 e assistiremos, com expectativa, à sua decisão, estando certos de que só representarão os anseios de todo o povo brasileiro, e não só o paranaense, se agirem de modo a reconhecerem a constitucionalidade do decreto 4.887, fazendo deste 19 de dezembro aí sim uma data que tenha alguma coisa a ver com emancipação.

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Texto publicado nos seguintes veículos de comunicação:

- Página da Terra de Direitos;
- Página do CEDEFES;
- Jornal Brasil de Fato.

Conferir também:

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os quilombos, o judiciário e a política

Fernando Prioste
coordenador da Terra de Direitos e advogado popular no caso Paiol de Telha


O debate jurídico sobre a titulação dos territórios quilombolas está polarizado entre os que defendem a aplicação imediata da Constituição e os que exigem a aprovação de mais uma lei para que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal possa ser aplicado. Mas, sabe-se que o debate jurídico não se limita a questões técnicas de possibilidade de aplicação das leis, pois o princípio da legalidade, tão valorizado pelo positivismo como pressuposto lógico da dita “segurança jurídica”, não está alheio à realidade que o circunda. As decisões do Poder Judiciário, por mais que neguem os tribunais, não são frutos exclusivos da técnica profissional neutra dos magistrados. 

Ao levar em conta os aspectos da judicialização da política e da politização da justiça, o debate sobre os direitos constitucionais das comunidades quilombolas desvela os valores políticos e ideológicos, entre outros, que influenciam os posicionamentos jurídicos no tema. O caso da titulação do território quilombola Paiol de Telha, que envolve o julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), não foge à regra. Os oito votos proferidos na sessão de julgamento do órgão espacial do TRF4, em 28 de novembro, escancaram as divergências e abrem caminhos para entender as tensões que determinarão o resultado final do julgamento. Seis foram favoráveis e dois contrários à constitucionalidade do Decreto. 

Aqueles que defendem a aplicação imediata da Constituição e a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, em regra, não escondem os fundamentos políticos e ideológicos que influenciam o manejar da técnica jurídica. De modo geral reconhecem o Brasil como um país com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade para com as comunidades quilombolas e, entre outros fundamentos, valorizam o papel que o povo quilombola tem, hoje, nos campos econômico, cultural e político de nossa sociedade. Essas premissas político-ideológicas orientam a aplicação técnica do direito que eleva o art. 68 do ADCT à categoria de norma de direitos humanos, reconhecendo ainda que a norma constitucional tem aplicação concatenada com a realidade a que veio regular. Nesse sentido, entendem que a Constituição Federal, em sua integralidade, assegurou, às comunidades quilombolas, e à sociedade brasileira, direitos que viabilizem a reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades.

Por outro lado, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 não expõem de forma explícita os fundamentos políticos e ideológicos que sustentam seus posicionamentos jurídicos. Alegam, em verdade, que não se alinham a uma ou outra posição política, pois a decisão é estritamente técnica. Nesse contexto, argumentam que o texto constitucional do art. 68 do ADCT não é suficientemente nítido para ser aplicado, e que o respeito ao estado democrático de direito impõe que a titulação dos territórios quilombolas esteja necessariamente amparada em lei. Ou seja, não basta o comando constitucional. Sustentam que as alterações havidas entre os Decretos Federais 3912/2001 e 4887/03 demonstram a situação de insegurança jurídica que só poderia ser superada com a aprovação de uma lei que regulasse o art. 68 do ADCT.  Nesse sentido, consignou o juiz federal Nicolau Konkel Jr, citado pela Desembargadora Marga Inge, relatora do caso do Paiol de Telha no TRF4:

Sem se alinhar a uma opção política ou outra, resta evidente que cada governo emprestou ao art. 68 do ADCT o significado que corresponde à linha ideológica de cada partido. Aliás, é natural que assim o seja, sendo inconcebível que as administrações sejam rebeldes com seus compromissos históricos. No entanto, se é verdade que os fatos sejam assim, não é menos verdade que o Direito tenha que ser refém dos fatos. Afinal, o Direito não é a ciência do ser, mas do dever ser, sendo seu papel conter, quando necessário, a rebelião dos fatos

O quadro que se apresenta é claro: existe uma necessidade premente de discussão sobre os limites e o alcance do art. 68 do ADCT. No entanto, essa discussão deve ocorrer no foro adequado que é o Congresso Nacional. Se é inegável que cabe ao Poder Judiciário Sindicar eventual regulamentação do tema, também não se pode excluir a necessidade de prévio debate político, a partir de um texto legal que reflita a vontade do povo e não a da administração que expede o decreto.” (sem grifos no original)
Como se vê no trecho acima transcrito, as decisões judiciais estão impregnadas de valorações políticas que orientam o pensar e agir jurídico. Afirmar que a vontade popular não está nítida na Constituição Federal, que ainda é necessário fazer um debate político sobre o tema para se afirmar o direito já inscrito na Carta Magna e que o direito deve conter a rebelião dos fatos (no caso, a titulação dos territórios quilombolas), não é um raciocínio lógico matemático que se extrai de uma suposta interpretação neutra da lei.

A posição jurídica daqueles que insistem em negar a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 se escora em posição política que, via de regra, está associada à negação das políticas raciais afirmativas - por exemplo, o sistema de cotas - e a um suposto agravamento do conflito agrário decorrente da aplicação da política pública de titulação e reconhecimento de direitos às comunidades quilombolas. Também está associada a uma supervalorização do direito de propriedade em detrimento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais daqueles que não são proprietários.

O nazismo e os quilombolas 

O processo de titulação do território quilombola Paiol de Telha é questionado pela Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, produtora de commodities. Durante o julgamento do caso do Paiol de Telha, em novembro, o advogado Eduardo Bastos de Barros, que representante de alguns integrantes da Cooperativa Agrária, comparou a origem dos alemães que hoje ocupam o território com a origem dos quilombolas que foram expulsos de suas terras. Disse o advogado que os alemães vieram para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que o governo da Suíça comprou terras na região de Guarapuava e doou aos alemães derrotados no conflito. Ainda segundo o representante da cooperativa, os alemães teriam perdido todos seus bens na terra de origem por terem integrado o exército do 3º Reich durante a guerra e, assim, na visão do advogado, teriam uma origem humilde como a dos quilombolas do Paiol de Telha. A terra recebida pelos alemães do governo suíço não é o território quilombola do Paiol de Telha.  

Contudo, a afirmação do advogado apenas corrobora o abismo de desigualdade entre os alemães acolhidos pelo Estado brasileiro e a situação de total invisibilidade da comunidade quilombola frente ao Estado.  No embate entre a versão dos quilombolas - que afirmam terem sido expulsos à bala de suas terras - e dos alemães - que dizem ter comprado a terra dos quilombolas - fica o desafio de tentar compreender como se deu, e como se dá, a relação de disputas por terras entre descendentes de negros que foram escravizados e ex-militares alemães do regime nazista de Hitler.

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- Saiba mais sobre o caso clicando aqui.
Processo eletrônico no TRF4.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Resenha de Solução de problemas profissionais de Zayas e Lombardía


Luiz Otávio Ribas
Rio de Janeiro

ZAYAS, Carlos Álvarez de; LOMBARDÍA, Virginia Sierra. La solución de problemas profesionales. Em: __________. Solución de problemas profesionales: metodología de investigación científica. 5. ed. Cochabamba: Kipus,  2009, p. 17-32.

No Grupo de Estudos e Práticas em Advocacia Popular (GEAP Miguel Pressburguer), do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP Luiza Mahin), debatemos o texto "La solución de problemas profesionales", de Carlos Zayas e Virginia Lombardía. Carlos Zayas é doutor em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Moscou e funcionário do Ministério de Educação Superior de Cuba. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Cadernos Insurgentes e o caso do MP/RS versus MST 2008


"Estudo de caso da tentativa de dissolução do MST por parte do MP/RS - 2008"
Coleção Pedras e Galos - n.1
Rio de Janeiro e Niterói, jun. 2013
IPDMS - Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais
Produção: Tiago de Garcia Nunes, Luiz Otávio Ribas e Lucas Vieira de Andrade
Arte: Maria Bonita Comunicação

Neste volume, o Grupo de Estudos e Práticas em Advocacia Popular (GEAP Miguel Pressburguer) analisa o caso de tentativa de dissolução do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por parte do Ministério Público do Rio Grande do Sul, em 2008. Foram revisadas as peças processuais da Ação Civil Pública inibitória dos acampamentos Jandir e Serraria, ambos no município de Coqueiros do Sul, próximos à fazenda Guerra. Foram aprofundadas três contradições do sistema de justiça na sustentação da ilegalidade e ilegitimidade do MST neste caso: o suposto descumprimento da função social da propriedade e o desrespeito ao direito de propriedade dos envolvidos; a defesa da segurança pública e a aplicação da Lei de Segurança Nacional; e o uso da ação civil pública para criminalização de um movimento social. Por fim, estudou-se a postura da advocacia popular frente a estas contradições, sendo ora uma defesa processual mais técnica, ora mais política, levantando a questão sobre até que ponto são conciliáveis as questões políticas e processuais. Uma contribuição teórica foi apontar três estratégias de advocacia popular: o positivismo de combate, o uso alternativo do direito e o direito insurgente.

"Historicamente os movimentos sociais são combatidos de três maneiras: ignorando-os, cooptando-os ou criminalizando-os. Quando não se consegue cooptá-los, depois de terem sido ignorados e continuarem existindo, o remédio é considerá-los crime"- Leandro Scalabrin, advogado da RENAP.

Os Cadernos Insurgentes são ferramentas para o trabalho de apoio aos movimentos sociais populares no contexto da América Latina. Um diálogo no e do sul, de gentes que se insurgem para dizer a sua palavra no mundo.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Direito e libertação: breves notas introdutórias

Ricardo Prestes Pazello 

Provocado positivamente pelo filósofo Euclides André Mance, trago à tona estas breves notas a respeito da relação entre a teoria do direito e a categoria “libertação”, com especial ênfase para a produção teórica brasileira. O debate ocorreu por conseqüência de discussões internas ao Instituto de Filosofia da Libertação, do qual tanto Mance quanto eu fazemos parte.

Ainda não há, por incrível que pareça, um estudo dentro do direito que identifique o surgimento da categoria "libertação" nas reflexões jurídicas. O que é certo, porém, é que a problemática da "libertação" já estava colocada muito antes da difusão do chamado "direito alternativo".

Talvez tenha sido o juiz João Batista Herkenhoff o primeiro a utilizar a idéia na literatura jurídica brasileira, em tese de livre docência apresentada à Universidade Federal do Espírito Santo. A tese foi publicada no mesmo ano de sua defesa, 1979, e recebeu o título de “Como aplicar o direito” (com o subtítulo: “à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política”). No capítulo de conclusão, Herkenhoff abre um subitem, de quatro parágrafos, denominado “A justiça como instrumento de libertação” (além disso, o texto apresenta citações de A. Paoli, Paulo Freire e Gustavo Gutiérrez). Só em 1986, porém, quando da segunda edição da obra, referidas notas conclusivas seriam ampliadas para quatro páginas, dividindo a temática a partir do item geral “A justiça, o juiz e a libertação do oprimido” em três seções: “A justiça como instrumento de libertação” (repetindo a subtitulação da primeira edição); “A salvação do direito pela arte do juiz”; e “Em busca de um direito de libertação”.

No entanto, parece ser Roberto Lyra Filho aquele que no Brasil introduziu a idéia de se poder construir um "direito de libertação" com mais fôlego. Até por ter se tratado de teórico do direito de ampla formação, gabaritado não apenas para as questões técnico-jurídicas, mas também para a reflexão filosófica, sociológica, antropológica e teológica, deu centralidade para a questão da “libertação” em suas análises. Ainda que seja o caso de verificar com mais cuidado se não há livros anteriores, em 1980 aparece o tema na obra "O direito que se ensina errado" (ver aqui no blogue vários livros disponíveis na Biblioteca Roberto Lyra Filho).

Na verdade, encontramos uma primeira e rara referência já em 1974, na revista significativamente denominada “Liberación y derecho”, publicada na Argentina pela então Universidade Nacional e Popular de Buenos Aires. No primeiro volume – e único, até onde pudemos apurar –, além do título do periódico, há pelo menos um artigo, intitulado “Historia del derecho y liberación nacional”, de Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña, que faz menção explícita à categoria "libertação". Também, a expressão já aparecia (e junto dela citações de Dussel e Paulo Freire) no livro de 1977 do jurista católico mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel – "Hacia una organización jurídica del estado, solidaria y liberadora". Em 1983 ele seria o primeiro a sistematizar uma teoria jurídica na perspectiva da libertação com o livro, lançado em 1984, "El derecho como arma de liberación en América Latina", prefaciado por Arturo Paoli.

A questão da temática da libertação no Brasil só vai ser sistematizada de fato (ou seja, um estudo inteiro baseado nesta perspectiva) com a dissertação de mestrado de Celso Luiz Ludwig, “A alternatividade jurídica na perspectiva da libertação: uma leitura a partir da filosofia de Enrique Dussel". Escrita entre 1988 e 1993, e defendida na Universidade Federal do Paraná, esta dissertação viria a se tornar o livro "Para uma filosofia jurídica da libertação", lançado em 2006.

Entre 1988 e 1993, porém, surgem outros estudos que recepcionam Dussel e/ou a perspectiva de libertação para o direito no Brasil. O próprio Celso Ludwig teria proferido palestra sobre esta temática já em 1984 (na Cúria Metropolitana de Curitiba), mas também em 1988 (no Instituto Vicentinos) e 1989 (na PUC/PR). Outro que lança estudos com esta base é Antonio Carlos Wolkmer (por exemplo, o artigo de 1991, "Pluralismo jurídico, movimientos sociales y práctivas alternativas" citando Dussel e Zea; depois, sua tese de doutorado, terminada em 1992, "Pluralismo jurídico" que já abordava a filosofia de Dussel). Há alguns pontos fora da curva, que mesmo sem a base da filosofia da libertação falam na relação entre direito e libertação. Cito 3 exemplos: a) o livro de Aloysio Ferraz Pereira, "Estado e direito na perspectiva da libertação: uma crítica segundo Martin Heidegger", de 1980, que faz referência a Dussel; b) artigo "O advogado e o compromisso político da libertação", lançado em 1985 pela desembargadora Shelma Lombardi de Kato na Revista dos Tribunais (em 1989, o artigo foi relançado no livro organizado por José Eduardo Faria, "Direito e justiça: a função social do judiciário"); e c) e o artigo de Jaime Yovanovic Prieto que se chamou "O direito alternativo para a libertação" lançado na Revista de Direito Alternativo, em 1993.

Quanto à questão do direito alternativo, há aí uma grande controvérsia sobre como ele teria surgido. De fato, aparece no debate europeu (em especial, na Itália, na França, na Espanha e, em alguma medida, em Portugal), estreitamente vinculado à perspectiva marxista. Não saberia dizer onde exatamente se usa pela primeira vez a expressão, mas é certo que ocorre na literatura jurídica da década de 1970. Segundo uma interpretação (em clássico texto crítico de Miguel Pressbuger, chamado "Direito, a alternativa"), o termo “uso alternativo do direito” (que é diferente de “direito alternativo” e tem conseqüências igualmente diferentes quanto a sua aplicação) aparece pela primeira vez na Itália, quando a magistratura italiana busca vincular suas decisões às classes oprimidas, contra o legado fascista do direito por aquelas bandas. E a partir dos movimentos jurídicos alternativos europeus é que se espalharia a noção de direito alternativo para a América Latina, lugar onde é feito um balanço crítico desta influência e se cria a sistematização (consolidada, talvez, pelo mexicano Óscar Correas) que divide as correntes críticas do direito em: a) uso alternativo do direito (pela magistratura); positivismo/positividade/jusnaturalismo de combate (pelos advogados); e c) direito alternativo/pluralismo jurídico/direito achado na rua/direito insurgente – todos mais ou menos equivalentes (pelos movimentos sociais).

É importante dizer que, no Brasil, o termo “direito alternativo” foi amplamente recepcionado após o grupo de juízes gaúchos ganhar fama no artigo “Juízes gaúchos colocam direito acima da lei” do Jornal da Tarde, em 1990, de Luiz Maklouf e, em 1991, quando um grupo de juristas, provocados pelo texto “jornalístico”, resolvem organizar o I Encontro Internacional de Direito Alternativo, em Florianópolis. Como resultado, foi publicado o livro organizado por Edmundo Lima Arruda Jr, “Lições de direito alternativo 1”, no mesmo ano de 1991. A partir daí, está criado o Movimento de Direito Alternativo – MDA (ver “Introdução ao direito alternativo brasileiro”, livro resultado da tese de doutorado defendida na Espanha, de orientação alternativista, pelo desembargador catarinense Lédio Rosa de Andrade, de 1995).

Antes, porém, já havia aparecido no Brasil o livro “Direito alternativo do trabalho”, de Carlos Artur Paulon, em 1984 (foi o mais antigo a que tive conhecimento). Provavelmente, o título se deve pela influência das traduções dos livros dos alternativistas e críticos do direito, como Michel Miaille, Bernard Edelman, Boaventura de Sousa Santos, dentre outros, bem como pela divulgação de várias obras em perspectiva crítica pelo grupo de Lyra Filho, de Brasília (a Nova Escola Jurídica-NAIR, da qual fizeram parte já em fins da década de 1970, Tarso Genro, Roberto Aguiar e José Geraldo de Souza Junior), assim como pela pós-graduação em direito de Santa Catarina, com as figuras de Luis Alberto Warat e Luiz Fernando Coelho, sendo que este último foi professor também em Curitiba (na década de 1980, Brasília e Florianópolis foram os principais centros difusores de teoria crítica do direito no Brasil).

Posteriormente a 1993, acumulamos vários estudos que se referenciam na proposta filosófica latino-americana da libertação para empreender uma análise crítica do direito, sendo que, hoje, seguindo a senda encampada por Enrique Dussel, o mais propalado dos autores desta corrente teórica, é comum encontrarmos, junto à filosofia da libertação, a fundamentação da crítica à colonialidade do poder e do saber.

Apesar de toda esta história, ainda é razoável questionarmo-nos sobre a possibilidade estratégica da construção de um “direito de libertação”. Ainda que não devamos afastar a sua possibilidade tática, quiçá seja do encontro entre a filosofia da libertação e o materialismo histórico que possamos extrair uma resposta mais concludente.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Vocês têm um lado

De Thiago Arruda, 
de Fortaleza-CE

Aos "neutros", aos "imparciais", ou aos que "não têm um lado", 

Vocês têm um lado.
Eu sei, provavelmente, você vai pensar, influenciado pelo relativismo pós-moderno irracionalista (mesmo sem o saber, no mais das vezes), que a ideia de "ter um lado" é uma ideia arcaica, ultrapassada. Que o legal mesmo agora é achar que existe uma infinidade de posições, mesmo que a sociedade se polarize, que a realidade aponte o contrário: assim é bem mais fácil não ter posição alguma - Freud explicaria a gênese desse argumento justificador. 

De costume, você considera que "os dois lados estão errados". De costume, se alguém arrota numa manifestação, está errado e você não vai compactuar com isso. Você procura anjinhos no mundo, ao invés de mulheres e homens - de carne e osso, coração e mente - mas não encontra essa candura sequer em você mesmo - porque, por incrível que pareça, você também é gente, e gente-no-mundo. Sua natureza terrena lhe é totalmente estranha, invisível. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Manifestações populares trancam vias do Distrito Federal por moradia e transporte público de qualidade

fonte: www.cimi.org.br

Às vésperas das comemorações do 7 de setembro, movimentos sociais populares fecham, na manhã desta sexta-feira, 6, vias do Distrito Federal, em Planaltina, Estrada Parque Taguatinga (EPTG) e Brazlândia. Os atos são articulados entre si e com pautas específicas.

As manifestações reivindicam moradia, auditoria completa e com participação popular da Terracap, transporte público e de qualidade, contra a criação do aterro sanitário de Samambaia, fim da Agência de Fiscalização (Agefis) e sua política de repressão, além da desmilitarização da Polícia Militar.

Participam do protesto o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Coletivo Luta Vermelha, Organização de Comunicação Universitária Popular (OCUP), Movimento Honestinas, Brasil e Desenvolvimento, Movimento Contra o Aterro Sanitário de Samambaia e Assembleia dos Povos.

Os protestos antecedem o já tradicional Grito dos Excluídos. Desde as recentes jornadas de junho, com amplas mobilizações país afora, temos visto a sociedade e suas pautas diversas, atreladas a condições básicas de vida, como saúde, educação e moradia, ocupando o mesmo lugar nas ruas, lado a lado.

No Distrito Federal, são 300 mil famílias na lista de espera do Programa Morar Bem. Enquanto isso, a Terracap segue abrindo leilões: 700 lotes vendidos para especulação imobiliária, sendo áreas destinadas à construção de prédios de grande porte. À margem do que é vendido como desenvolvimento regional, famílias seguem sem habitação digna e de qualidade.  

Tais indignações ocorrem na região de maior desigualdade no Brasil, onde a juventude negra e da periferia é cotidianamente assassinada, por meio da Polícia militarizada, como uma política de Estado. Vivemos sob precário sistema de transporte, saúde e educação, mas o Governo prioriza os Mega Eventos, como a Copa o Mundo.  

O povo brasileiro, enquanto seu governo negocia com grandes empresários os monumentais estádios de futebol, paga as cifras milionárias e amarga mais de 250 mil desapropriações e despejos por conta das obras e exigências da Fifa. Desde as mobilizações de junho, intensificamos nossa luta contra a criminalização dos movimentos sociais, constantemente ameaçados por enfrentarem os governos e o Estado como um todo.

O objetivo da manifestação, às vésperas do 7 de setembro e do Grito dos Excluídos, é reivindicar as pautas especificadas abaixo, em tempos em que os governos, parlamentares e demais autoridades públicas fingem atender ao pedido do povo, clamado nas ruas nos últimos meses, mas criminalizam quem decide lutar pelos seus direitos.

O que queremos:

- Auditoria pública com participação popular nas contas da TERRACAP;
- Contra a implantação do aterro sanitário de Samambaia;
- Desmilitarização da Polícia Militar;
- Fim da AGEFIS e sua política de repressão social;
- Transporte gratuito de qualidade;
- Habitação para as 700 mil famílias do Morar Bem e pelo fim da especulação imobiliária.

Contatos para a imprensa:

OCUP - 7812-6166 ou 8306-5317.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

CARTA A UM ESTUDANTE DE DIREITO SOBRE A BARBÁRIE NO EGITO

(Para Guilherme Fiúza)

Brasília (DF), 21 de agosto de 2013.

Caro estudante de Direito da Universidade Federal de Goiás/Campus Cidade de Goiás,

No sábado 17 de agosto de 2013, pela manhã, você me provocou com suas palavras, com sua angústia e com o seu estarrecimento ao se deparar com um vídeo do massacre cometido pelo exército egípcio golpista nos últimos dias. Você me deixou pensando no que poderia esperar da confiança depositada em um militante de direitos humanos; no que você esperava ver compartilhado; que diálogo poderia ser estabelecido a partir do que afirma: “parece um filme de ação, porém, com armas letais, personagens e mortes reais. Você assiste a documentários, lê artigos, reportagens inúmeras, mas nada vai te fazer sentir o que eu senti assistindo a isso” (SIC). Isso ficou ainda mais evidente quando me direciona uma pergunta que parece querer um alento ou algo que lhe alimente a esperança diante de cenas de violência crua: “Professor Humberto Góes, algum comentário sobre "direitos humanos"?”.




Eram efetivamente angustiantes as imagens que você me apresentava. Segundo os noticiários, até a noite do dia anterior, já eram mais de 700 (setecentos) mortos no Egito por causas políticas.
Eu suponho que, talvez, juntando essa informação com as imagens expostas no vídeo, o que tenha ficado de imediato para você tenha sido a paralisia e a revolta diante do que choca. É comum que, em face de situações extremas, nos sintamos atados, descrentes no que estamos acostumados a pensar ou achando que a nossa razão é insuficiente para compreender o que se passa e, com isso, alterar uma realidade que não deveria se fazer enquanto tal. É possível que o “horror”, com o qual o cérebro não parece estar acostumado a lidar, por isso o choque, esteja pedindo uma resposta rápida. Nosso arcabouço de experiências não as tem tão rapidamente quanto as queremos ou precisamos ou achamos que precisamos para lidar interna e externamente com certos acontecimentos.
As imagens me provocam isso também. As imagens provocam isso em todas as pessoas, porque parecem ativar a sensação de vivermos o que se mostra, juntamente com os personagens da cena. A imagem nos coloca em cena, nos inclui num espaço e num tempo sem percebermos. É assim com a fotografia (por exemplo, não gosto de trabalhar com as cenas que retratam problemas sociais em branco e preto ou que se apeguem especificamente aos problemas porque parecem paralisar, mais do que o olhar, a ação) e parece ser mais forte com a imagem em movimento. Nesse caso, não precisamos falar a língua de quem vemos ser massacrado, não precisamos entender as legendas das falas ou que escrevem para acompanhar o vídeo. Apenas realizamos a imagem como se estivéssemos experienciando a cena, claro, como quem a vê sem forças para agir.
As imagens parecem ter esse poder e são quase sempre utilizadas para causar o pânico, o medo, às vezes, para defender respostas reacionárias, ainda mais segregacionistas e justificadoras da morte de certos grupos humanos. Para apregoar mais violência, são aliadas a certos discursos diretos e igualmente crus: “onde vai parar tudo isso?”; “o mundo está perdido!”; “a cidade está dominada por bandidos!”; “os cidadãos de bem estão correndo risco e não podem estar em sua casa em paz!”; etc.. Transportam valores e se tornam a locomotiva que nos envia para o mundo que as elites desejam criar, de insatisfação, de angústia, de medo, que alimenta o seu poder e a sua acumulação de riquezas.
Tudo se torna muito mais confuso quando observamos que vivemos num mundo em que as imagens de barbárie estão em toda parte, nos jogos eletrônicos, nos filmes, nas novelas, nos programas de TV... a nossa diversão se dá por meio da violência, que vamos naturalizando, que nos habituando a não pensar, a não criar experiências de reflexão e de ação que possam modificar uma realidade opressora. A violência, do nosso cotidiano, para nos chocar, precisa ser sempre maior, precisa ser sempre contra certas pessoas, precisa ser distante de nós, mas, de alguma forma, se torna violência, por dialogar conosco, com os nossos valores.
Ainda assim, a maneira como é abordada, a maneira como parecem se construir os discursos de violência na nossa sociedade, caro estudante, dá indícios de que se trata de uma forma capaz de nos paralisar diante de atos que se nos apresentam como violentos. Talvez, por um lado, nos façam precisar sempre de alguém que irá nos salvar e crer que nada mais nos cabe, por outro, parecem alimentar o desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Mas, como diante do sistema criado, ser justiceiro ou justiceira está proibido, que venha mais polícia, mais controle, mais execuções sumárias, mais tortura... porque o pânico nos incita mais e mais respostas passionais. Diante do medo, não há tempo para pensar, para construir a melhor resposta. Somos dominados e nos enforcamos, nós mesmos, com a corda que nos apresentam como saída para chegar ao outro lado do rio.
Quando nos deparamos com uma situação de violência de estado, causada pela exceção, pela barbárie política, que pede uma ação enquanto povo, uma ação capaz de mudar a convergência de forças, estamos igualmente paralisados, seja porque nos habituamos a buscar individualmente, no mundo do medo, os meios para a própria sobrevivência, seja porque, confusos pelo estarrecimento, não temos e não estamos construindo respostas que não sejam o fortalecimento da repressão do Estado e o desrespeito a direitos como forma de “manter” a vida em “comunidade”.
Alimentados pelo “horror”, somos incitados a apenas enxergar o “horror”. Adestrados pelo e para o pânico, vemos uma situação como essa, nos compadecemos, mas, paralisados pelo medo, não encontramos esperança. Vemos a violência mais evidente e vamos ficando mais distantes, enquanto coletividade, da ação transformadora. Ficamos parados!
Diante de um vídeo que expõe a barbárie no Egito e das conexões que se podem fazer com o universo cultural em que estamos inseridos, uma pergunta como “onde estão os direitos humanos?”, sentido do que você talvez indique ao me pedir algum comentário sobre direitos humanos, parece ser mesmo o mais comum.
Eu mesmo em face de sua demanda me senti, no primeiro momento, sem resposta. Ao parar para um instante de reflexão. Ao me fazer por diversas vezes a mesma pergunta que a sua reação (de negação de direitos humanos) frente à barbárie me impunha, realizei efetivamente a forma de pensar a que estou acostumado a ver se materializar na rua. Pude perceber, finalmente, o direito nascendo na rua.
É verdade, algumas vidas estão sendo gastas, mas esse gasto se dá em luta, por usufruto de um direito que não se tira pelo estado de exceção, o direito de resistência. Para que não seja em vão o gasto de vidas humanas, no entanto, melhor que a resistência gere uma vida nova, sem barbárie, mas seu resultado depende de muitos fatores nem sempre controláveis todos. Não há como prever o que virá. No primeiro momento, o que importa é a resistência. Não resistir é estar já derrotado. É entregar os pontos à barbárie. É dizer que ela venceu e que somos todos seus servos.
Caro estudante, diante do estado de exceção, só existe um direito humano, o direito de resistência. É ele que alimenta a ação de quem está exposto à violência extrema. Se, pelo lado do regime, não há direitos humanos porque o que importa é o poder por si mesmo, sem um critério material e formal de validade, não pessoas e o respeito a elas, ao seu direito de ser, de viver; por outro lado, para as pessoas que lutam, os direitos humanos estão por ser, fundados em um único e importante direito, o de seguir em luta, de seguir resistindo à opressão.
Eu poderia, dizer, tal Hannah Arendt, que, nesse caso concreto, não existem direitos humanos, porque não existe cidadania, isto é, falta o direito de ter direitos, nos termos em que ela emprega face ao regime nazista. Todavia, vendo pessoas em luta, acreditar nisso, seria como esquecer que o direito à resistência não precisa estar codificado, que não precisa ser dito por qualquer regime que seja. Ele existe pelas mãos de quem o realiza, sem espaços para separação entre o seu fazer e o seu pronunciar. Ou seja, não é abstrato, porque se faz na concretude da vida e para tornar concreto um modo de viver que não oprima, que não viole, que não admita a concentração de poder como um fetiche ao qual se apegam os seus detentores. É um direito que se exerce para que se faça um poder que mande obedecendo, como no princípio de poder constituído pelos zapatistas.
O direito humano que se insurge, diante da barbárie, é o direito de resistir e de lutar. Evidente, há outros modos de barbárie, diferentes da violência nua e crua, como a das ações militares no Egito (apoiadas financeiramente e com treinamento pelos Estados Unidos). Por exemplo, vivemos desde junho deste ano a violência desmedida das ações policiais desastrosas de contenção de manifestações políticas no Brasil, repetindo o que se vê em várias partes do mundo. Isso está perto de nós e nem sempre nos damos conta de que são igualmente fruto de um estado de exceção que vai se travestindo de democracia ou de uma democracia que vai assimilando, de forma sutil, os modos de ser de um estado de exceção. Por uma ação consciente de reconstituição dos fatos, de recontação dos acontecimentos, conforme interesses que não são propriamente das maiorias, perdemos a nossa capacidade de indignação e de lutar contra a barbárie do cotidiano. Até naturalizamos e gostamos dessa barbárie, que agora passa na televisão e convida os pobres e os negros a serem seus principais protagonistas, a serem os personagens da nossa diversão cujo cerne é impedir que vivam uma vida em plenitude e possam ser mais. Porque a plenitude dessas pessoas exige a plenitude de todos, o que é incompatível com um regime cuja base é a injustiça que o pereniza. Não que a violência apresentada no vídeo não seja grave. É gravíssima! Mas, demo-nos conta da nossa violência cotidiana também! Resistamos! Mesmo quando parecer que não há direitos, haverá sempre o direito de resistir.
Em estados de exceção, sejam eles claros ou obscuramente constituídos com o aumento das forças policiais, concentração de poder, vigilância extrema, impedimentos à circulação de pessoas e ideias, negação de direitos às maiorias, o que importa como direito humano fundamental é a resistência. É a luta que fará surgir de dentro das condições negadas, a afirmação das gentes, as condições, nos mínimos detalhes, para a vida com justiça.
As revoluções burguesas fizeram isso, tentaram construir a vida em seus mínimos detalhes para superar um regime que era prejudicial aos interesses da maioria. Mas, disso, ficou apenas o discurso da resistência e da emancipação. Era próprio do que se criava manter-se mais discursivamente do que se materializar, de fato, nas vidas das pessoas, no cotidiano das sociedades em que esse discurso de totalização de valores se implantou. A burguesia precisava das palavras para mudar uma realidade até o limite do que lhe era interessante.
Guardadas as diferenças, as ditaduras e os regimes fascistas também precisaram de discursos e de valores para tentarem reconstruir a vida nos mínimos detalhes. Em muitos casos, como fizeram os nazistas e os fascistas, para totalizar os modos de existência em comunidade que interessassem ao seu comando, também falavam em nome de uma luta contra a “barbárie”.
Quando falo em resistência, não estou falando das mudanças ao modo burguês, tampouco ao modo dos estados de exceção que surgiram como alguma forma de reação, como as ditaduras militares na América Latina e o regime nazista na Alemanha. Não é de construir regimes que, em nome da liberdade de alguns, permita outras formas de negação de direitos de que estou falando.
Agora, diante de tantos meios mais sofisticados de dominação e diante de tantos meios sofisticados de comunicar a violência, talvez, estejamos construindo meios também mais sofisticados de resistir, de denunciar a barbárie, de comunicar a nossa luta para o mundo, de buscar solidariedade... e, precisamos ir além, muito além, para não perder o fulgor a resistência. Precisamos resistir, resistir e resistir, como forma de construir um mundo novo, a partir de um direito que é grande em si, que é inimaginavelmente grande e grandioso, o direito de resistência.
Se posso fazer um comentário sobre direitos humanos, como me pede, caro estudante, esse comentário só pode ser sobre o único direito que parece restar àqueles que estão contra o golpe de estado no Egito, o direito de resistência. Esse é o direito humano que nos foge de imediato diante de imagens como essas que comigo compartilha, diante da violência escancarada sem qualquer esboço de vergonha, diante da paralisia da dor e do choque que a violência causa. Mas, tal como a fênix, é dessa mesma dor que surge o direito de fazer justiça social. É dessa mesma dor que renasce a esperança de um mundo novo possível para todos. Treinemos os nossos olhos para enxergá-la, mesmo quando tudo parecer obviamente diferente disso.
Aqui, o óbvio deve ser a esperança! Mas, a esperança não se constrói com espera. Ela é a materialização dialética da ação. Quanto mais lutamos, mas nos nutrimos de esperança. Quanto mais temos esperança, mais lutamos. É por isso, que ela não pode ser apagada de nossa juventude, como fazem as elites do mundo, com seus programas de TV, com suas músicas, com seus livros, com sua educação engenhosamente constituída como "neutra", com os valores que vêm acoplados às coisas do cotidiano que consumimos e desejamos consumir. Tudo isso apaga o brilho que precisamos carregar nos olhos desde sempre e para sempre.
Quem tem medo da esperança? Os oprimidos não podem ter medo da esperança. Não podem incorporar o opressor para serem eles mesmos molas propulsoras da opressão e da difusão de valores que não lhes servem. Por isso digo que precisamos sempre nutrir a vida de esperança e de luta plenos da pergunta "quem tem medo da esperança?"
Obrigado por me apresentar esse vídeo, caro estudante. Ele me emocionou e me nutriu de mais responsabilidade pelo mundo e pelos outros. Daí, a inspiração para a escrita longa e sensível. Espero que tenha paciência de ler e divulgar. Mais que tudo, que alimente os seus olhos de esperança e nunca perca o poder de resistir. Um abraço cheio de vontade do novo!


Humberto Góes

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Colectivo de Abogados Zapatistas (CAZ/México) denuncia agressões

O blogue da AJP acaba de receber o seguinte comunicado, diretamente do México. Por se tratar de importante grupo de advogados populares, ligado a não menos importante movimento popular como o EZLN, divulgamos:




A la Red contra la Represión y por la Solidaridad
A los adherentes a la SEXTA
A las Organizaciones e individuos en Resistencia


            Por este medio el Colectivo de AbogadosZapatistas (CAZ), denunciamos públicamente la escalada de agresiones, ahora la vandalización de la cual ha sido objeto, así como de la violenta ocupación de su sede por un grupo de desconocidos.

ANTECEDENTES DEL CAZ

            El Colectivo de Abogados Zapatistas (CAZ), somos un pequeño grupo de abogados, que con motivo del mayo rojo de 2006, en Atenco confluimos, en una dinámica de litigio y lucha social, ya no contra el aeropuerto, sino en el contexto de La Otra Campaña y la Sexta Declaración de la Selva Lacandona del EZLN, para asumir la defensa jurídica de nuestros compañeros de La Otra, que lo requirieran, detenidos los días 3 y 4, recluidos en “Santiaguito”, Almoloya de Juárez, sin embargo resultó que las bases del FPDT y las familias que fueron arrancadas de sus casas tampoco tenían abogado, por lo que terminamos defendiendo aproximadamente 180 de los 207 detenidos, unos cuantos eran de La Otra, sin embargo asumimos la defensa por todos los que lo pidieron y logramos hacer confluir dos vertientes, una eminentemente política y otra estrictamente jurídica, que llevó a la libertad absolutoria del 100%, sin duda el hecho de que los cinco abogados que asumimos la defensa somos adherentes de la Sexta Declaración de la Selva Lacandona del EZLN, permitió ese resultado y, lo más importante propició una incipiente organización horizontal de abogados litigantes, surgió el proyecto del CAZ, como instancia de defensa de los presos políticos y para la preparación de defensores, que a la luz de la Sexta, recibimos como único pago la satisfacción del deber cumplido. Fue así como surgió el CAZ un 8 de agosto de 2006, asumiendo los siguientes compromisos:

PRIMERO. Hacer del litigio social una militancia, entendida ésta como la lucha jurídica por la libertad de los presos políticos y la reivindicación de los derechos sociales.

SEGUNDO. Regirnos bajo los valores de la otra justicia: democracia, libertad, justicia, tolerancia, igualdad, equidad y solidaridad.

TERCERO. Contribuir a la formación de un nuevo pacto social que culmine en un congreso constituyente y una nueva constitución, bajo los principios de DEMOCRACIA, LIBERTAD y JUSTICIA.

CUARTO. Luchar por la erradicación de todos los delitos de lesa humanidad, señalados en el Estatuto de Roma, así como en contra de la impunidad de los perpetradores.

QUINTO. Impulsar la formación de Comités: A) De Defensa de Presos Políticos; B) De Formación de Defensores y Promotores de los Derechos Humanos.

SEXTO. Promover, el estudio, defensa, promoción y respeto de los derechos y cultura indígenas.

SEPTIMO. Reconocemos la lucha histórica tanto de nuestro General Emiliano Zapata Salazar, como la del Ejercito Zapatista de Liberación Nacional, reivindicando su lucha con el compromiso de actuar bajo los siguientes principios:


1.     Mandar obedeciendo.
2.     Proponer y no imponer.
3.     Bajar y no subir.
4.     Convencer y no vencer.
5.     Construir y no destruir.
6.     Representar y no suplantar.
7.     Servir y no servirse. 


En este contexto en el mes de julio de 2006, llevamos a cabo la recuperación del espacio de lo que fue la sede diplomática del Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional (FMLN) ubicada en Av. Benjamín Franklin # 231, tercer piso, Col. Hipódromo Condesa, Delegación Cuauhtémoc, Código Postal 06100, D.F., llamados para recuperarlo y habilitarlo por un  colectivo que se denomina la hormiga, quien se asumía como “responsable” del espacio, y se disponía a desalojarlo, toda vez que se había obligado mediante un contrato de comodato a entregar dicho inmueble al autonombrado administrador del edificio, quien se ostenta como dueño del inmueble. Cabe aclarar que en el 2011, el colectivo La hormiga, públicamente entregó las llaves y el espacio físico que ocupaba, a un grupo de supuestos salvadoreños, quienes, a su vez, también abandonaron el local. Al revisar la situación jurídica del inmueble, nos enteramos que cuando fue comprado quedo anotado en el Registro Público de la Propiedad y del Comercio a nombre de CONDUCTORES MONTERREY, S. A. adjudicatario judicial de dicho inmueble.

            Desde el momento en que ocupamos el espacio citado con antelación, en el marco de la criminalización de las protestas sociales, lo declaramos…

        …SEDE PARA LA DEFENSA DE  L@S PRES@S POLITI@S DEL PAIS  


En este sentido, durante 7 años de resistencia y ejercicio de la autonomía, hemos llevado a cabo la defensa jurídica de organizaciones, grupos, colectivos e individuos, sean o no sean adherentes de LA SEXTA, que han sido criminalizados por el Estado policiaco militar mexicano, a lo largo y ancho del territorio nacional. Asimismo se han dado talleres y asesorías jurídicas tomando como base el criterio en cita.

HECHOS QUE SE DENUNCIAN
                       
            En el año 2011 con mentiras, nos infiltraron usurpadores en nombre del FMLN, sin ninguna legitimidad, para hacer una “guerra de baja intensidad”, de hostigamiento permanente y toma de espacios, hasta mediados de 2012 en que el propio FMLN se deslindó de ellos, los desconoció y manifestó que no tienen ningún interés en relación con ese espacio, que ahora sabemos fue pagado con recursos públicos, pocos meses después de haber sido evidenciados los usurpadores dejaron de venir, dejando el colectivo La hormiga a una persona que aquí vive, quien ha porfiado en causar el mayor daño posible al CAZ, quien es el que consume las drogas, y ha causado destrozos y robado diversos objetos del espacio.

            Hoy nos enfrentamos a una vandálica ocupación de la sede del CAZ, llevada a cabo por un grupo de desconocidos, que durante 30 días de ocupación se han dedicado a hostigar a los miembros del CAZ y a las personas y colectivos que nos visitan y acuden a tomar los talleres impartidos, llegando inclusive al consumo consuetudinario de alcohol y marihuana, además de causar destrozos, mismos que consisten en los siguientes:

            La noche del jueves 27 de junio de 2013, fue vandalizada la oficina del  CAZ, ubicada en Benjamín Franklin 231, 3º piso, Condesa, esa noche rompieron los maceteros, regaron la tierra por todas partes, levantaron la alfombra, hicieron pintas en las paredes y canceles (sin firma), se robaron una reja metálica y rompieron una puerta de madera, al llegar a trabajar el viernes y percatarnos de los destrozos, decidimos colocar una puerta que evitara el paso a la sala, y con ello tratar de prevenir nuevos daños. Sin embargo en el fin de semana quitaron la puerta y en la sala colocaron una cama y en el cubo del elevador instalaron una cocina. Han convertido los espacios comunes en una vivienda.

            Hoy, a 7 años de la fundación del Colectivo de Abogados Zapatistas CAZ, en el marco de la violenta ocupación de su sede, ratificamos nuestros principios y estatutos que nos dieron vida y animan nuestro andar colectivo.

            Hoy, una vez más, nos disponemos a dar una lucha colectiva por la defensa no sólo de la sede del CAZ, sino sobre todo por la continuidad del proyecto que anima nuestro andar colectivo.

            Tenemos la legitimidad para defender nuestro lugar de trabajo, porque lo rescatamos, lo habilitamos y lo hemos usado para arrancar de la cárcel a cientos de compañeros y porque lo necesitamos para hacer el trabajo que, desde nuestra trinchera jurídica nos corresponde, en esta lucha de  largo aliento.  

            No es, ni ha sido nunca, intención del CAZ utilizar el apellido zapatista, para nuestro beneficio, tampoco para desvirtuar o suplantar la digna lucha que han mantenido los pueblos y comunidades zapatistas en resistencia.
 
            Hacemos un llamado urgente a todos los colectivos e individuos adherentes de la Sexta, organizaciones, grupos e individuos hermanos en resistencia, para que se mantengan atentos de los acontecimientos futuros.

ATENTAMENTE

Julio de 2013


COLECTIVO DE ABOGADOS ZAPATISTAS

DONATO AMADOR SILVA,
HÉCTOR ARCADIO GONZÁLEZ ANDONEGUI,
JUAN DE DIOS HERNÁNDEZ MONGE,
PEDRO RAÚL SUAREZ TREVIÑO,
ROBERTO LÓPEZ MIGUEL