31 de março/1º de abril
ontem foi hoje?
ou hoje é que é ontem?
("Dúvida revolucionária", de José Paulo Paes, no livro "Calendário perplexo")
A semana que passou e a que começa carregam em suas datas o peso de uma história ainda exilada; mais, ainda aprisionada. A história-exílio permanece degredada nos documentos políticos desterrados pelo medo de velhas e novas gerações de responsáveis pelo financiamento e prática da violência ditatorial dos anos de 1964 a 1980. A história-prisão continua acorrentada na inconsciência da perpetuação comezinha da tortura, da violência e da desumanização do cárcere e da fábrica, para dizer o mínimo. Uma semana se encerrou no dia 31 de março; a outra inicia no 1º de abril. É esta a semana que devemos desarquivar, fazendo lembrar o grande historiador Miguel León-Portilla que, em seu “A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos astecas”, traz como primeira manchete de seu livro a seguinte frase: “e tudo isso se passou conosco...”
Brasil, uma semana de ações e reações
Pelo Brasil afora, desde segunda-feira, dia 26 de março de 2012, várias mobilizações ganharam destaque nacional, em especial por efetuarem denúncias públicas daqueles que foram responsáveis pela ditadura civil-militar que assolou o país nas décadas de 1960, 70 e 80.
Inspirados em atos de justiça popular, como as “funas” das nações irmãs da América Latina, algumas mobilizações brasileiras trouxeram à tona o “escracho” de bons velhinhos de hoje, vilões moçoilos de nosso passado recente. Em pichações e rebuliços em frente às casas dos torturadores, se recria entre nós a consciência de nosso passado e ação de nosso presente. A mídia virtual foi abundante ao noticiar essas ações (como registramos na postagem Juventude se levanta contra a tortura, no Brasil), mas também foram abundantes os atos de CENSURA que se perpetuam nos veículos de comunicação hegemônicos, mesmo os que circulam sob a mão invisível da internet.
Nesta mesma semana, casos como o da Guerrilha do Araguaia ou nomes como os de Vladimir Herzog, Carlos Mariguela e Rubens Paiva voltaram ao noticiário e ao imaginário das esquerdas, certamente órfãs de seus lutadores mas, ao mesmo tempo, prenhes de história, porque a história jamais chegou ao seu fim.
E, talvez, o mais brutalmente importante: aos trancos e barrancos a sociedade de veias abertas consegue recolocar em pauta a ditadura civil-militar no plano da institucionalidade do estado brasileiro. O judiciário terá de enfrentar, sem pressupor a passividade popular, o problema da constitucionalidade da lei da anistia, assim como o executivo terá de nomear a Comissão da Verdade, percebendo que uma comissão que concilie ditadores e guerrilheiros é impossível. Obviamente, que a reação sempre aparece nesse momento, com manifestos e comemorações amputadas – mas, assim, ao menos os lados mostram seus dentes, afiam suas garras e têm de pagar com as conseqüências de seus atos.
Paraná, uma história que não cabe em uma semana
Mesmo nos mais desavisados cantos do Brasil, a questão da verdade sobre a ditadura, que se re-memora neste 31 de março e 1º de abril, veio à tona. Um exemplo é o estado natal deste que escreve – o Paraná.
De uma forma ou de outra, sempre esteve presente em minha vida a história da ditadura. Não só pelo fato de cedo me interessar por música popular, mas também por muito cedo conviver com essas histórias de sevícias, medo e autoritarismo. A mais exemplar delas é de um professor de um famoso colégio estadual da capital curitibana que, nos intervalos e finais de aula, contava aos ouvidos atentos e rebeldes a história do desaparecimento de seus companheiros de luta política e sua epopéia pelo cárcere, notadamente o pau-dee-arara.
As artes paranaenses também dão um representativo sinal ad convivência com este difícil passado. A música de Daniel Faria e os poemas de seu irmão, Hamilton. O livro exilado de Manoel de Andrade, que só foi repatriado em 2009 – os “Poemas para a liberdade”; os romances pitorescos de um professor de filosofia cassado em seus direitos políticos relatando os anos de repressão, nos antológicos “Alegres memórias de um cadáver” e “Antes que o teto desabe”; ou ainda as “Memórias torturadas (e alegres) de um preso político” que estão sendo encenadas no Festival de Teatro de Curitiba.
Tudo isso nos coloca diante de uma verdade que virou história-exílio.
Hamilton Faria recorre à imagética liberdade (como muitos outros por aqui a ela recorreram) e descreve a aporia de se querer o que não se conhece:
Liberdade Me perguntas o que é?Sei pouco, pois pouco vi.É água correndo,rio que não acaba nunca,terra sem fronteiras,gesto, espirro, nuvens,é o corpo, o corpo na gramaos cabelos molhados. É o sertão, a praia, o deserto,sorriso de vento e areiado pescador junto ao mar. Sei lá,o pouco me espanta. É pássaro de ousadiaferindo as asas no ar.
Manoel de Andrade, já no exílio, escreve um discurso de agradecimento aos estudantes peruanos, por terem concedido asilo a seus versos. O ano era 1970:
“Saúdo-vos com minha esperança ardente de poeta e, sobretudo, com minha fé imperecível de revolucionário, vislumbrando a minha, a nossa América, libertada e reconstruída para os nossos filhos e para aqueles que serão os herdeiros dos nossos sonhos. Saúdo-vos, irmãos, porque sei que se hoje estamos dispostos a cair é para que amanhã eles possam nascer já erguidos para a vida”.
Roberto Gomes inventa uma história real, no reencontro de perseguidos políticos num aeroporto do “novo” Brasil – o livro é “Antes que o teto desabe”:
“Conferem datas, nomes, pessoas, antigas manias, lugares, bebedeiras, badernas, olham-se com prazer, desconfiança, não examinam o rosto que aparece, mas o que sabem oculto por anos de fugas, desencontros, heroísmos juvenis, mortes gratuitas, gestos grandiosos, covardias, abraçam-se, não acreditam, afastam-se ligeiramente, medem-se de cima a baixo, dizem: mas não é possível!, voltam aos nomes, fatos, generais, esperanças, golpes, revoluções encenadas nas madrugadas de suas fantasias, tu estás com a mesma cara!, e a pesada sensação de que mentem, dizem a verdade, não sabem, descobrem, se perdem num mosaico eletrônico disperso durante tantos anos e agora faiscando em suas mentes, ficam alegras, riem, sentem um nó na garganta...”
E Ildeu Manso Vieira relata a desgraça de seu sepulcro em vida:
“Descobrimos aos poucos que a prisão era um processo genial que a reação encontrava para liquidar os revolucionários. Ela transformava-se em cemitério de heróis. Nem o cantar dos passarinhos nas alamedas vizinhas, nem as bolsas coloridas das Lojas Unidas com frutas saborosas e confeitos dos mais apetitosos, liberados pela PM serviam para acalmar a ira do velho guerreiro, que prometia sair da cadeia e tomar o poder”.
O hoje-ontem
|
Os chocantes "Voluntários da Pátria" e os nomes dos torturadores, na rua central de Curitiba |
Mas tudo isso é a verdade que querem anistiar. Por isso a nova semana deve se sublevar a si mesma: começa como dia da mentira, mas tem de se transformar o quanto antes em dias de verdade!
Os atos na Boca Maldita – tradicional lugar das manifestações públicas e políticas, mas também da proliferação do conservantismo paranaense – vêm, entre nós, a dizer algo a respeito dessa história toda, história-prisão que custa a se revelar ao povo brasileiro. Na segunda-feira, a juventude faz a sua parte por aqui (ver o vídeo Curitiba – Manifesto Levante Popular da Juventude); na quinta-feira, novos incômodos à cidade que completa seus 319 anos, mas que faz avistar à rua Voluntários da Pátria os torturados voluntariosos dos verdadeiros patriotas.
O Paraná que viu a Operação Marumbi e o Massacre de Medianeira, várias prisões, desaparecimentos e mortes, também participa desta aviltante página da história nacional. Muitos livros de história podem ser citados, mas fiquemos com apenas um que elabora um cruel ainda que importante “mapa da tortura”. No livro “Ex-presos políticos e a memória social da tortura no Paraná (1964-1978)”, Silvia Calciolari percebe o aumento do número de técnicas, seguindo o aperfeiçoamento da “franquia da tortura”, convalidando a tese da tecnologia ianque que fundamentava a doutrina da segurança nacional na América Latina.
Por tudo isso e muito mais que temos de nos dedicar a compreender nós mesmos a partir de nossa história exilada e aprisionada. Permitir a volta do exílio de nossa história depende, em muito, da abertura dos arquivos sobre o período e a séria investigação sobre as responsabilidades deles decorrentes. Desagrilhoar esta mesma história vai para além disso, imprescindindo da mudança do modo de produzir a nossa vida em sociedade, ou seja, imprescindindo de nossa libertação.
Infelizmente, exílio e prisão ainda marcam significativamente nossa história. Por isso é que lembramos esse “calendário perplexo”, do hoje que é ontem e do ontem que é hoje.
No dia da mentira, anistiaram a verdade... anistiaram a verdade de ser verdadeira, tornando a realidade um simulacro. Mas, ainda assim, tudo isso se passou conosco...