Por Uwira Xakriabá*
Na manhã de anteontem (14/06/2016) o Conselho Aty Guasu informou que, segundo o Cacique Lopes, a Comunidade do Tekoha Pyelito Kue, no município de Iguatemi-MS, passou a noite sem dormir por conta dos tiroteios, tentando se proteger dos pistoleiros que cercavam a aldeia. Ao mesmo tempo, mais de 70 fazendeiros e seus pistoleiros atacaram a tiros as comunidade Guarani e Kaiowa ferindo mais de dez indígenas e matando o jovem agente de saúde indígena Claudionor Souza. Enquanto isso, no Congresso Nacional, deputados pediam ao presidente interino da república, Michel Temer, que revogasse as portarias de demarcação de várias terras indígenas.
Na manhã de ontem (15/06/2016), com o nascer do sol veio a notícia de Santa Isabel, no Araguaia, do suicídio de mais um jovem Iny de apenas 17 anos. Enquanto isso discutimos em nossas redes sociais se apoiamos os parentes A, B ou C para ocupar cargos políticos no governo que não só permite, como financia direta e indiretamente o massacre de nosso povo. Enchemos o peito com o orgulho dos meninos para dizer que somos guerreiros, que vamos resistir. E aí me vem a pergunta que gera esse texto: Resistir para quê?
Se a nossa resistência não visar a resiliência ela não significará nada além do adiamento e da perpetuação do etnocídio de nossos povos colocado em curso desde a truculenta invasão e ocupação colonizatória portuguesa iniciada em 1.500. Não somos mais povos guerreiros! Pelo menos não temos sido! Somos a reserva técnica de gente para o abate com vistas a alimentar e acimentar com nosso próprio sangue o processo colonizatório ainda em curso no que se convencionou chamar de Brasil.
O Estado Colonizador Brasileiro a cada dia declara de forma mais aberta seu intento de nos dizimar à prestação, seja legitimando e financiando o agrocrime, que nos mata dia a dia impunemente, seja desrespeitando suas próprias leis que nos garantem alguns direitos. Fortes, resistimos, mas para que resistimos? Para assistir ao esbulho da Constituição Federal de 1988 que um dia reconhecemos? Para morrer sem terras num país com tanta terra que foi tomada? Ou para morrermos por desassistência na saúde, na educação e na manutenção de nossas culturas?
Resistimos hoje para morrer amanhã ou para assistirmos impotentes aos suicídios de nossos jovens sem perspectivas de um futuro que lhes permita viver como aquilo são, povos indígenas, que temos línguas, costumes e culturas próprios. Nossa resistência precisa tomar o rumo da resiliência, da reconstrução da autonomia roubada, da retomada de nossos territórios. Não somos nós os invasores, não somos nós que formamos milícias, não somos nós que invadimos as cidades para matar os “brancos”, não fomos nós que cruzamos um oceano com o intuito de destruir povos e tomar suas terras. Seríamos nós os bárbaros? Os selvagens?
Tem o Estado Democrático de Direito Brasileiro lugar para nossos povos? Que lugar é esse? Se as leis dos “brancos” só servem para criminalizar a nós e nossos parceiros, mas não serve para punir quem nos mata? O etnocídio no Brasil tem o brasão da república como símbolo de morte para nós e escudo para os assassinos poderosos que nos vitimam com sede insaciável de sangue indígena. O BNDES que financia o agronegócio, ao fazê-lo, subfinancia o etnocídio no Brasil.
O relatório Figueiredo está repleto de crimes de etnocídio contra nós, mas ninguém foi punido, não é, e não será, porque o etnocídio é um dos instrumentos de dominação e controle do Estado sobre nós. Não adianta ocuparmos cargos políticos no governo, não adianta assumir a FUNAI se o Ministério é da Injustiça para nós. Não adianta participarmos de conselhos e órgãos colegiados se essa participação só tem servido até aqui para legitimar ações contra nós mesmos. Qual a saída então?
A saída é esse país sem-vergonha fazer cumprir as leis que votou, punir nossos opressores assassinos, demarcar nossas terras como já deveria ter feito e nos garantir o direito de continuarmos existindo como povos. Às avessa do brado da ditadura gritamos agora nós povos indígenas: Brasil! Ame-nos ou deixe-nos!!
Qualquer coisa menos que isso nos dá o direito de rompermos com esse Estado, que se ilegítima ao não cumprir suas próprias leis e atentar contra nossa existência. Nos dá o direito de, resilientes, pensarmos em uma pátria indígena livre da opressão colonizatória. Se não fazemos parte do projeto chamado Brasil, se nosso lugar em sua história está apenas no passado, a partir do estupro de nossas mulheres para dar filhos mestiços aos colonizadores, não queremos mais pactuar com esse projeto de nação que não tem lugar para nosso povo.
Antes que saiam a dizer que não passo de um índio louco a pregar o rompimento com o Estado Brasileiro e a utopia de um Estado Nacional Indígena é necessário que reflitam nos fatos e pensem se a cada dia o Estado Brasileiro em suas ações, inações e omissões não nos declara a todos nós indígenas que vivemos aqui, antes mesmo do Brasil existir, guerra e guerra de extermínio!
Ou talvez eu seja realmente apenas um índio louco, figura de um passado remoto nacional fadado à extinção, talvez eu seja Y Jucá Pirama, que será assassinado na calada da noite, covardemente, traiçoeiramente, como tem sido a sina de meus irmãos Guarani, Kaiowa e tantos outros, todos vítimas do Brasil!
* Uwira Xakriabá é educador da etnia Xakriabá, vive entre os Asuriní do Xingu desde o final da década de 1990. Docente do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento do Campus de Altamira da UFPA, realizando Mestrado em Antropologia junto ao Programa de Pós Graduação em Antropologia (PPGA) na UFPA. É presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) de Altamira e Coordenador Adjunto do Fórum Nacional de Presidentes de CONDISI.