(Para
Guilherme Fiúza)
Brasília (DF), 21 de
agosto de 2013.
Caro estudante de
Direito da Universidade Federal de Goiás/Campus Cidade de Goiás,
No sábado 17 de agosto de 2013, pela manhã, você
me provocou com suas palavras, com sua angústia e com o seu estarrecimento ao
se deparar com um vídeo do massacre cometido pelo exército egípcio golpista nos
últimos dias. Você me deixou pensando no que poderia esperar da confiança
depositada em um militante de direitos humanos; no que você esperava ver
compartilhado; que diálogo poderia ser estabelecido a partir do que afirma: “parece um filme de ação, porém, com armas letais,
personagens e mortes reais. Você assiste a documentários, lê artigos,
reportagens inúmeras, mas nada vai te fazer sentir o que eu senti assistindo a
isso” (SIC). Isso ficou ainda mais evidente quando me direciona uma pergunta
que parece querer um alento ou algo que lhe alimente a esperança diante de
cenas de violência crua: “Professor Humberto Góes, algum comentário
sobre "direitos humanos"?”.
Eram efetivamente angustiantes
as imagens que você me apresentava. Segundo os noticiários, até a noite do dia
anterior, já eram mais de 700 (setecentos) mortos no Egito por causas
políticas.
Eu suponho que, talvez,
juntando essa informação com as imagens expostas no vídeo, o que tenha ficado
de imediato para você tenha sido a paralisia e a revolta diante do que choca. É
comum que, em face de situações extremas, nos sintamos atados, descrentes no
que estamos acostumados a pensar ou achando que a nossa razão é insuficiente
para compreender o que se passa e, com isso, alterar uma realidade que não
deveria se fazer enquanto tal. É possível que o “horror”, com o qual o cérebro
não parece estar acostumado a lidar, por isso o choque, esteja pedindo uma
resposta rápida. Nosso arcabouço de experiências não as tem tão rapidamente
quanto as queremos ou precisamos ou achamos que precisamos para lidar interna e
externamente com certos acontecimentos.
As imagens me provocam
isso também. As imagens provocam isso em todas as pessoas, porque parecem
ativar a sensação de vivermos o que se mostra, juntamente com os personagens da
cena. A imagem nos coloca em cena, nos inclui num espaço e num tempo sem
percebermos. É assim com a fotografia (por exemplo, não gosto de trabalhar com
as cenas que retratam problemas sociais em branco e preto ou que se apeguem
especificamente aos problemas porque parecem paralisar, mais do que o olhar, a
ação) e parece ser mais forte com a imagem em movimento. Nesse caso, não
precisamos falar a língua de quem vemos ser massacrado, não precisamos entender
as legendas das falas ou que escrevem para acompanhar o vídeo. Apenas
realizamos a imagem como se estivéssemos experienciando a cena, claro, como
quem a vê sem forças para agir.
As imagens parecem ter
esse poder e são quase sempre utilizadas para causar o pânico, o medo, às
vezes, para defender respostas reacionárias, ainda mais segregacionistas e
justificadoras da morte de certos grupos humanos. Para apregoar mais violência,
são aliadas a certos discursos diretos e igualmente crus: “onde vai parar tudo
isso?”; “o mundo está perdido!”; “a cidade está dominada por bandidos!”; “os
cidadãos de bem estão correndo risco e não podem estar em sua casa em paz!”;
etc.. Transportam valores e se tornam a locomotiva que nos envia para o mundo
que as elites desejam criar, de insatisfação, de angústia, de medo, que
alimenta o seu poder e a sua acumulação de riquezas.
Tudo se torna muito
mais confuso quando observamos que vivemos num mundo em que as imagens de
barbárie estão em toda parte, nos jogos eletrônicos, nos filmes, nas novelas,
nos programas de TV... a nossa diversão se dá por meio da violência, que vamos
naturalizando, que nos habituando a não pensar, a não criar experiências de
reflexão e de ação que possam modificar uma realidade opressora. A violência, do
nosso cotidiano, para nos chocar, precisa ser sempre maior, precisa ser sempre
contra certas pessoas, precisa ser distante de nós, mas, de alguma forma, se
torna violência, por dialogar conosco, com os nossos valores.
Ainda assim, a maneira
como é abordada, a maneira como parecem se construir os discursos de violência
na nossa sociedade, caro estudante, dá indícios de que se trata de uma forma capaz
de nos paralisar diante de atos que se nos apresentam como violentos. Talvez,
por um lado, nos façam precisar sempre de alguém que irá nos salvar e crer que
nada mais nos cabe, por outro, parecem alimentar o desejo de fazer justiça com
as próprias mãos. Mas, como diante do sistema criado, ser justiceiro ou
justiceira está proibido, que venha mais polícia, mais controle, mais execuções
sumárias, mais tortura... porque o pânico nos incita mais e mais respostas
passionais. Diante do medo, não há tempo para pensar, para construir a melhor
resposta. Somos dominados e nos enforcamos, nós mesmos, com a corda que nos
apresentam como saída para chegar ao outro lado do rio.
Quando nos deparamos
com uma situação de violência de estado, causada pela exceção, pela barbárie
política, que pede uma ação enquanto povo, uma ação capaz de mudar a
convergência de forças, estamos igualmente paralisados, seja porque nos habituamos
a buscar individualmente, no mundo do medo, os meios para a própria
sobrevivência, seja porque, confusos pelo estarrecimento, não temos e não estamos
construindo respostas que não sejam o fortalecimento da repressão do Estado e o
desrespeito a direitos como forma de “manter” a vida em “comunidade”.
Alimentados pelo
“horror”, somos incitados a apenas enxergar o “horror”. Adestrados pelo e para
o pânico, vemos uma situação como essa, nos compadecemos, mas, paralisados pelo
medo, não encontramos esperança. Vemos a violência mais evidente e vamos
ficando mais distantes, enquanto coletividade, da ação transformadora. Ficamos
parados!
Diante de um vídeo que
expõe a barbárie no Egito e das conexões que se podem fazer com o universo
cultural em que estamos inseridos, uma pergunta como “onde estão os direitos
humanos?”, sentido do que você talvez indique ao me pedir algum comentário
sobre direitos humanos, parece ser mesmo o mais comum.
Eu mesmo em face de sua
demanda me senti, no primeiro momento, sem resposta. Ao parar para um instante
de reflexão. Ao me fazer por diversas vezes a mesma pergunta que a sua reação
(de negação de direitos humanos) frente à barbárie me impunha, realizei
efetivamente a forma de pensar a que estou acostumado a ver se materializar na
rua. Pude perceber, finalmente, o direito nascendo na rua.
É verdade, algumas
vidas estão sendo gastas, mas esse gasto se dá em luta, por usufruto de um
direito que não se tira pelo estado de exceção, o direito de resistência. Para
que não seja em vão o gasto de vidas humanas, no entanto, melhor que a
resistência gere uma vida nova, sem barbárie, mas seu resultado depende de
muitos fatores nem sempre controláveis todos. Não há como prever o que virá. No
primeiro momento, o que importa é a resistência. Não resistir é estar já
derrotado. É entregar os pontos à barbárie. É dizer que ela venceu e que somos
todos seus servos.
Caro estudante, diante
do estado de exceção, só existe um direito humano, o direito de resistência. É
ele que alimenta a ação de quem está exposto à violência extrema. Se, pelo lado
do regime, não há direitos humanos porque o que importa é o poder por si mesmo,
sem um critério material e formal de validade, não pessoas e o respeito a elas,
ao seu direito de ser, de viver; por outro lado, para as pessoas que lutam, os
direitos humanos estão por ser, fundados em um único e importante direito, o de
seguir em luta, de seguir resistindo à opressão.
Eu poderia, dizer, tal
Hannah Arendt, que, nesse caso concreto, não existem direitos humanos, porque
não existe cidadania, isto é, falta o direito de ter direitos, nos termos em
que ela emprega face ao regime nazista. Todavia, vendo pessoas em luta,
acreditar nisso, seria como esquecer que o direito à resistência não precisa
estar codificado, que não precisa ser dito por qualquer regime que seja. Ele
existe pelas mãos de quem o realiza, sem espaços para separação entre o seu
fazer e o seu pronunciar. Ou seja, não é abstrato, porque se faz na concretude
da vida e para tornar concreto um modo de viver que não oprima, que não viole,
que não admita a concentração de poder como um fetiche ao qual se apegam os
seus detentores. É um direito que se exerce para que se faça um poder que mande
obedecendo, como no princípio de poder constituído pelos zapatistas.
O direito humano que se
insurge, diante da barbárie, é o direito de resistir e de lutar. Evidente, há
outros modos de barbárie, diferentes da violência nua e crua, como a das ações
militares no Egito (apoiadas financeiramente e com treinamento pelos Estados
Unidos). Por exemplo, vivemos desde junho deste ano a violência desmedida das ações
policiais desastrosas de contenção de manifestações políticas no Brasil,
repetindo o que se vê em várias partes do mundo. Isso está perto de nós e nem
sempre nos damos conta de que são igualmente fruto de um estado de exceção que
vai se travestindo de democracia ou de uma democracia que vai assimilando, de
forma sutil, os modos de ser de um estado de exceção. Por uma ação consciente
de reconstituição dos fatos, de recontação dos acontecimentos, conforme
interesses que não são propriamente das maiorias, perdemos a nossa capacidade
de indignação e de lutar contra a barbárie do cotidiano. Até naturalizamos e
gostamos dessa barbárie, que agora passa na televisão e convida os pobres e os
negros a serem seus principais protagonistas, a serem os personagens da nossa
diversão cujo cerne é impedir que vivam uma vida em plenitude e possam ser
mais. Porque a plenitude dessas pessoas exige a plenitude de todos, o que é
incompatível com um regime cuja base é a injustiça que o pereniza. Não que a
violência apresentada no vídeo não seja grave. É gravíssima! Mas, demo-nos
conta da nossa violência cotidiana também! Resistamos! Mesmo quando parecer que
não há direitos, haverá sempre o direito de resistir.
Em estados de exceção,
sejam eles claros ou obscuramente constituídos com o aumento das forças
policiais, concentração de poder, vigilância extrema, impedimentos à circulação
de pessoas e ideias, negação de direitos às maiorias, o que importa como
direito humano fundamental é a resistência. É a luta que fará surgir de dentro
das condições negadas, a afirmação das gentes, as condições, nos mínimos
detalhes, para a vida com justiça.
As revoluções burguesas
fizeram isso, tentaram construir a vida em seus mínimos detalhes para superar
um regime que era prejudicial aos interesses da maioria. Mas, disso, ficou
apenas o discurso da resistência e da emancipação. Era próprio do que se criava
manter-se mais discursivamente do que se materializar, de fato, nas vidas das
pessoas, no cotidiano das sociedades em que esse discurso de totalização de
valores se implantou. A burguesia precisava das palavras para mudar uma
realidade até o limite do que lhe era interessante.
Guardadas as
diferenças, as ditaduras e os regimes fascistas também precisaram de discursos
e de valores para tentarem reconstruir a vida nos mínimos detalhes. Em muitos
casos, como fizeram os nazistas e os fascistas, para totalizar os modos de
existência em comunidade que interessassem ao seu comando, também falavam em
nome de uma luta contra a “barbárie”.
Quando falo em
resistência, não estou falando das mudanças ao modo burguês, tampouco ao modo
dos estados de exceção que surgiram como alguma forma de reação, como as
ditaduras militares na América Latina e o regime nazista na Alemanha. Não é de
construir regimes que, em nome da liberdade de alguns, permita outras formas de
negação de direitos de que estou falando.
Agora, diante de tantos
meios mais sofisticados de dominação e diante de tantos meios sofisticados de
comunicar a violência, talvez, estejamos construindo meios também mais
sofisticados de resistir, de denunciar a barbárie, de comunicar a nossa luta
para o mundo, de buscar solidariedade... e, precisamos ir além, muito além,
para não perder o fulgor a resistência. Precisamos resistir, resistir e
resistir, como forma de construir um mundo novo, a partir de um direito que é
grande em si, que é inimaginavelmente grande e grandioso, o direito de
resistência.
Se posso fazer um
comentário sobre direitos humanos, como me pede, caro estudante, esse
comentário só pode ser sobre o único direito que parece restar àqueles que
estão contra o golpe de estado no Egito, o direito de resistência. Esse é o
direito humano que nos foge de imediato diante de imagens como essas que comigo
compartilha, diante da violência escancarada sem qualquer esboço de vergonha,
diante da paralisia da dor e do choque que a violência causa. Mas, tal como a
fênix, é dessa mesma dor que surge o direito de fazer justiça social. É dessa
mesma dor que renasce a esperança de um mundo novo possível para todos.
Treinemos os nossos olhos para enxergá-la, mesmo quando tudo parecer obviamente
diferente disso.
Aqui, o óbvio deve ser
a esperança! Mas, a esperança não se constrói com espera. Ela é a
materialização dialética da ação. Quanto mais lutamos, mas nos nutrimos de
esperança. Quanto mais temos esperança, mais lutamos. É por isso, que ela não
pode ser apagada de nossa juventude, como fazem as elites do mundo, com seus
programas de TV, com suas músicas, com seus livros, com sua educação
engenhosamente constituída como "neutra", com os valores que vêm
acoplados às coisas do cotidiano que consumimos e desejamos consumir. Tudo isso
apaga o brilho que precisamos carregar nos olhos desde sempre e para sempre.
Quem tem medo da
esperança? Os oprimidos não podem ter medo da esperança. Não podem incorporar o
opressor para serem eles mesmos molas propulsoras da opressão e da difusão de
valores que não lhes servem. Por isso digo que precisamos sempre nutrir a vida
de esperança e de luta plenos da pergunta "quem tem medo da
esperança?"
Obrigado por me apresentar
esse vídeo, caro estudante. Ele me emocionou e me nutriu de mais responsabilidade
pelo mundo e pelos outros. Daí, a inspiração para a escrita longa e sensível.
Espero que tenha paciência de ler e divulgar. Mais que tudo, que alimente os
seus olhos de esperança e nunca perca o poder de resistir. Um abraço cheio de
vontade do novo!
Humberto Góes