terça-feira, 30 de novembro de 2010

Defenda a defensoria pública!: para banir um direito sonegado

Na última semana, a defensoria pública estadual esteve em pauta no Paraná. Apenas o Paraná e Santa Catarina não possuem a estrutura regulamentada por lei, o que se apresenta como um descaso para com a população destes locais e um déficit para a organização da assessoria jurídica no país. Após uma audiência pública sobre a defensoria na Assembléia Legislativa (dia 23/11) e um ato de apoio para sua criação na Universidade Federal do Paraná (dia 24/11), o debate se reascendeu entre os trabalhadores e os estudantes do direito paranaenses. Trata-se de uma verdadeira cruzada que merece toda nossa atenção. Por isso, com o intuito de ressaltar mais esta discussão, divulgamos aqui no blogue um texto-manifesto da professora da UFPR, Priscilla Placha Sá, que está acompanhando de perto esta luta, a qual já recebeu várias adesões no estado, em defesa da criação da instituição estadual de defensoria pública.


Defenda a Defensoria Pública!
por Priscilla Placha Sá, professora da UFPR e da PUCPR, membro do Núcleo de Direito Processual Penal do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR e advogada criminal no Paraná

Já se disse muito sobre o lugar que a Defensoria Pública tem no texto constitucional, e Constituição não é só texto: há ali princípios republicanos, cuja concepção vai muito além de qualquer disposição estética. Estes princípios são história, são o insight da democracia, constituem lugares e dão ensejo às marcas do projeto político que se quer ter em um país.

E é nesta Constituição que aparece a tal Defensoria Pública, aquela cujos contornos da coligação igualdade e liberdade não se fizeram sentir em ares paranaenses. E é preciso que se diga já, sem qualquer demérito aqueles bravios Advogados que hoje atuam lá na estrutura precária do Estado, ou nos Núcleos de Prática Jurídica, ou mesmo em ações isoladas, ou dentro de entidades, que não é qualquer Defensoria Pública que o Paraná quer ou merece.


A propósito das ações que se faz como se Defensoria Pública, mesmo lá na própria, é de dizer que (infelizmente, no colapso social que se vive, ante a completa negativa da implementação de direitos sociais para boa parte dos paranaenses) ainda é muito pouco.

Esta Defensoria Pública de que falamos hoje é uma Defensoria Pública como instituição, porque só como instituição é que se vai dialogar no mesmo degrau com os poderes públicos na defesa intransigente daqueles deserdados do pacto social; é ela quem vai atuar coletivamente em nome dos cidadãos; é ela quem vai diminuir a estarrecedora cifra de presos provisórios e de adolescentes apreendidos.

Não é preciso muito – se olhamos para qualquer instituição estabelecida – para dar conta da força que tem o seu lugar como instituição. Chego a me perguntar, mas não posso admitir que a resposta fosse: que há certo temor de uma instituição que se estruture tendo em conta a defesa e a assistência jurídica àqueles que se acostumaram a ficar nas filas para receber apenas migalhas de um Estado que não os reconhece, ou ao menos não os trata, como cidadãos.

Não é por outro motivo que a disposição constitucional estatuiu que as Defensorias Públicas têm que contar com estrutura administrativa, funcional e orçamentária própria, pois é ela quem vai dispor desta estrutura, fazer seu planejamento e dar os encaminhamentos legais e no âmbito dos poderes públicos. Aliás, como fazem exatamente o Ministério Público e o Poder Judiciário. Se a Defensoria Pública custa, não posso imaginar que o Poder Judiciário e o Ministério Público, sejam graciosos, sem nenhum demérito a quem quer que seja.

Muito se discute na história infeliz de uma não Defensoria que seu maior entrave é o orçamento. É só ver, por exemplo, o caloroso debate atual no Paraná; já se devendo esclarecer - e isso é de sabença de qualquer gestor público – que a instituição da carreira não implica já no dispêndio dos valores para instalá-la em sua completude.

Um Poder Executivo e um Poder Legislativo que tenham como prioridade o trato daqueles que não tem voz tampouco acessibilidade ao poder já teriam dado conta em suas contas, fosse ela uma efetiva prioridade de incluí-la nas “contas de chegar” do orçamento público.


O fato é que se conclui, que esta política trabalha com o bordão: dê importância para quem é importante.


Mas é de ressaltar que o custo da não implantação da Defensoria Pública será alto, e também deve ser lido como um alto custo político.


Quantos cargos, aumentos e outros não têm sido votados e encaminhados para a gestão e a inclusão no orçamento?


O que de fato não se pode negar é que a instituição e a estrutura são de todo importante.


Tomemos como exemplo o III Diagnóstico da Defensoria Pública, em que o Estado do Paraná não respondeu (pelo menos é o que consta da publicação oficial) a nenhuma pergunta sobre o orçamento: nem de onde vem atualmente as receitas, nem quais são os salários dos defensores, nem quanto custa manter a defensoria pública. Desconhecemos, parece, o princípio da transparência.


Todavia, em outros momentos é possível ver que vamos muito mal: há somente um único Defensor Público que atende aqui a Vara dos Adolescentes em Conflito com a Lei, e no período analisado (último semestre de 2009) atendeu (pasmem!) a 1.500 termos de apreensão; no mesmo período, o Rio de Janeiro que tem 108 Defensores Públicos apenas para esta área, atendeu 1.050 termos de apreensão.


Neste item duas coisas devem ser frisadas para ver o descalabro que aqui se estabelece: os 1500 devem ser unicamente de Curitiba, pois é sabido que não há estrutura no interior do Estado e mesmo que houvesse seria estranho imaginarmos (com toda a boa vontade do mundo) que ele fosse itinerante. Já no Rio de Janeiro, os 1050 termos são do Estado todo. A propósito de dizer que: no Estado do Paraná, segundo o mesmo Diagnóstico, são 106 pessoas, dentre servidores, defensores e estagiários no total aqui no Paraná. No Rio de Janeiro, em uma única área de atuação são 108.


A coisa começa cedo aqui para quem não é importante: tão logo o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado instalou-se a vara para punir os adolescentes em conflito com a lei (lá na década de 90), mas só há 4 anos é que se criou a Delegacia para apurar crimes contra os adolescentes.


O paradoxo é inevitável e dá conta de uma vocação repressiva inegável de um Estado que só aparece para a população economicamente carente em sua faceta policial.


Na mesma linha, estão as Delegacias de Polícia, que – pior dos que as masmorras da Idade Média (conhecidas de muitos, apenas dos livros de história do direito penal) – detem a maior população de presos provisórios do Brasil e isso em termos absolutos e em condições que são absolutamente degradantes.


São mais de 17.000 pessoas presas aguardando julgamento, em sua grande maioria homens entre 18 e 25 anos, primários, e autores de crimes patrimoniais sem violência. Quando não pela tal Lei Maria da Penha. Diga-se que, lá no Juizado de Violência Doméstica, há somente um Defensor Público, e eu não sei se ele atende à vítima da violência doméstica ou o autor do fato (?!).


Adolescente apreendido, adulto preso, ambos pertencem (se não forem pai e filho) a famílias completamente solapadas pela pobreza de um Estado seletivo que as enfileira nos hospitais, nas portas das escolas, e nos sem-fim ou nos confins dos serviços de assistência e assessoria jurídica gratuita. Essa mesma gente que tem seus parcos salários consumidos por despesas de sobrevivência, que vê seus avós terem suas aposentadorias arrebatadas “benevolentes” serviços de empréstimo.


Sem defesa, sem direitos.


É só dar uma volta aqui na XV mesmo, ou seguir até a Rodoviária Velha; um pouco mais longe chegamos ao Alto Maracanã, Jardim Simone, Vila Sandra, e vamos até o município de Cruz Machado, próximo à União da Vitória onde há elevado índice de cirrose hepática infantil. Se alguém está em dúvida, é exatamente por ingestão de bebida alcoólica, desde a gestação.


Infelizmente os altos dados que ostentamos em termos gerais do IDH são relativos, e amenizam-se pela vida boa que poucos levam, ou por critérios deveras questionáveis.


Não se trata de constranger Vossas Senhorias, mas de ressaltar a premente necessidade de instituir o lugar dentro do sistema político do Estado que tem por determinação constitucional a obrigação de exigir dos poderes públicos uma vida minimamente digna.


A perversidade de argumentos outros soa perversa, se não sádica, para esta gente que não quer ser vista por ninguém. A invisibilidade social é uma das marcas deletérias e vis que podemos destinar aos homens.


Esta gente toda não quer favor, nem caridade.


22 anos é uma vida ou muitas mortes!


São muitas ações prescritas, muitos direitos lesados, danos agora irreparáveis, gente despejada, gente que já se foi e os que aqui ficaram não tiveram como demandar por eles.


O vácuo do lugar destinado à Defensoria Pública não será ocupado por ninguém; somente ela pode erguer-se altiva – com autonomia administrativa, financeira e estrutural – estatuída nos moldes constitucionais.


Estas pessoas todas (as não importantes) têm vez e voz na vocação desta Universidade, cuja história se marca pela sua postura independente e consciente responsabilidade social.


E numa fala conjunta da Reitoria, na manifestação unânime do Conselho Universitário – órgão máximo desta entidade, da Faculdade de Direito, por seu Setorial, pela Pós-Graduação com o Núcleo de Direito Processual Penal, que cuidará do Observatório da Implantação da Defensoria Pública do Estado do Paraná, a Universidade Federal do Paraná conclama toda a comunidade paranaense, entidades, instituições de ensino, professores, acadêmicos, autoridades a apoiarem efetivamente a imediata implantação da Defensoria Pública, dando força a este Ato Público, cujo nome traduz aquilo que pensamos seja o mínimo para iniciarmos uma conversa que se pretenda democrática: DEFENDA A DEFENSORIA PÚBLICA!



Conferir as notícias sobre a mobilização paranaense:

- Sociedade se mobiliza pela criação da Defensoria Pública no Paraná;

- UFPR apoia implementação de Defensoria Pública no Paraná;

- ANADEP participa de ato em defesa da Defensoria Pública do Paraná.


domingo, 28 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (2)


Sigo, aqui, minha reflexão sobre a universidade popular (iniciada na postagem do último domingo) e não sem considerar o peso que tal reflexão tem entre-nós, uma vez que gera muita expectativa e paixão. Os limites a que estou submetido são óbvios, em especial por ser exercício de (ainda) livre pensante, o que torna impossível uma autêntica universidade alternativa (para lembrar de minha última proposta em classificar a universidade popular conforme seus níveis de alternatividade: universidade de combate; uso alternativo da universidade; e universidade alternativa). Assim, quero frisar: este esboço reflexivo é incompleto, mas segue uma linha mínima, a qual devo, por ora, evidenciar. Trata-se de resgatar o histórico insurgente da universidade popular em nossa América (tarefa de minha primeira postagem), sendo exemplares as experiências do México e de Córdoba; colocar o problema da universidade popular no centro das preocupações do projeto de libertação do continente latino-americano (tarefa de hoje), seja como ponto a ser enfrentado com mais fôlego pelas teorias de libertação, seja como resultado das práticas revolucionárias vivenciadas na América Latina; e projetar a universidade popular, no encontro entre as suas formas de transição do que se tem hoje com o que se quer também hoje, tendo como referência a práxis dos movimentos populares insurgentes (tarefa do domingo próximo).

Inicio a reflexão de hoje perguntando: por que resistimos tanto em pensar nos conteúdos da universidade popular em nome de sua forma? Por que resistimos tanto em pensar na transição de uma universidade que está de costas para a realidade para uma que seja o seu oposto? Por que colocamos o processo educativo como o ponto gravitacional da mudança da sociedade em que vivemos?

Pois bem, meu primeiro rascunho de resposta - ainda que sem pretensão de eliminar as complexidades inerentes a esta problemática - vai no sentido de perceber que, em geral, se aposta em uma universidade que leve a seu reboque o processo revolucionário de transformação da realidade. Ou seja, antes a nova universidade, depois a nova sociedade. A meu ver, ingenuidade. Obviamente, não devemos cair em simplistas argumentos de quem vem antes, a subjetividade renovada ou a renovação das estruturas. Eis aí um processo dinâmico e envolvido na produção da vida, a qual aponta para algo que nunca pode ser esquecido pelos críticos: a práxis. A universidade popular é o todo que envolve forma, conteúdo e implementação do novo. É a unidade que dará a autenticidade ao projeto de sua popularização cujo significado está muito mais próximo ao de socialização que ao de popularidade.

É neste sentido que devemos estar atentos, todos nós, para o perigo do espontaneísmo educacional, o qual se revela como o contrário lógico da universidade popular alternativa. Daí que, como eu dizia, faz sentido pensar sobre este assunto a partir de uma gnosiologia liminar e de libertação desde a América Latina. Para mim, esta perspectiva não é suficiente por si, fazendo-se necessário pôr os olhos sobre a práxis revolucionária continental, assim como também pôr os pés no chão e as mãos na massa. A despeito de isso, porém, um conjunto de teorias de libertação tem muito a nos oferecer, no intuito de não jogarmos fora os grandes projetos teóricos que envolveram os latino-americanos, em especial no último século. É certo relembrarmos de um Mariátegui, como já fizemos, ou mesmo considerar a figura de um libertador e educador popular, como José Marti. Menos certo, contudo, é descuidar da experiência histórica levada a cabo no último meado do século XX, em termos de educação popular.

A proposta histórica de Paulo Freire não é fruto do acaso. Duas ordens de elementos se avizinham dela e dão-lhe um sentido inalcançável caso nos afastemos de tais ordens. Por um lado, Freire segue, de uma maneira ou de outra, o projeto de educação pública brasileira iniciada por Anísio Teixeira e sua aproximação, de teor nacionalista, com as classes populares (conferir a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira). Por outro lado, Paulo Freire é fruto de um momento histórico em que fervilhavam experiências revolucionárias e que fizeram surgir as teorias de libertação latino-americanas, a partir da perspectiva dos "oprimidos".

Vejamos o que esta dupla genealogia nos informa. Com Anísio Teixeira, procura-se cristalizar no Brasil a educação para as massas. De alguma forma, este legado é assumido pelo ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros e sua versão nacional-desenvolvimentista do Brasil seria assumida em larga medida por Freire nos seus primeiros escritos e suas pioneiras ações. No entanto, é insuficiente dar mostras dessa tradição a partir da qual Paulo Freire se forjou (como o é, igualmente, colocá-lo no rol dos católicos progressistas). De uma banda, a "escola nova" de Anísio Teixeira enquistava-se de um certo liberalismo pedagógico (ainda que moderado) - o qual é essencial de ser entendido para afastarmos de vez suas infensas e deletérias influências, dentre as quais se destaca o espontaneísmo educacional e o papel secundário do professor no ato pedagógico -; de outro flanco, o isebianismo teve uma muito curta duração para os propósitos a que se pretendia dedicar, tais quais a reforma do Brasil e uma nova forma de pensar a realidade nacional. Neste caso, cabe ressaltar as figuras de Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, ambos homenageados por Freire em seus textos, sendo que o primeiro nos deixaria uma profunda crítica ao colonialismo intelectual e o segundo a perspectiva da construção de uma universidade nacional, a qual seria seguida de perto por Darci Ribeiro - ainda que este tenha sido um anisiano confesso (para este debate, confrontar os textos de Vieira Pinto, "A questão da universidade", e Ribeiro, "A universidade necessária" - vários livros deste último disponíveis em: Fundação Darci Ribeiro).

Paulo Freire, todavia, logo se desvencilharia de uma submissão a esta herança (que, em grande medida, merece ser resgatada) e apresentar-se-ia com um pensamento inovador. Se em seu "Educação como prática da liberdade" o pedagogo ainda é um nacionalista, em seus escritos seguintes, já redigidos no exílio, como "Extensão ou comunicação?" e "Pedagogia do oprimido", Freire já dá mostras de seu materialismo histórico (ver a Biblioteca Digital Paulo Freire). Todo o seu percurso como educador, porém, traria a marca de um grande projeto pedagógico para o Brasil e deve sempre ser relembrado: para além de a alfabetização de adultos, Paulo Freire formulou um "sistema" de educação alternativa que previa uma universidade popular de transição a partir da extensão universitária, coroando-se com um Instituto de Ciências do Homem e um Centro de Estudos Internacionais, voltado para o terceiro mundo. Esta perspectiva de totalidade reflete a preocupação freireana com respeito à práxis dos trabalhadores e sua tomada de poder, o que passaria pela educação e universidade populares. Nesse sentido é que se pode retomar a questão: o que é conscientização? Certamente, não é dar consciência a ninguém, mas sim um trabalho conjunto de troca mútua, em que todos aprendem e ensinam, mas com um objetivo indene, a revolução.

Mas já que falamos de "alternatividade", esclareçamos o que vem ela a significar. Não há, entrementes, menção a uma proposta alternativa que pretenda conviver com o "egotivo" (ego X alter), ou seja, com o que está-aí, com o hegemônico. Trata-se de uma alternativa que supere o estado de coisas da universidade elitista de hoje, mesmo que isso não signifique desprezar suas contra-hegmonias internas.

Por isso a importância de se pensar a universidade popular desde a América Latina, mas também trabalhar para ela. Assim, as experiências revolucionárias pelas quais o continente passou são efetivos testemunhos. Ainda que nos faltem elementos, é inegável que a socialização do ensino em Cuba tornou-se possível com a revolução de 1959, assim como o socialismo do século XXI também tem investido nisso (e, dessa forma, abarcamos o ciclo revolucionário latino-americano tão destacado pelas teorias de libertação, em especial por Enrique Dússel: Cuba, Chile, Nicarágua, Chiapas, Venezuela, Bolívia e Equador; ainda assim, há de se atentar para os limites e contradições de todos estes processos, mesmo aqueles já findados).

Todo este conjunto de experiências práticas e teóricas deve ser tema da universidade popular. De nada adianta apostarmos na "forma" como sendo o carro-chefe desta discussão. Muito pouco resolveremos o nosso problema, caso creiamos que o diálogo pode melhorar o ensino jurídico se nos mantivermos aferrados ao eurocentrismo teórico e ao etnocentrismo das práticas. Muitíssimo pouco se avançará, caso entendamos ingenuamente que a universidade popular deve ser expressão democrática do respeito às diferenças, se estas acentuarem o mercado de trabalho e as técnicas que instrumentalizam o mundo de hoje. Pode ser que estejamos, com a forma dialógica, envidando um uso alternativo da universidade, mas a sua alternatividade revolucionária estará distante ainda assim. Que eu não soe, com meu depoimento reflexivo, como um antidialógico, porque, ao contrário, penso que a teoria da ação dialógica de Paulo Freire nos é central e é a partir dela, por exemplo, que devemos ressistematizar o ensino jurídico (e todos os demais "ensinos"). Mas esta teoria pressupõe a denúncia e o anúncio de uma nova sociedade. Como fazê-lo? Espero que nos indaguemos sobre isso e deixemos nossas opiniões não só aqui no blogue.

Ver também outras postagens de nosso blogue sobre o tema:
- Universidade popular, de Luiz Otávio Ribas;

sábado, 27 de novembro de 2010

Poesia sobre absurdos "na forma da lei"

Um dia, li num jornal uma notícia absurda: um ribeirinho tinha pescado na época de defeso para alimentar sua esposa que estava grávida, os fiscais do IBAMA o pegaram "no flagra" e ele foi preso, sendo que a esposa, vendo toda a situação, sofreu aborto "espontâneo" do feto. Enfim, dado todo esse enredo de absurso camusiano (ou kafkaniano, como queiram), resolvi pincelar minha crítica na forma de uma poesia, que é a seguinte:

Sobre estados e Leis

Se josé não pescasse
Se maria não roncasse
Se o rio não paralisasse
Se maria não engravidasse
Se o peixe não procriasse
Se o estado não invalidasse
Se josé não se desesperasse
Se o estado os alimentasse
Se a Lei interpretasse
Se o fiscal pensasse
Se o peixe falasse
Se a prisão justificasse
Se josé não chorasse
Se maria não abortasse
E roncasse, e chorasse...
Se a fome não incriminasse
E a pobreza não os rotulasse...

Enfim, se tudo
Não Fosse
Assim.
Então haveria justiça,
Haveriam homens, mulheres
E bebê.

Se o estado fosse Estado
Se a Lei fosse apenas lei
Se o fiscal fosse antes humano
Se josé e maria pudessem ter sido,
Ter vivido, José e Maria,

Então não haveria fome, pobreza
E peixe...
E talvez até um bebê viesse a nascer
E viesse a chorar, roncar, pescar,
Pensar, interpretar, falar... viver
Mas não há...

Da biblioteca "Poesia crítica do direito"

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Formação em direitos humanos com movimentos sociais: limites e possibilidades

Por ser professor de direitos humanos, vira e mexe me deparo com perguntas ou convite para ministrar oficinas com movimentos sociais sobre direitos humanos e me pergunto o que dizer sobre os direitos humanos e a estrutura teórica e institucional montada em torno desse "tão amplo" campo de discussão.
Gosto sempre de partir do pessimismo para depois, e só depois mesmo, chegar no otimismo. Não acreditar que os direitos humanos seja uma panacéia ou "a" resposta as lutas sociais é algo importante para delimitar, num segundo momento, que eles são instrumentos jurídicos que devem ser disputados política e ideológicamente, com a necessária formação de estratégias de reivindicação de direitos que passe, também, pela disputa política e ideológica das próprias instituições que oficialmente os protegem ou materializam em políticas sociais, em particular as múltiplas facetas do Estado, e sobretudo do Poder Judiciário, cujos interesses de classe tornam-o, por vezes, o principal inimigo dos movimentos sociais, no avanço da criminalização dos movimentos sociais e da baixa resolução de conflitos que tem como parte pleiteante esses sujeitos coletivos de direito - e, com isso, direitos coletivos que ainda esbarram numa lógica processual e de formação jurídica que impede/minimiza sua realização pelas vias judiciais.
E o que mais? Será que os direitos humanos podem ser instrumento de combate as desigualdades e discriminações? Sem dúvida que sim, daí a faceta otimista. Não por acaso, a maioria das coletividades socioculturalmente vulnerabilizadas protagonizaram, ao longo do século XX, e com maior intensidade nos últimos 30 anos, lutas sociais em prol de seu reconhecimento identitário e organizacional casado ao reconhecimento de direitos coletivos e individuais específicos, haja vista, por exemplo, os indígenas, os homossexuais e as mulheres.
Mas isso não quer dizer que tenham passado do reconhecimento formal de direitos para o reconhecimento material, nem tão pouco que os direitos formais tenham se constituídos da forma como reivindicavam, pois aqui o jogo cotidiano do poder sócio-estatal exerce imensa influencia. Daí porque é quase sempre necessário discutir (1) que a mobilização política é pressuposto fundacional da mobilização jurídica, é dizer, que as lutas sociais pela realização de direitos são cotidianas; (2) que o tempo e a dimensão da efetividade de direitos nunca serão satisfatórios, pois imersos em jogos/conflitos de poder nos quais os interesses populares são, quase sempre, contra-hegemônicos ao status quo do poder; e, (3) que há direitos ainda não positivados e que nem sempre precisarão tramitar por esse rumo, mas sendo necessário entender que lutar pelos "nossos"direitos humanos - no sentido dos direitos dos grupos sociais que se objetivam em movimentos sociais - muitas vezes significa atuar na (suposta) ilegalidade, para mudar realidades e as próprias leis; (4) decorre do último ponto a compreensão de que nem sempre é possível fazer justiça por meio do direito estatal, daí que o campo do pluralismo jurídico é condição necessária para a sustentação de lutas sociais e da vida em sociedades multiculturais , não apenas para contestar o direito estatal.
São pontos de reflexão em aberto...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O gênero e o direito (a gênera e a direita)

Os direitos dos humanos são prioridade
O humano é demasiadamente homem
Os direitos dos homens fundamentais
O direito humano é incompreensível
O direito homem animal
O direito animal
Homem
Direito
Mulher
A direita animal
A direita mulher animal
A direita humana é incompreensível
As direitas das mulheres fundamentais
A humana é demasiadamente mulher
As direitas das humanas são prioridade
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Simone de Beauvoir: - O homem é livre; mas ele encontra a lei na sua própria liberdade.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

CHÃO DE FÁBRICA E DOUTORES (Da série Memórias)


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Quando ingressei nos bancos da Faculdade de Direito, meados dos anos de 1990, uma das coisas que mais me deixava intrigado era ser tratado por “doutor”. Naquela época, ser aluno da egrégia faculdade de direito da UFBA ainda tinha certo glamour, e a sociedade em geral reproduzia os antigos “salamaleques” do bacharelismo. Sou do tempo em que não era fácil fazer Faculdade, ainda mais direito numa Federal. Tanta era a pompa que, mesmo sendo um simples estudante da graduação, era comum ser identificado e tratado por “doutor”. Naquela época, ainda sobrevivia um clima coimbrão decorrente do ideário dos docentes e discentes da Faculdade centenária: o piso de mármore branco, os livros da capa de couro, os bustos, os relicários, “datas venias”, ternos e gravatas. Nesse clima, ser doutor era parte “natural” de um ritual que as elites baianas já estavam acostumadas desde o Império. Mas essa coisa do “doutor” tinha um outro sentido, menos artificial. Lembro que no SAJU, Serviço de Apoio Jurídico Gratuito, onde construí toda minha trajetória acadêmica, as pessoas mais simples me identificavam comumente por “doutor Vladimir”. Tratava-se de uma forma de tratamento singela, sincera, típica de quem procurava ajuda, uma reverência respeitosa para com um pretenso “expert”. Se por acaso pedisse para não ser chamado de “doutor” era como se fosse quebrado um pacto de respeito, e por isso mesmo passei a não mais me importar com essa alcunha; passei a compreender, então, os limites e os possíveis sentidos legítimos do tratamento “doutoral”.

Toda essa lembrança me remete às recentes eleições do curso de direito da UNESC.  O colega João Carlos, em várias salas, repetia algo que ficará em minha memória: “sou um professor chão de fábrica”. Confesso que ainda hoje, mesmo após a conclusão do doutorado, o que mais me causa estranheza não é ser tratado por “doutor”. Até porque não sinto nesse tratamento, nos dias atuais, aquele sentido respeitoso vindo das camadas populares, tampouco o sentido bacharelesco tradicional. Tanto do ponto de vista acadêmico (pós-graduação) como o profissional, penso que o termo “doutor” está sendo esvaziado dos seus sentidos legítimos e meritórios (se existir algum deles), passando a ser uma expressão jocosa, artificial, quase uma piada contada às avessas. Por tudo isso, nos dias atuais, o que mais me intriga é ser professor.

Ainda hoje quando algum aluno me chama ao longe “professor Vladimir”, demoro e titubeio. Serei eu mesmo? Para mim, ser professor, meu ofício, meu mandato, também sempre foi meu maior desafio. Um dia poderei, tal como o amigo João, ser chamado pelos alunos apenas como “professor”, e sentir nessa simples menção um reconhecimento raro, sincero, simples, que não precisa de nenhum rodeio ou pretexto protocolar. Poderei também, quem sabe, ser chamado de “doutor” com a mesma singeleza daqueles que sabem reconhecer o mérito sem precisar de máscaras; que sabem reconhecer, sem papas na língua, nem rancor, que por detrás dos diplomas na parede há legitimidade concreta, tempo e sonhos empenhados. E se algum dia as palavras “doutor” e “professor” puderem resgatar esses sentimentos vivos de minha memória (ou delírios), quem sabe terei encontrado o sentido pleno para toda minha carreira, o motivo para minhas lutas, vitórias e derrotas; terei encontrado, enfim, meu “chão de fábrica”.



domingo, 21 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (1)

Uma reflexão sobre "universidade popular" na América Latina mereceria várias postagens. Um texto que contemple esta discussão poderia se tornar muito longo caso se quisesse ter qualquer pretensão de exaustão. Obviamente, não será esta minha postura aqui no blogue. Vou fazer alguns apontamentos, tentando encaminhar a problemática para um horizonte comum que nos deve unir a todos, assessores jurídicos populares, teóricos críticos do direito e militantes políticos de movimentos e organizações populares.

Para início de conversa, vale a pena resgatar um momento histórico marco para a libertação da América Latina: a revolução mexicana de 1910. Há exatos cem anos, completados ontem (20/11), o México passou por um momento de absoluta efervescência política, econômica e cultural, sendo palco de um experimento revolucionário, ainda que bastante complexo e cheio de contramarchas, que daria ensejo ao zapatismo, ao muralismo e à constituição social de 1917. A revolução mexicana é pedra angular para a discussão sobre a universidade popular na América Latina porque, em seu contexto, surgiu uma das primeiras tentativas de levá-la a cabo, a Universidade Popular Mexicana, realizada por uma aliança de intelectuais mexicanos.

Em verdade, o experimento mexicano, que durou de 1912 a 1920, tendo sido resgatado em vários outros momentos da revolução a partir de então, não foi o pioneiro absoluto na catalogação de tais experiências. No Brasil, mesmo, se pode encontrar um antecedente, na Universidade Popular de Ensino Livre, com participação de vários intelectuais anarquistas e socialistas - dentre eles Elísio de Carvalho e Manoel Bonfim - que tinha por objetivo desacademicizar e desbacharelizar o ensino superior do país, tornando possível a "instrução superior e a educação social do proletariado" (conforme diria Carvalho, em 1907). A experiência da UPEL durou poucos meses, entretanto. E isto devido a cisões internas do grupo que estava à frente do projeto. Nesse sentido, é importante lembrar que a universidade latino-americana foi cosntruída para a formação das elites locais desde os inícios da colonização hispânica, algo que no Brasil só se daria com a declaração de independência política. Ainda quanto ao caso brasileiro, as tardias idéias republicanas surgiriam com o ímpeto do discurso da universalização do ensino básico, mas sem que esta pretensão atingisse a "instrução superior". Tanto assim é que só o século XX assistiria ao surgimento da primeira universidade brasileira (na provinciana e ervateira capital paranaense, ainda que este título seja discutido pelos fluminenses).

Sem dúvida nenhuma, porém, a grande experiência que nos guia a todos, no entendimento e ato de fé de que a universidade popular é um caminho viável, é a da reforma universitária pretendida pelos estudantes argentinos, em Córdoba (1918), que daria ensejo a vários movimentos análogos e, de alguma forma, unificados, em toda a América Latina. O relato de José Carlos Mariátegui, em seus "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" (ensaio IV, sobre "O processo da instrução pública"), é eloqüente, mostrando a vivência de um mesmo processo para além de a Argentina, chegando ao Peru, Uruguai, Chile e Cuba, dentre outros países. Aliás, Mariátegui trabalharia na Universidade Popular González Prada, em Lima, e sua atuação estaria muito próxima à de outros pensadores críticos de então que realizariam a Universidade Popular José Marti, em Cuba, ou a Universidade Popular Lastarria, no Chile. Não é à-toa que os intérpretes latino-americanos do marxismo no continente imputam a este período histórico o momento revolucionário fundador da insurgência de nossa América. A América Central em ebulição, o México revolucionário, e as experiências indígenas e operárias da América do Sul perfazem o auge do primeiro meado do século XX.

Em termos de proposta de universidade popular, entrementes, dois elementos irão se destacar neste momento: o protagonismo estudantil e o objetivo de tornar acessível o conhecimento científico às classes populares latino-americanas, em especial os trabalhadores urbanos. Estes dois pontos são cruciais para a compreensão do fenômeno da universidade popular entre nós, algo que deve conduzir nossa análise nos momentos subseqüentes desta investida conscientizadora, a qual permanecerá viva como um legado para a atualidade, articulando-se em torno dos movimentos populares. E disto me ocuparei na próxima postagem, mas não encerro esta sem antes fazer menção a uma projeção que deve restar esclarecida para que melhor se compreenda meu comentário: precisamos estabelecer uma analogia entre a alternatividade jurídica e a da universidade popular. Assim, a partir do resgate histórico da construção de experiências de univeridade popular na América Latina, é possíval entender que há três grandes dimensões de sua fenomenologia: a da universidade de combate, acentuando os conteúdos populares ainda que dentro dos padrões hegemônicos de ensino; o uso alternativo da universidade, que radicaliza a prática extensionista e o papel social da pesquisa coletiva; e a universidade alternativa, proposta que não deve ser protagonizada por intelectuais livre-pensantes descolados dos sujeitos históricos que devem protagonizá-las, já que protagonistas da cultura popular, a classe-que-vive-do trabalho.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

I ENCONTRO PARAENSE DE ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR

O começo de uma nova vida é sempre marcado por um Encontro, que não possui seu conteúdo cerrado nesta palavra, mas é propriamente como um objeto, uma chave de abertura de dimensões de existências, éticas, e que, portanto, está para além do físico, sendo metafísico e, porquê não, poético. É este, acredito eu, o sentido da realização do I ENCONTRO PARAENSE DE ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR.

Este evento cuja sede se deve ao Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Isa Cunha e ao Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Aldeia Kayapó (NAJUPAK), vinculados a Universidade Federal do Pará, contará com a participação de mais dois projetos de AJUP recentemente surgidos na região norte e que ainda não fazem parte da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), o Centro de Assessoria Jurídica Popular de Marabá (CEAJUP) e o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da Universidade do Oeste do Pará (NAJUP UFOPA), totalizando quatro núcleos de AJUP que conjuntamente compõem a denominada Rede Estadual de Assessoria Popular Emancipatória do Estado do Pará (REAPE/PA), entidade surgida no ano de 2008.

Certamente, as expectativas entre os dias 19 e 21 de novembro de 2010, período planejado com tanto carinho por todos os integrantes, são grandes entre os participantes. Compreender conjuntamente pela primeira vez, o cenário em que se inserem as AJUPs no norte do Brasil, tremendamente marcado por conflitos fundiários, por uma educacão progressivamente mais miserável e por uma estupidez sem tamanho no que se refere a utilização da floresta, está longe de ser algo comum ou fácil. O Pará de proporções territoriais gigantescas é coberto por um manto não de proteção, mas de facetas de diversidades, incluindo inúmeras tragédias.

Assim, o que fazer? É torcer para que nossos heróis e nossas heroínas cerquem-se das energias que vem dos rios amarelos da Ilha de Mosqueiro onde será realizado o Encontro e que, eles e elas tenham, acima de tudo, um encontro entre si, que produza união aos que sofrem ao lado do povo, mas que, sobretudo, ao lado deles lutam e vivem.

Meus melhores pensamentos para estes companheiros e estas companheiras, pode nas palavras de dois integrantes do NAJUPAK, Leon e Celice, assim ser dito:

Eu falo
Tu falas
Todos falamos
Nossas idéias se confrontam
Se complementam,
Nossas vozes, que antes
Apenas ecoavam no vazio,
Agora compõem um pequeno coro
De grandes vozes


La Grieta - assessoria jurídica popular na Argentina

Conheçam "La Grieta - Colectivo de Acción Jurídica Popular". É um grupo interdisciplinar de ação direta para a promoção, difusão, extensão e defesa dos direitos dos setores vulneráveis da sociedade, assim como para colaboração e assessoramento a organizações sociais.

Conforme uma das integrantes, Eugenia, "La Grieta" nasceu como uma oficina de assessoria jurídica popular organizada por estudantes da Faculdade Pública de Direito da Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina. Depois foi crescendo e se separou da Universidade para passar a ser "La Grieta". Está formada por advogados, estudantes de direito e de trabalho social, e militantes em geral.

Hoje fazem assessoria em vários bairros, com uma concepção de assessoria muito parecida com a trabalhada no Brasil. Acompanhando várias demandas relacionadas a moradia digna e casos de ocupação de áreas abandonadas por pessoas sem-teto.

Também trabalham no eixo anti-repressivo ou de violência policial-insititucional, fazendo oficinas nas escolas sobre os direitos daquele que é detido pela polícia.

Ademais, sempre tentam acompanhar reclamações de organizações sociais, seja jurídica, ou não. Já que trata-se de um grupo interdisciplinar. Assim, não somente atuam ou acompanham desde a assessoria estritamente jurídica.

Por fim, Eugenia afirma que "os direitos os temos quando os exercemos", e para isto há que conhecer-los primeiro, assim que o objetivo da "La Grieta" é difundir os direitos e socializar o conhecimento que temos como advogados ou estudantes.

Muito bom saber desta articulação no nosso país vizinho. Vida longa ao movimento estudantil e de assessoria jurídica popular latino-americano!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Crítica aos direitos humanos e movimentos sociais (2)

Por Luiz Otávio Ribas

Hoje farei considerações sobre o direito e os direitos humanos, fruto de um debate com integrantes do CAJU Sepé Tiaraju, também pelo diálogo com o grupo anarquista Resistência Popular, ambos de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Trata-se de um texto inicial, esforço necessário já tentado por aqui.


1. O direito serve para a manutenção da exploração pela classe capitalista.
O direito é instrumento de manutenção do regime capitalista que se funda na exploração da classe trabalhadora. O direito funciona como garantia da ordem e da segurança das relações sociais tipicamente capitalistas. O exercício do direito inclui o uso de violência organizada e institucionalizada, assim como o arbítrio em nome da classe capitalista. O Estado como ente superior e abstrato funciona como justificação e encobrimento desta relação política.
O direito não serve para garantir a segurança e a ordem em situações de crise. Nestes casos, a classe capitalista lança mão da força bruta. O exército como braço armado do Estado funciona como justificação e encobrimento desta relação política.
As crises são cíclicas, assim como a força bruta. Não é possível estabelecer o Estado capitalista como garantidor da ordem e da segurança por meio do direito.
O Estado capitalista utiliza o direito como garantidor da ordem e da segurança fora das situações de crise. Mesmo assim, preserva o arbítrio em favor de sua própria classe. Aquilo que a classe capitalista nomeia como direito, não é direito.

2. O direito não ocupa lugar central no sistema de exploração e alienação.
No sistema de exploração e alienação da classe trabalhadora pela capitalista o direito não ocupa lugar central. A justificativa para a exploração é fornecida pelo direito de forma indireta. A maior justificativa para a exploração são as necessidades criadas pela própria desigualdade, inerente ao regime capitalista. Aquele que é explorado necessita permanecer nesta situação enquanto durar o regime capitalista. É impossível a libertação individual ou coletiva de trabalhadores e a manutenção do capitalismo. A revolução precisa ser completa, para todos. O direito funciona como um dos instrumentos de alienação, de forma indireta. O maior instrumento de alienação constitui no próprio encobrimento da relação social de exploração.
A forma indireta de exploração e alienação pelo direito está na relação de desconhecimento sobre os processos de criação e decisão. O conhecimento sobre o direito não possui cientificidade, racionalidade ou sistematicidade.

Marx: feliz com a eleição da primeira presidenta brasileira? 

3. O direito é uma linguagem utilizada pela classe capitalista.
A classe capitalista utiliza o direito como linguagem. A linguagem é o conjunto organizado convencional de significantes e significados empregados na comunicação. As significantes são estabelecidas pela classe capitalista, que são os textos jurídicos, principalmente as leis. Os significados são as interpretações autorizadas pelo Estado, qualquer significado diferente recebe a denominação de antijurídico, ou ilegal.
A linguagem do direito utilizada pela classe capitalista não preserva a juridicidade e a legalidade.

4. Os direitos humanos constituem em ideologia da classe capitalista.
Os direitos humanos funcionam para universalizar a concepção capitalista de homem e sociedade, fundada no individualismo e na exclusão da classe trabalhadora. Uma ideologia de proteção do indivíduo contra toda a forma de opressão. Na prática, a proteção do cidadão capitalista de toda tentativa de revolução.
O discurso dos direitos humanos serve como desmobilizador da classe trabalhadora para um rompimento radical e definitivo com este modo de produção.

5. O direito, os direitos humanos e a classe capitalista precisam ser extintos.
A revolução implica na extinção da classe capitalista junto a sua ideologia dos direitos humanos e o direito como instrumento de manutenção da ordem e segurança.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Coluna de Jacques Alfonsin

Artigo do nosso colunista Jacques Alfonsin intitulado "A Copa de 2014 e o direito à moradia da população trabalhadora e pobre de Porto Alegre", publicado no Instituto Humanitas da Unisinos em 14 de novembro.


Análise crítica da conjuntura, importantíssima neste momento em que um evento esportivo pode fazer retroceder avanços consideráveis na luta pela moradia na região.

Ver blogue Movimento "o Morro é nosso!"

domingo, 14 de novembro de 2010

A hora e a vez da autogestão

Em um quibutz...

A partir de que momento faz sentido a discussão sobre a organização política de nossa realidade social para além de a crítica ao que aí está? Esta questão, me parece, é conseqüência necessária das duas últimas reflexões a que me propus na coluna de domingo. Estas se referiram a uma consciente interconexão entre a problemática jurídica e a obra de Marx. Como já disse, pululam as publicações sobre isso bem como o interesse pela relação, ainda que por vezes maltratada pelos errantes cultores da teoria crítica do direito...

Afirmar que o direito é um capítulo da filosofia política de Marx não é mero esvaziamento de ambos os debates. Ao contrário, tem de querer dizer algo. O direito que se exprime, antes de mais, como organização política (o que vou chamar, aqui, de "filosofia política do direito") não equivale ao direito como forma jurídica do/para o capital (aqui, também, aparecendo como "economia política do direito"). E por que salvar o direito? Bom, em primeiro lugar, não se trata de salvar nada. Em segundo, vejamos o seguinte: se a tese da necessidade e desnecessidade, histórica e a um só tempo, do direito estiver correta e se se falar em direito significa se falar em política, há algo que deve ser afirmado nesta totalidade, neste real pensado. E, mais, a afirmação da organização política não basta, assim como não basta a negação do estado. Entre a materialidade da economia política burguesa, em sua fase avançada ou não, e a formalidade do estado de direito, há de se perceber um movimento quanto ao método de compreensão da realidade: faz-se necessária uma mediação sintética, a factibilidade histórica dessa negação. E a suprassunção - a que tem de despontar em nosso horizonte - realizadora da factibilidade crítica mencionada é, nada mais nada menos, que a autogestão, como realidade organizacional, historicamente alocada e espacialmente possível.

É certo que, neste terreno, caberia toda uma discussão acerca do significado histórico do estado nas sociedades que viveram o socialismo. A transição passou, necessariamente e sem exceções, pela estatalidade e adquiriu sua forma pela via do planejamento econômico. Muitas críticas houve sobre este conjunto de experiências, mas estranhamente pouco se avançou, de fato, no aperfeiçoamento desta racionalidade revolucionária. Ou a anarquia (mesmo que politicamente qualificada) ou a volta ao "livre mercado" (mesmo que constitucionalizado): estas foram as propostas teóricas que pavimentaram o debate, com hegemonia prática para a segunda opção. Os que escaparam a este dualismo não puderam enfrentar o referido aperfeiçoamento, seja pelo déficit de experimentos socialistas pós-1989, seja pelo abandono relativo da questão frente ao turbilhão de coisas a serem questionadas com a rearticulação financerizada do capitalismo contemporâneo.

Enfim, tudo isto para dizer que, afora algumas escolas consolidadas do pensamento de esquerda, a questão da organização política pós-revolucionária foi posta para escanteio e, junto com ela, a perspectiva da factibilidade organizativa para a própria revolução. Refiro-me à autogestão e suas potencialidades políticas e econômicas.

Falar em autogestão não deve ser um discurso sobre mais uma conceituação vazia, como assim se tornaram as problemáticas da democracia ou da sustentabilidade. Antes que isso, deve-se ressaltar sua importância para se pensar (e realizar) a transição horizontal para um novo modo de produção e uma nova ordem política. Portanto, não se trata de celebrar o irracionalismo (e des-pensar as modalidades outras de produzir a vida) assim como não se trata de rejeitar a ordenação da realidade, em sua substância última.

Negar o direito - ou afirmar a desnecessidade do direito - não é simples joguete de palavras, como pensam alguns. Tampouco é metafísica teorética, como imputam outros, como se o problema estivesse para além de nossa capacidade de racionalizar o real. Não, fazê-los significa caminhar para algum lugar e a este não-lugar-ainda chamamos de autogestão social, e cremos seja o melhor caminho a se nos mostrar.

Historicamente, a Comuna de Paris, analisada na postagem "'A Internacional' e o direito: notas sobre a ludicidade revolucionária", é um exemplo eloqüente desta proposta autogestionária. O autogoverno dos produtores é o seu sensível depoimento de factibilidade política. No entanto, outras experiências existiram e, conforme suas emersões no século XX, a partir delas muitas polêmicas se abriram, em especial em torno da estratégia a ser usada para a elevação do proletariado como classe dirigente até a extinção das classes mesmas.

Como disse, a discussão do papel do estado é crucial para esta reflexão. A vanguarda revolucionária e o partido, as guerras de posição e movimento, as reformas, a emancipação política das colônias, todas passaram por este problema. Algumas formações históricas, contudo, tentaram experienciar a autogestão social. Quiçá, os maiores exemplos deste último século tenham sido a Espanha e a Iugoslávia, de Tito, esta menos frustra que aquela. Ainda assim, não podemos menosprezar o cabedal revolucionário como um todo, com um destaque especial à revolução russa.

O interessante é notar, neste aspecto, que o testemunho político dos revolucionários espanhóis ou dos autogestionários iugoslavos acabou representando, do lado dos primeiros, um pioneiro triunfo dos libertários anarquistas, assim como, dentre os segundos, uma tendência isolada e exitosa ao mesmo tempo do socialismo com verve marxista. É óbvio que os descaminhos alvejaram tais experiências, mas é inegável que elas acabaram por se tornar o grau máximo de várias preocupações com a economia política do poder.

É comum no âmbito das ciências econômicas, políticas ou da administração, se dedicar alguns capítulos ao problema da autogestão. E parece que alguns relatos históricos são obrigatórios. Não só os espanhóis ou iugoslavos se apresentam para tal. Em momentos intermédios de rotineiras classificações, surgem os quibutzim israelenses ou os conselhos operários italianos, para ficar com um exemplo; também a cogestão nas empresas alemãs ou as cooperativas integrais ou setoriais de realidades diversas como a indiana, a canadense ou a latino-americana. Mais do que acentuar uma útil, segundo meu entender, didatização classificatória de momentos de gestão partilhada, é preciso frisar a inseparabilidade desta discussão com relação ao projeto político de reordenação social de um povo.

Isto porque é necessário pensar a hora e a vez da autogestão. E qual a sua hora? A da organização revolucionária popular, pré e pós tomada do poder. E qual sua vez ou seu lugar? Aquele que se dá com relação à organização política de um povo, em substituição ao direito-fenômeno.

A partir de autores como Guillerm e Bourdet (no livro "Autogestão: uma mudança radical"), podemos chegar a conclusões acerca da autogestão que nos colocam diante de três características: a gestão democrática, a produção coletiva e a distribuição dos resultados conforme o trabalho dispendido. Assim, ressalte-se a tríade participação-responsabilidade-informação, centrais para a dinâmica autogestionária.

Este debate nos põe diante do problema da centralidade do trabalho para a produção da vida, mesmo que nunca destituído de suas feições identitárias, ecológicas e inclusive libidinais. Por isso não pode a autogestão se reduzir a mecanismo político sem lastro econômico, por exemplo. Ou mesmo ficar apenas no plano do imaginário e/ou horizonte social, sem se concretizar nas instituições políticas ou nas esferas de produção direta. Mas isto não quer dizer que, em espaços de sociabilidade presentes em que a produção da vida não se coloque a partir do trabalho econômico, não se possa lançar mão da pauta autogestionária. Só significa que ela apenas se tornará plena com a totalidade da vida concreta, o que passa pelo labor.

Desse modo, a cooperação se mostra como essencial para qualquer forma de organizar a sociedade em que vivemos. Mas apenas a autogestão pode potencializar tal cooperação em seus aspectos de justiça e socialização dos meios de produção. Mesmo na mais absoluta heterogestão há um modo de cooperação próprio (e quem o desvendou foi o próprio Marx, em sua obra clássica - "O capital"). Quanto a isto, paga a pena uma classificação didática. São as seguintes as formas de organização social as mais típicas e abstratas: a) heterogestão; b) gestão participativa; c) cogestão; d) gestão cooperativa; e e) autogestão. São condicionantes desta serialização o atingimento dos três caracteres acima mencionados (gestão, produção e distribuição), assim como a amplitude territorial à qual se chega (afinal, não vivemos numa realidade desterritorializada, como propõem os servos do apocalipse pós-moderno e pós-industrial).

É dessa forma que se percebe avanços de proposição quando se passa da mera reivindicação por participação nas decisões da produção econômica (como no caso dos conselhos de fábrica) para a própria produção direta (como é o que ocorre nas cooperativas, chave-mestra do socialismo utópico cuja importância foi tão ressaltada, ainda que bastante criticada, por Marx e Êngels). Mas esta produção direta não é satisfatória se se mantiver circunscrita a guetos econômicos da realidade, devendo-se pensar a totalidade social como que guiada por tal principiologia. É dessa forma que lemos nas páginas de "Organismo econômico da revolução", de Diego Abad de Santillán, que toda a revolução espanhola se organizaria a partir de uma federação de ramos econômicos e de representação territorial, nos moldes da autogestão plena. Assim, não só as unidades produtivas seriam microssocialmente autogestionárias. Todo o resto da sociedade também o seria - portanto, uma autogestão macrossocial.

Com isto resta claro que um idealismo cooperativista não se confirma na realidade revolucionária. Propostas como a da economia solidária ou de redes de movimentos sociais só conseguem ter loquacidade se se voltam para estas perspectivas macro e sem que isso acabe sendo mera retórica vazia. Neste sentido, estão aquém de projetos políticos como os de Owen, Fourier ou Saint-Simon que, de alguma maneira, propunham que a integralidade de suas "ilhas-utopia" ou "cidades-do-sol" se organizassem cooperativamente.

Eis que a autogestão ganha significados de importância pouco diminuta para a "filosofia política do direito", já que supera a atual "economia política do direito". A lei do valor não é aquela à qual se cinge a normatividade na autogestão (e dessa forma se abre toda uma outra discussão sobre o aspecto normativo de uma organização política ampliada). E é neste exato sentido que ganha coerência o conjunto de estudos, dentro do que se denomina campo jurídico (no mínimo, campo jurídico de investigações), sobre o modo de cooperação dos movimentos populares, dos assessores jurídicos populares e do próprio trabalho, em geral, bem assim como sobre a maneira de se empreender esse salto qualitativo nos domínios da descolonização do saber, como face muitas vezes oculta da colonialidade do poder. É a autogestão como um capítulo à parte para as reflexões jurídico-políticas destas realidades.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Há um ano, em Teresina...


Dois forasteiros aportaram por estas paragens. Umas barbas estranhas, um sotaque diferente... O que será que eles queriam?

Relutante e desconfiada, decidi me aproximar. Como pano de fundo, um mini-curso com um título que mais parecia um eco: “a crítica da crítica crítica...” ( “a sagrada família jurídica”).

Confesso que não estava muito predisposta para o evento. A cabeça dolorida pelo dente que havia arrancado no dia anterior por conta do bendito aparelho, o mau humor por não estar assistindo ao ” Fórum Íbero-Américano de Direito” que acontecia simultaneamente e que prometia ser um evento de debates e novas idéias. Tudo culpa do Macell que praticamente me obrigou a ir ao mini-curso!

Retornei à UESPI onde havia me formado um ano antes- sem poucos traumas. Foi lá que o mini-curso aconteceu.

Então eles começaram: Kant, Hegel, Marx... Até aí tudo bem. O primeiro ano da graduação havia sido razoavelmente bem aproveitado. Depois a coisa toda começou a tomar um rumo muito estranho: Stucka, Pachukanis, Boaventura, Sidekum, Alfonsim, Freire, Warat, Lyra Filho e até mesmo Saramago? Pensei comigo: “Peraí, cadê o bom e velho direito dogmático, ou sua crítica bem alinhada, cortês, de riso desdenhoso?”. Onde eu havia me metido?

Mantive-me um pouco afastada dos facilitadores, ainda que trocasse uma ou duas palavras a partir do segundo dia. Eu precisava de distância para pensar...

Percebi, então, que ali eu estava adentrando numa das mais profundas, conscientes, sensíveis e avassaladoras críticas às nossas instituições e aí também, obviamente, ao direito. Um “pré-ssentimento” de um porvir...

Ao final do mini-curso, que foi muito intenso, eu sabia que algo havia acontecido. E era dentro de mim. Uma voz que havia quase emudecido por conta de desilusões acadêmicas. Eu podia ouvir as cadeias rompendo e tudo o que eu havia reprimido por conta do curso de direito (por motivos que não cabem nesta postagem), simplesmente desaguando, águas rolando como no poema do Rosa ( Águas da Serra).

Não me senti revolucionária como os outros participantes- para mim eles eram revolucionários! Eles me pareciam bem mais maduros quanto a isso e acho que eu teria ainda muito o que resolver antes de me reconhecer como tal, mas a sensibilidade, o desejo de transformação, a perspectiva do plural, a dialogicidade, a ludicidade ( a literatura!), o sonho... Tudo estava de volta! E eu mal cabia em mim de contentamento.

E, bom, eles foram embora. Aqueles barbados de sotaque diferente. Soube que logo depois se tornaram professores e que hoje são vozes chaves do “u-tópico”, que aqui interpreto como o lugar que ainda pode ser...

Foram embora, mas deixaram um importante legado dentro desta que vos escreve.

....................................................................................................................................................................

Trecho de Águas da Serra ( João Guimarães Rosa- Magma)

“(...)

E então, do semi-sono dos paraísos

perfeitos,

os diques se romperam,

forças livres rolaram,

e veio a ânsia que redobra ao se fartar,

e os pensamentos que ninguém pode deter,

e novos amores em busca de caminhos,

as águas e as lágrimas sempre correndo,

e Deus talvez ainda dormindo.”



quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Relatos de um jovem professor (1)

Neste primeiro ano de docência, em Juína, no Mato Grosso, e em Curitiba, no Paraná, já percebi a dimensão do desafio que representa o ofício de ensinar/aprender. Trata-se de um ato de amor que envolve dedicação, paciência e crítica.

Nas cidades existem realidades distintas, por serem duas regiões diferentes do país, por processos de ocupação separados por longos anos, mas, por processos migratórios que se entrecruzam - uma boa porção do norte do Mato Grosso foi povoado por paranaenses.

A ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970 foi irresponsável pelos projetos de colonização daquela região e em boa parte da Amazônia.

O primeiro projeto foi uma prática genocida em relação aos índios nativos. Inclusive, no filme "Avaeté" está representado o uso de mão-de-obra de encarcerados brasileiros para abrir picada na mata amazônica e aniquilar os seres humanos da floresta - fosse com banana de dinamite lançada de aviões nas ocas, seja com o oferecimento de açúcar envenenado, seja a golpe de facão (como faz o personagem Diabo Loro quando dilacera a mãe de Avaeté). Claro que a obra de ficção não tem compromisso com a totalidade do projeto inicial de colonização, mas é um bom exemplo da política em relação aos índios nesta região do país naquele período.

Após esta "primeira leva" de serviço público, eram contratados colonizadores - homens de confiança do regime, com habilidade política e visão empreendedora. Não sei o caso de Juína, mas os pioneiros costumavam ter o privilégio de escolher as melhores glebas de terra agricultáveis e com pedras preciosas. Estes convenceram agricultores do sul do Brasil a atravessarem o país para plantar a vida no meio do mato.

As campanhas de propaganda da ditadura deste período estão representadas no filme "Bye Bye Brasil", em que o personagem Lorde Cigano é convencido a viajar para Altamira, no Pará. As frases utilizadas são "Venham para a Amazônia! Aqui os abacaxis são do tamanho de jacas, árvorés o tamanho de um arranha-céu, as predras preciosas estão expostas na terra para quem quiser apanhar. Todo mundo é rico e não tem onde gastar o dinheiro".

Com campanhas tão atraentes muitos paranaenses deixaram suas cidades para viver em Juína. Lá não foi utilizada mão-de-obra carcerária, mas trabalhadores acostumados com a lida do campo no nordeste, norte, até mesmo de países vizinhos como Bolívia e Paraguai. Após a derrubada das árvores mais altas, o desmatamento, a queimada do campo, um plano de ocupação era posto em prática pelos pioneiros colonizadores. Conforme relatou um baiano que atuou na derrubada da mata, e hoje é empresário na cidade, era preciso comer carne de caça, plantas nativas e improvizar muito nos longos dias de calor escaldante.

Os primeiros anos dos migrantes no Mato Grosso foram desastrosos. O calor de média de 35 graus, as chuvas incessantes do verão, a seca interminável do inverno, a malária, os animais silvestres, a violência dos homens, entre muitos outros fatores desafiavam a boa vontade daquele povo trabalhador.

Um dos primeiros "causos" que ouvi do baiano ao chegar na cidade foi sobre o churrasco de fígado. Um homem teria roubado um taxista, um grupo foi a caça deste, o espancaram, arrastaram seu corpo ainda vivo pelas ruas, até chegar na região central da cidade, abriram seu peito a faca, retiraram seu fígado e o assaram para deleito dos presentes. A partir do ponto do homicídio na Praça as versões são contraditórias: alguns dizem que não houve churrasco algum, outros dizem que não só houve, como muitos comeram a carne, inclusive alguns teriam ficado com problemas de pele e outros teriam enlouquecido, por maldição do morto.

Muitos outros relatos de violência surgem quando o assunto são os garimpos. Após uma primeira tentativa de plantio de café mal-sucedida - pelas características da terra e clima amazônicos -, alguns partiram para o plantio de pasto para o gado de leite ou de corte. Mas, a maioria ficou sem alternativa, e partiu para a aventura de encontrar o "ouro de tolo". Um porteiro gaúcho, um dos primeiros moradores da cidade, relatou que nesse período - década de 1970 - os homens morriam como moscas, numa média de 2 a 3 por dia. Levados pela ganância, disputavam a faca e fogo os diamantes.

Outro episódio foi relatado nas salas de aula, da expulsão das organizações Opan e Greenpeace pelo Prefeito, vereadores, empresários e outros habitantes da cidade, em 2007. O discurso inflamado, as filmagens sem autorização, o desconhecimento da realidade local, tudo isto teria levado os militantes verdes a enfrentarem os políticos da cidade, quase chegando as vias de fato.

É fácil constatar nestes depoimentos características de um povo violentado e violento. Reféns das distâncias continentais do país e do isolamento da floresta. A Amazônia nos deixa mais próximos de nossa natureza e cultura.