Ricardo Prestes Pazello
professor de Antropologia Jurídica do curso de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)
O artigo abaixo já virou história: neste 19 de dezembro, dia da emancipação política do Paraná, realizou-se o final do julgamento da argüição de inconstitucionalidade do decreto federal 4.887/2003 sobre demarcação de terras quilombolas, no âmbito da ação que envolve o processo administrativo em prol do quilombo Invernada Paiol de Telha (Guarapuava, Paraná). Por 12 a 3, decidiram os desembargadores que se trata de ato normativo constitucional, vitória para as 4 mil comunidades existentes no Brasil hoje, mesmo diante das dificuldades que o próprio decreto impõe para os processos de titulação e que as quase inexistentes políticas em defesa dos territórios das comunidades tradicionais indicam.
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A data de 19 de dezembro marca a solenidade que trouxe à 5ª Comarca de São Paulo sua emancipação. O Paraná, em cerimônia solene, empossava Zacarias de Goes e Vasconcelos, seu primeiro presidente provincial (ao tempo do império, os estados se chamavam províncias e os governadores, presidentes) e arrefecia os ânimos das elites locais que, desde pelo menos 1811, aspiravam ter seu próprio governo regional.
Por coincidência histórica, ficou destinada para este dia importante tomada de decisão, por parte do aparelho judicial brasileiro, acerca da continuidade da luta quilombola não só no estado do Paraná, mas em todo o país. Se a 19 de dezembro os paranaenses relembram a cerimônia que executou a lei imperial 704 a qual criava a nova província e a isto chamam de emancipação do Paraná; agora, à mesma data só que 160 depois, os paranaenses guardam expectativa sobre qual o futuro anunciado pelo judiciário (e, portanto, pelo estado nacional) para as comunidades remanescente de quilombos, em sede de argüição de inconstitucionalidade quanto ao decreto 4.887/2003 que regulamenta artigo da Constituição de 1988 referente à demarcação de terras quilombolas.
Os anos que separam 1853 de 2013 são uma boa régua para medir a distância entre a emancipação formal e a material. A historiografia mais tradicional, no Paraná, não se contenta em exaltar a importância da emancipação formal e fundamenta-a em episódios históricos que assinalam o quão engajada esteve a elite local nesta empreita: o movimento emancipacionista de 1811, capitaneado por Correia de Sá; a conjura separatista de 1821, abraçada por Bento Viana; a cooptação legalista (antifarroupilha e antiliberal) de 1842; a propaganda pró-emancipação, de Paula Gomes e Correia Júnior; os 10 anos de debates parlamentares, em que se destacaram Cruz Machado e Carneiro de Leão; enfim, todos os meios que estiveram à disposição da ordeira classe política paranaense durante o império.
Pouco se fala, entretanto, que enquanto as elites ervateiras e pecuaristas de então buscavam se separar de São Paulo, o Paraná se constituía em um privilegiado palco de resistência, em que indígenas, negros e caboclos assumiam todo o protagonismo. E é exatamente esta resistência que fica resgatada no cerne do debate judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
A argüição de inconstitucionalidade foi suscitada por desembargadores da 3ª turma do TRF4 no âmbito da apreciação de procedimento administrativo do INCRA que visava a demarcar o território quilombola Invernada Paiol de Telha, em Guarapuava. Assim, ao analisar o caso concreto, os julgadores pretenderam atacar o próprio ato normativo que torna possível a demarcação, o decreto 4.887/2003.
Ocorre, contudo, que ao atacarem o decreto acabam por atacar a própria história. Se algum tipo de emancipação formal houve em 1853, agora corremos o risco de retornar à estaca zero em termos de emancipação material. Ainda que o decreto de 2003 não seja a regulamentação ideal reivindicada pelo movimento quilombola, justamente por suas intrincadas exigências procedimentais muito próprias de um sistema jurídico que fetichiza a pretensa segurança jurídica, ele se apresenta como um avanço jurídico em relação a) à total invisibilidade em que foram colocadas as comunidades tradicionais negras no Brasil até 1988; b) à inércia normativa que se assumiu a partir da promulgação da Constituição e à ineficácia de se destinar a competência para realizar demarcação de terras para órgão sem estrutura técnica e financeira (caso da lei 7.668, que criou a Fundação Cultural Palmares); e c) à despropositada regulamentação promovida em 2001, por meio do decreto 3.912, que exigia que os territórios quilombolas, para serem reconhecidos, estivessem ocupados por pelo menos 100 anos, desde 1888 até 1988 (da abolição da escravatura até a Constituição da nova república), o que explicita o abismal déficit que carregou consigo referido decreto, quanto a fundamentos históricos, sociais, econômicos e culturais.
É de se salientar que o risco frente ao qual os quilombolas estão expostos é o risco de adiarem uma vez mais as condições de sua emancipação material. A comunidade quilombola do Paiol de Telha, mesmo existindo desde 1860, decorrência de herança recebida por 11 negros escravizados na região de Guarapuava, tem o condão de servir de paradigma em termos de reconhecimento institucional de sua condição. A constituição dos quilombos não pode continuar dando margem a interpretações que considerem estes grupos como “coisa de negros fugidos”. Este é o primeiro passo que devemos dar no sentido de denunciar e superar as estruturas racistas nas quais estamos inseridos. No entanto, outros passos precisam igualmente ser dados e, dentre eles, a luta pelo reconhecimento institucional, ainda que mesmo esta luta não esteja a salvo de vários limites e contradições.
Os quilombolas do Paiol de Telha possuem a marca da resistência e da luta pelos “modos de criar, fazer e viver” que lhes são próprios. Carregam consigo uma história esquecida, a partir da qual podemos reviver os indígenas guarapuavanos resistindo às bandeiras portuguesas e à caça a eles empreendida após a chegada família real ao Brasil, em 1808; a Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, que serviu de chamariz para que caboclos ocupassem a região; os mais de 40% da população do Paraná escravizada em 1853 e sua resistência comunitária; a substituição da mão-de-obra, conhecida como política “linista” (de Lamenha Lins), que passou a promover o suposto branqueamento populacional, com a inserção do imigrante europeu no interior paranaense, em detrimento da população negra aqui já estabelecida.
A grande questão em jogo é saber até que ponto o estado brasileiro, via seus poderes instituídos, compactuará e promoverá o etnocídio e o genocídio. No caso, das comunidades quilombolas. Na medida em que se trata de considerar o território das comunidades negras como terras tradicionalmente ocupadas e não como a forma jurídica “propriedade”; na medida em que “democracia” e “segurança jurídica” não são expressões que se prestem à desfaçatez da lógica mercantil e dos interesses daqueles que sempre estiveram despreocupados com as maiorias a não ser quando elas se rebelam; na medida em que os 160 anos que separam a emancipação formal do Paraná, em 1853, da ainda distante emancipação material de nosso povo, neste 2013, são a mais eloqüente régua que computa toda a desigualdade que vige entre nós; considerando todas estas “medidas” é que nossos olhos se voltarão ao TRF4 e assistiremos, com expectativa, à sua decisão, estando certos de que só representarão os anseios de todo o povo brasileiro, e não só o paranaense, se agirem de modo a reconhecerem a constitucionalidade do decreto 4.887, fazendo deste 19 de dezembro aí sim uma data que tenha alguma coisa a ver com emancipação.
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Texto publicado nos seguintes veículos de comunicação:
- Página da Terra de Direitos;
- Blogue Combate Racismo Ambiental;
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