quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O quilombo Paiol de Telha e a emancipação do Paraná

Ricardo Prestes Pazello
professor de Antropologia Jurídica do curso de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)

O artigo abaixo já virou história: neste 19 de dezembro, dia da emancipação política do Paraná, realizou-se o final do julgamento da argüição de inconstitucionalidade do decreto federal 4.887/2003 sobre demarcação de terras quilombolas, no âmbito da ação que envolve o processo administrativo em prol do quilombo Invernada Paiol de Telha (Guarapuava, Paraná). Por 12 a 3, decidiram os desembargadores que se trata de ato normativo constitucional, vitória para as 4 mil comunidades existentes no Brasil hoje, mesmo diante das dificuldades que o próprio decreto impõe para os processos de titulação e que as quase inexistentes políticas em defesa dos territórios das comunidades tradicionais indicam.


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A data de 19 de dezembro marca a solenidade que trouxe à 5ª Comarca de São Paulo sua emancipação. O Paraná, em cerimônia solene, empossava Zacarias de Goes e Vasconcelos, seu primeiro presidente provincial (ao tempo do império, os estados se chamavam províncias e os governadores, presidentes) e arrefecia os ânimos das elites locais que, desde pelo menos 1811, aspiravam ter seu próprio governo regional.

Por coincidência histórica, ficou destinada para este dia importante tomada de decisão, por parte do aparelho judicial brasileiro, acerca da continuidade da luta quilombola não só no estado do Paraná, mas em todo o país. Se a 19 de dezembro os paranaenses relembram a cerimônia que executou a lei imperial 704 a qual criava a nova província e a isto chamam de emancipação do Paraná; agora, à mesma data só que 160 depois, os paranaenses guardam expectativa sobre qual o futuro anunciado pelo judiciário (e, portanto, pelo estado nacional) para as comunidades remanescente de quilombos, em sede de argüição de inconstitucionalidade quanto ao decreto 4.887/2003 que regulamenta artigo da Constituição de 1988 referente à demarcação de terras quilombolas.

Os anos que separam 1853 de 2013 são uma boa régua para medir a distância entre a emancipação formal e a material. A historiografia mais tradicional, no Paraná, não se contenta em exaltar a importância da emancipação formal e fundamenta-a em episódios históricos que assinalam o quão engajada esteve a elite local nesta empreita: o movimento emancipacionista de 1811, capitaneado por Correia de Sá; a conjura separatista de 1821, abraçada por Bento Viana; a cooptação legalista (antifarroupilha e antiliberal) de 1842; a propaganda pró-emancipação, de Paula Gomes e Correia Júnior; os 10 anos de debates parlamentares, em que se destacaram Cruz Machado e Carneiro de Leão; enfim, todos os meios que estiveram à disposição da ordeira classe política paranaense durante o império.

Pouco se fala, entretanto, que enquanto as elites ervateiras e pecuaristas de então buscavam se separar de São Paulo, o Paraná se constituía em um privilegiado palco de resistência, em que indígenas, negros e caboclos assumiam todo o protagonismo. E é exatamente esta resistência que fica resgatada no cerne do debate judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

A argüição de inconstitucionalidade foi suscitada por desembargadores da 3ª turma do TRF4 no âmbito da apreciação de procedimento administrativo do INCRA que visava a demarcar o território quilombola Invernada Paiol de Telha, em Guarapuava. Assim, ao analisar o caso concreto, os julgadores pretenderam atacar o próprio ato normativo que torna possível a demarcação, o decreto 4.887/2003.

Ocorre, contudo, que ao atacarem o decreto acabam por atacar a própria história. Se algum tipo de emancipação formal houve em 1853, agora corremos o risco de retornar à estaca zero em termos de emancipação material. Ainda que o decreto de 2003 não seja a regulamentação ideal reivindicada pelo movimento quilombola, justamente por suas intrincadas exigências procedimentais muito próprias de um sistema jurídico que fetichiza a pretensa segurança jurídica, ele se apresenta como um avanço jurídico em relação a) à total invisibilidade em que foram colocadas as comunidades tradicionais negras no Brasil até 1988; b) à inércia normativa que se assumiu a partir da promulgação da Constituição e à ineficácia de se destinar a competência para realizar demarcação de terras para órgão sem estrutura técnica e financeira (caso da lei 7.668, que criou a Fundação Cultural Palmares); e c) à despropositada regulamentação promovida em 2001, por meio do decreto 3.912, que exigia que os territórios quilombolas, para serem reconhecidos, estivessem ocupados por pelo menos 100 anos, desde 1888 até 1988 (da abolição da escravatura até a Constituição da nova república), o que explicita o abismal déficit que carregou consigo referido decreto, quanto a fundamentos históricos, sociais, econômicos e culturais.

É de se salientar que o risco frente ao qual os quilombolas estão expostos é o risco de adiarem uma vez mais as condições de sua emancipação material. A comunidade quilombola do Paiol de Telha, mesmo existindo desde 1860, decorrência de herança recebida por 11 negros escravizados na região de Guarapuava, tem o condão de servir de paradigma em termos de reconhecimento institucional de sua condição. A constituição dos quilombos não pode continuar dando margem a interpretações que considerem estes grupos como “coisa de negros fugidos”. Este é o primeiro passo que devemos dar no sentido de denunciar e superar as estruturas racistas nas quais estamos inseridos. No entanto, outros passos precisam igualmente ser dados e, dentre eles, a luta pelo reconhecimento institucional, ainda que mesmo esta luta não esteja a salvo de vários limites e contradições.

Os quilombolas do Paiol de Telha possuem a marca da resistência e da luta pelos “modos de criar, fazer e viver” que lhes são próprios. Carregam consigo uma história esquecida, a partir da qual podemos reviver os indígenas guarapuavanos resistindo às bandeiras portuguesas e à caça a eles empreendida após a chegada família real ao Brasil, em 1808; a Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, que serviu de chamariz para que caboclos ocupassem a região; os mais de 40% da população do Paraná escravizada em 1853 e sua resistência comunitária; a substituição da mão-de-obra, conhecida como política “linista” (de Lamenha Lins), que passou a promover o suposto branqueamento populacional, com a inserção do imigrante europeu no interior paranaense, em detrimento da população negra aqui já estabelecida.

A grande questão em jogo é saber até que ponto o estado brasileiro, via seus poderes instituídos, compactuará e promoverá o etnocídio e o genocídio. No caso, das comunidades quilombolas. Na medida em que se trata de considerar o território das comunidades negras como terras tradicionalmente ocupadas e não como a forma jurídica “propriedade”; na medida em que “democracia” e “segurança jurídica” não são expressões que se prestem à desfaçatez da lógica mercantil e dos interesses daqueles que sempre estiveram despreocupados com as maiorias a não ser quando elas se rebelam; na medida em que os 160 anos que separam a emancipação formal do Paraná, em 1853, da ainda distante emancipação material de nosso povo, neste 2013, são a mais eloqüente régua que computa toda a desigualdade que vige entre nós; considerando todas estas “medidas” é que nossos olhos se voltarão ao TRF4 e assistiremos, com expectativa, à sua decisão, estando certos de que só representarão os anseios de todo o povo brasileiro, e não só o paranaense, se agirem de modo a reconhecerem a constitucionalidade do decreto 4.887, fazendo deste 19 de dezembro aí sim uma data que tenha alguma coisa a ver com emancipação.

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Texto publicado nos seguintes veículos de comunicação:

- Página da Terra de Direitos;
- Página do CEDEFES;
- Jornal Brasil de Fato.

Conferir também:

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os quilombos, o judiciário e a política

Fernando Prioste
coordenador da Terra de Direitos e advogado popular no caso Paiol de Telha


O debate jurídico sobre a titulação dos territórios quilombolas está polarizado entre os que defendem a aplicação imediata da Constituição e os que exigem a aprovação de mais uma lei para que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal possa ser aplicado. Mas, sabe-se que o debate jurídico não se limita a questões técnicas de possibilidade de aplicação das leis, pois o princípio da legalidade, tão valorizado pelo positivismo como pressuposto lógico da dita “segurança jurídica”, não está alheio à realidade que o circunda. As decisões do Poder Judiciário, por mais que neguem os tribunais, não são frutos exclusivos da técnica profissional neutra dos magistrados. 

Ao levar em conta os aspectos da judicialização da política e da politização da justiça, o debate sobre os direitos constitucionais das comunidades quilombolas desvela os valores políticos e ideológicos, entre outros, que influenciam os posicionamentos jurídicos no tema. O caso da titulação do território quilombola Paiol de Telha, que envolve o julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), não foge à regra. Os oito votos proferidos na sessão de julgamento do órgão espacial do TRF4, em 28 de novembro, escancaram as divergências e abrem caminhos para entender as tensões que determinarão o resultado final do julgamento. Seis foram favoráveis e dois contrários à constitucionalidade do Decreto. 

Aqueles que defendem a aplicação imediata da Constituição e a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, em regra, não escondem os fundamentos políticos e ideológicos que influenciam o manejar da técnica jurídica. De modo geral reconhecem o Brasil como um país com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade para com as comunidades quilombolas e, entre outros fundamentos, valorizam o papel que o povo quilombola tem, hoje, nos campos econômico, cultural e político de nossa sociedade. Essas premissas político-ideológicas orientam a aplicação técnica do direito que eleva o art. 68 do ADCT à categoria de norma de direitos humanos, reconhecendo ainda que a norma constitucional tem aplicação concatenada com a realidade a que veio regular. Nesse sentido, entendem que a Constituição Federal, em sua integralidade, assegurou, às comunidades quilombolas, e à sociedade brasileira, direitos que viabilizem a reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades.

Por outro lado, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 não expõem de forma explícita os fundamentos políticos e ideológicos que sustentam seus posicionamentos jurídicos. Alegam, em verdade, que não se alinham a uma ou outra posição política, pois a decisão é estritamente técnica. Nesse contexto, argumentam que o texto constitucional do art. 68 do ADCT não é suficientemente nítido para ser aplicado, e que o respeito ao estado democrático de direito impõe que a titulação dos territórios quilombolas esteja necessariamente amparada em lei. Ou seja, não basta o comando constitucional. Sustentam que as alterações havidas entre os Decretos Federais 3912/2001 e 4887/03 demonstram a situação de insegurança jurídica que só poderia ser superada com a aprovação de uma lei que regulasse o art. 68 do ADCT.  Nesse sentido, consignou o juiz federal Nicolau Konkel Jr, citado pela Desembargadora Marga Inge, relatora do caso do Paiol de Telha no TRF4:

Sem se alinhar a uma opção política ou outra, resta evidente que cada governo emprestou ao art. 68 do ADCT o significado que corresponde à linha ideológica de cada partido. Aliás, é natural que assim o seja, sendo inconcebível que as administrações sejam rebeldes com seus compromissos históricos. No entanto, se é verdade que os fatos sejam assim, não é menos verdade que o Direito tenha que ser refém dos fatos. Afinal, o Direito não é a ciência do ser, mas do dever ser, sendo seu papel conter, quando necessário, a rebelião dos fatos

O quadro que se apresenta é claro: existe uma necessidade premente de discussão sobre os limites e o alcance do art. 68 do ADCT. No entanto, essa discussão deve ocorrer no foro adequado que é o Congresso Nacional. Se é inegável que cabe ao Poder Judiciário Sindicar eventual regulamentação do tema, também não se pode excluir a necessidade de prévio debate político, a partir de um texto legal que reflita a vontade do povo e não a da administração que expede o decreto.” (sem grifos no original)
Como se vê no trecho acima transcrito, as decisões judiciais estão impregnadas de valorações políticas que orientam o pensar e agir jurídico. Afirmar que a vontade popular não está nítida na Constituição Federal, que ainda é necessário fazer um debate político sobre o tema para se afirmar o direito já inscrito na Carta Magna e que o direito deve conter a rebelião dos fatos (no caso, a titulação dos territórios quilombolas), não é um raciocínio lógico matemático que se extrai de uma suposta interpretação neutra da lei.

A posição jurídica daqueles que insistem em negar a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 se escora em posição política que, via de regra, está associada à negação das políticas raciais afirmativas - por exemplo, o sistema de cotas - e a um suposto agravamento do conflito agrário decorrente da aplicação da política pública de titulação e reconhecimento de direitos às comunidades quilombolas. Também está associada a uma supervalorização do direito de propriedade em detrimento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais daqueles que não são proprietários.

O nazismo e os quilombolas 

O processo de titulação do território quilombola Paiol de Telha é questionado pela Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, produtora de commodities. Durante o julgamento do caso do Paiol de Telha, em novembro, o advogado Eduardo Bastos de Barros, que representante de alguns integrantes da Cooperativa Agrária, comparou a origem dos alemães que hoje ocupam o território com a origem dos quilombolas que foram expulsos de suas terras. Disse o advogado que os alemães vieram para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que o governo da Suíça comprou terras na região de Guarapuava e doou aos alemães derrotados no conflito. Ainda segundo o representante da cooperativa, os alemães teriam perdido todos seus bens na terra de origem por terem integrado o exército do 3º Reich durante a guerra e, assim, na visão do advogado, teriam uma origem humilde como a dos quilombolas do Paiol de Telha. A terra recebida pelos alemães do governo suíço não é o território quilombola do Paiol de Telha.  

Contudo, a afirmação do advogado apenas corrobora o abismo de desigualdade entre os alemães acolhidos pelo Estado brasileiro e a situação de total invisibilidade da comunidade quilombola frente ao Estado.  No embate entre a versão dos quilombolas - que afirmam terem sido expulsos à bala de suas terras - e dos alemães - que dizem ter comprado a terra dos quilombolas - fica o desafio de tentar compreender como se deu, e como se dá, a relação de disputas por terras entre descendentes de negros que foram escravizados e ex-militares alemães do regime nazista de Hitler.

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- Saiba mais sobre o caso clicando aqui.
Processo eletrônico no TRF4.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Resenha de Solução de problemas profissionais de Zayas e Lombardía


Luiz Otávio Ribas
Rio de Janeiro

ZAYAS, Carlos Álvarez de; LOMBARDÍA, Virginia Sierra. La solución de problemas profesionales. Em: __________. Solución de problemas profesionales: metodología de investigación científica. 5. ed. Cochabamba: Kipus,  2009, p. 17-32.

No Grupo de Estudos e Práticas em Advocacia Popular (GEAP Miguel Pressburguer), do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP Luiza Mahin), debatemos o texto "La solución de problemas profesionales", de Carlos Zayas e Virginia Lombardía. Carlos Zayas é doutor em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Moscou e funcionário do Ministério de Educação Superior de Cuba.