O debate que costumava acalentar os estudantes rebeldes e motivar os novos trabalhadores do direito, acerca de uma teoria jurídica crítica, parece que se desvaneceu. Nunca, de fato, conseguiu lograr êxitos práticos dignos de recordação, a não ser por ter se constituído em uma possibilidade histórica, com alguns adeptos na academia e outros no judiciário.
Talvez, nunca consigamos lembrar que já morremos. É muito duro para os estudantes comprometidos com uma transformação social, das faculdades de direito, aceitar isto. Mas é preciso ir cavando a cova, pois nossos heróis, apesar de ainda serem os mesmos, já morreram de overdose - podendo-se entender bastante anchamente esta tal "superdose".
Depois de cerca de 20 anos do "movimento de direito alternativo" no Brasil, muito pouco se avançou, a não ser em um apego incontido pela letra constitucional, que não deixa de ser - com bastante infelicidade - um apego justificado, quando pensamos que temos mais de resistir que de superar no âmbito do direito. Digo-o não por mero pessimismo ou causalismo filosófico. Ao contrário. Não podemos, em nome de nosso esforço criativo, apagar com uma borracha a realidade: a assimetria entre o poder do direito que nos obriga a resistir comparado ao direito que nos facultaria uma sua superação é muito grande. O direito dos opressores - para usar uma expressão, "opressor", que não deveria cair em desuso - é muito mais poderoso que o direito dos oprimidos - também envidando antônimo sempre lembrável. E digo "mais poderoso", e não "mais resistente", porque é de poder mesmo que se trata. Resistente o direito dos oprimidos sempre foi. Se existe de verdade um tal direito - e muito se pode discutir sobre isso! - é por conta de sua resistência. Mas poder mesmo, o poder que as estruturas reivindicam e que informam, como sussurros ao pé do ouvido, as ações do quotidiano, este ainda está longe de ter vida própria.
Daí que chegamos à mais evidente conclusão (evidência, diga-se de passagem, sempre suscetível de críticas - contanto que não se perca em abstracionismos lingüísticos ou individualismos possessivos, ou seja, que não ponha de lado a realidade): há uma tensão congênita ao âmbito do "jurídico". Uma dualidade que cobra feições, hoje em dia, de pluralidade crítica. Ninguém quer nossas estruturas políticas assim como estão - e o direito é parte, logo todo, desta estrutura mesma - mas ninguém quer, igualmente, engajar-se em uma contra-estrutura convincente. Cada um com sua crítica, mas com alguma coisa em comum: não superar a crítica.
Pois bem, creio que não é totalmente descartável esta crítica. Ela nos dá a dimensão do enfrentamento necessário, ainda que não levado a cabo. Na resistência, portanto, já uma superação. E assim caminhamos na amarga dialética do reconhecimento de nossa "impotência" (assimetria de poder). Mas é do escuro que rompe o sol e este nasce sempre e não tardará a amanhecer. Não tardará amanhecer a menos que estejamos em uma escala de tempo em que 500 anos (para ficarmos no choque fundador da in-ocidentalidade latino-americana) sejam apenas alguns segundos. Como cremos que vivemos um tempo que se caracteriza pela aceleração da aceleração, quiçá não seja demasiado romantismo pensar no alçar vôo da coruja de Minerva causídica. Mas é algo sempre duvidoso...
Enfim, gostaria de compartilhar, com os leitores deste espaço de reflexão acerca da assessoria jurídica popular, dois textos que mostram, em alguma medida, este panorama. E o fazem no epicentro do direito posto, mesmo porque o direito de-posto (para lembrar a feliz crítica de um Válter Bênjamin) demandaria, realmente, uma alteração de todas as estruturas conhecidas e até mesmo a da linguagem ("direito", expressão tão carregada de sentido, parece querer normalizar impositivamente, não é mesmo?). Por um lado, as contra-marchas da reflexão acadêmica, com "A contra-revolução jurídica", de Boaventura de Sousa Santos, dando uma perspectiva sintétitca do que se vem gestando no judiciário brasileiro, de peias soltas e sem nenhum grande movimento que consiga obstaculizar (ô, palavra terrível!) esta avalancha reacionária. Por outro lado, a entrevista de Marcelo Pedroso Goulart, dando a cara para bater para a grande mídia nacional, setor o qual - como diria um amigo piauiense - ficou "aguniadim" com a vermelhidão e o frêmito do discurso do promotor do Ministério Público.
No entanto, o que sobra desses dois lúcidos (há de se reconhecer!) depoimentos é sua (sua porque nossa) falta de meios de eliminar a assimetria que embase a tensão, a dualidade, do "jurídico". De um lado, o vigente; de outro, o alternativo. O problema é que o lado de lá tem a realidade empírica a lhe acompanhar, ao passo que o lado de cá só tem algumas palavras, e olhe lá! É preciso aumetar o fosso e fazer com que o lado de cá venha mais para cá ainda, superando a letra fria da filosofia porque indo em direção à práxis, sem nunca deixar de resistir!
Por fim, os dois poemas dos latino-americanos Pablo Neruda e Mário Benedéti, para que nos iluminem, ainda que apenas com palavras, os descaminhos de nossa crítica:
Los nacimientos
(Pablo Neruda)
Nunca recordaremos haber muerto.
Tanta paciencia
para ser tuvimos
anotando
los números, los días,
los años y los meses,
los cabellos, las bocas que besamos,
y aquel minuto de morir
lo dejamos sin anotación:
se lo damos a otro de recuerdo
o simplemente al agua,
al agua, al aire, al tiempo.
Ni de nacer tampoco
guardamos la memoria,
aunque importante y fresco fue ir naciendo;
y ahora no recuerdas ni un detalle,
no has guardado ni un ramo
de la primera luz.
Se sabe que nacemos.
Se sabe que en la sala
o en el bosque
o en el tugurio del barrio pesquero
o en los cañaverales crepitantes
hay un silencio extrañamente extraño,
un minuto solemne de madera
y una mujer se dispone a parir.
Se sabe que nacimos.
Pero de la profunda sacudida
de no ser a existir, a tener manos,
a ver, a tener ojos,
a comer y llorar y derramarse
y amar y amar y sufrir y sufrir,
de aquella transición o escalofrío
del contenido eléctrico que asume
un cuerpo más como una copa viva,
y de aquella mujer deshabitada,
la madre que allí queda con su sangre
y su desgarradora plenitud
y su fin y comienzo, y el desorden
que turba el pulso, el suelo, las frazadas,
hasta que todo se recoge y suma
un nudo más el hilo de la vida,
nada, no quedó nada en tu memoria
del mar bravío que elevó una ola
y derribó del árbol una manzana oscura.
No tienes más recuerdo que tu vida.
Clausuro el portalón del año viejo
pero queda una tímida rendija
por donde miran
tiernos y del sur
los ojos blancos de mis muertos
con sus revelaciones que no cesan
y que presumo no van a cesar
crisis, cartas, latidos inocencias
intentar deslizarse al año virgen
pero hay otras y otros
que prefieren quedarse
insomnes en su sábana
bajo un cielo ya antiguo
sé que el sol es el mismo
que la lluvia y los hongos
son los mismos
pero el futuro es otro
más compulsivo y árduo
con épocas que están
aún por inventarse
no obstante en la rendija
inútil del pasado
hay árboles maltrechos
infancias distraídas
mares verdes y náufragos
pájaros que desmienten el olvido
y otros cielos sin nubes
a punto de entreabrirse
quisiera estar a solas
en ese parque años de tristezas
que conozco cantero por cantero
pero cada lugar tiene su tiempo
cada tiempo su marca
cada desolación su maravilla
tengo el futuro a mis espaldas
alevoso y falaz
incalculable
lo oscuro venidero me persigue
con su propuesta de cenizas
y su cielo velado
el de costumbre
sin embargo es hora de admitir
que a mis ochenta bien cumplidos
yo ya no estoy para dos cielos
apenas uno y ceniciento