domingo, 31 de outubro de 2010

Marx e o não-direito: direito e marxismo

É bastante interessante obervar, atualmente, um reascenso do debate marxista dentro das fronteiras que a modernidade capitalista chamou de direito. Disseminam-se os textos de Marx bem como o de seus continuadores, difundem-se estudos interpretativos sobre o tema, os estudantes se interessam cada vez mais pelo problema e os movimentos sociais e populares reivindicam alguma aproximação com a crítica marxista ao direito.

Isto nos deve fazer pensar em qual o porquê desse reaparecimento. Na verdade, a primeira resposta deve ser a de que nunca houve um esgotamento total do debate. Por isso, não se trata exatamente de um reaparecimento, mas de uma nova visibilidade, fruto, sem dúvida alguma, do amadurecimento adquirido nesta seara que hoje se apresenta como uma significativa linha de pesquisa própria: "direito e marxismo" (bem na linha de outras investigações jurídicas - que, como esta, não se comprazem com as problemáticas clássicas do mundo do direito em sua versão hegemônica - também caracterizadas por uma definição "sindética", ou seja, o uso do síndeto, a palavra "e", como em "direito e literatura", "direito e psicanálise", "direito e economia", "direito e religião" ou "direito e informática", dentre outros).

No entanto, mais do que perceber esta relação dentro dos quadrados termos impostos pela institucionalidade acadêmica, parece ainda mais interessante verificar que se trata de um debate radicalizado dentro das discussões clássicas em torno das teorias críticas do direito. Isto, porém, não leva necessariamente a uma realização plena da perspectiva marxista acerca do direito, já que pode se sectarizar e deixar de responder a anseios concretos da realidade jurídico-política presente.

Senão vejamos. No caso brasileiro, a crítica jurídica passou a ganhar espaço durante a década de 1970, quando passaram a se consolidar os cursos de pós-graduação em direito no país. Esta concretização vem acompanhada do maremoto diaspórico que abalou a intelectualidade brasileira, em especial a chamada esquerda. Não se trata, portanto, pura e simplesmente de se imputar aos exílios de tantos e tantos intelectuais contestadores a razão de ser da cristalização da crítica jurídica entre nós, mas sim de perceber que, nos fluxos e refluxos operados pelos regimes de força aqui vividos, tornou-se possível o diálogo com as tendências teóricas internacionais (notadamente, as européias) e um movimento de resistência teórica interna, ao mesmo tempo. Assim é que a crítica jurídica nacional se forma: lendo os professores franceses, os magistrados italianos e os juízes espanhóis. Mas isto é só um lado da história.

Do outro, há a sublevação teórico-prática de vários trabalhadores do direito em defesa daqueles que acabaram sendo atingidos pelo modo de produção capitalista dependente. E isto acaba sendo um retrato para toda a América Latina. E para se viver este atingimento não foi preciso um regime militar nem as suas atrocidades em termos de cessação de vigência de liberdades e garantias individuais fundamentais. A violência social sempre esteve presente - e ainda está, incrivelmente! - e as grandes maiorias da população permaneceram subjugadas por esses grilhões. Lembro-me, aqui, do auge do movimento anarquista ou das Ligas Camponesas, ambos acontecimentos que se prolongaram no tempo e que não sofreram com a repressão político-jurídica de uma ditadura tal como nós costumamos a pensá-la.

Há toda uma história ainda por se construir acerca da resistência popular e sua relação com o direito. No âmbito do período colonial, a história do direito precisa avançar muito e deixar de fazer apenas a história dos colonizadores, porque o retrato dos condenados da terra continua terrivelmente apagado e sequer sucede ao retrato dos invaores da terra. Mas isto só se tornará uma realidade teórica a partir do momento em que se consiga estabelecer uma ampliação de perspectiva acerca do que se entenda pelo fenômeno jurídico. Enquanto direito for o direito oficial, pouco nos caberá fazer. E mais: pouco também avançaremos se apenas focarmos a resistência na arena do direito formal. Sim, processos judiciais e procedimentos administrativos (para usar expressões de hoje) permitem ver muitas coisas - e já por aí se percebe a tarefa tapuia que nos desafia a todos - mas é preciso ver o "direito" para além de suas fronteiras técnicas e estatais. É preciso, pois bem, alargar sua conceituação, percebendo-o como uma forma histórica e complexa de compreensão da organização política de uma sociedade, de um povo, de uma cultura.

Daí fazer sentido prático a contribuição do debate marxista sobre o direito e, em especial, sobre a crítica jurídica. No tangente a isto, é preciso que continuemos reivindicando, em primeiro lugar, uma teoria crítica do direito. Mas uma teoria crítica que exsurja dos escombros de quatro décadas de ruínas do direito crítico. Isto porque a marca deste edifício corroído e em permanente crise tem sido o déficit da práxis: ou os críticos se perdem na curva da teoria ou morrem na estrada da praxe. É uma afirmação dura e presunçosa. Mas é algo que precisa ser dito.

Em segundo lugar, faz-se premente perceber a historicidade do fenômeno jurídico e sua não universalidade. Trata-se do encontro histórico entre Marx e o direito. Ou melhor, entre Marx e o não-direito. Em toda sua obra, podemos inferir reflexões e ponderações acerca do jurídico. Mas, acima de tudo, é preciso cotejar estas aproximações com sua proposta de uma ciência total, a história. Não se trata de canonizar Marx nem biblificar seus escritos, mas sim de compreender sua arguta interpretação do mundo e sua radical proposta de transformação da realidade. Bastante grosso modo, a realidade vigente é a do capital que explora o trabalho; deve-se passar, então, a superar esta contradição, a partir da força motriz da realidade - o pólo explorado, dentro desta contradição. Assim é que o direito como fenômeno deve se diferenciar do direito como categoria, a partir de Marx. Ainda que incipiente e frágil, esta distinção pode ser válida na medida em que todo trabalhador progressista do direito permanece renitente em disputar o conceito de direito, reivindicando o lado "bom" de sua prática, quase que como um edipianismo fetichista: a profissão como mãe, desejada e idolatrada, mesmo que fadada à interdição e ao sepulcro. Quando se apercebem disto, os trabalhadores progressistas do direito costumamos furar nossos próprios olhos... E os conceitos de direitos humanos e cidadania, por exemplo, estão aí para comprovar a automutilação.

À parte mitologemas helenocêntricos, eis um desafio. Certamente, um desafio algo mais que nominalista. Reivindicar a universalidade do direito-fenômeno é, realmente, não se dar conta de que tal fenômeno só existe enquanto existe o modo de producação capitalista, a modernidade, o ocidente colonial ou qualquer outra denominação que se queira dar ao tempo histórico dos últimos quinhentos anos. Agora, se chamarmos de direito toda organização política de uma cultura, estaremos resolvendo o problema, mas perdendo de vista a especificidade de nossa história presente. Daí ganhar sentido, um sentido revigorado, a tese da abolição do direito e do estado. Mas se trata de uma extinção palpável, porque fruto de uma transição para uma nova forma de organizar a humanidade, uma autoconsciente organização, um novo mundo e cosmogonia, que pelo simples fato de ser imaginado e tentado e ainda não desabonado continua possível. É utopia, ainda que não utopismo.

Dito isto, falta ainda fazer menção à terceira atitude reivindicativa da teoria crítica marxista do (não-)direito: a coerência, a práxis. Sem dúvida, a mais difícil das necessidades do crítico do direito. Entre a realidade e a utopia, deve ficar com as mediações da luta. Sim, ler "A questão judaica", "O capital" ou a "Crítica ao programa de Gotha"; mas também encontrar seu quinhão no mundo da prática, seu serviço como intelectual - já que todos são intelectuais - em favor dos novos sujeitos históricos da transformação, uma transformação qualificada, revolucionária. Advogados, promotores, juízes, delegados e professores, todos devem ter este horizonte. Mas esse horizonte só se pode construir na luta quotidiana e na organização política (gosto de chamá-la de construção poder dual/plural), mesmo que com as maiores dificuldades impingidas à organização. Por isso mesmo, juristas não são apenas os profissionais da divisão do trabalho social, pois, se o direito é organização política, todos somos juristas-políticos.

A partir disso é que se pode dar espaço à marxologia. Nunca antes disto. A definição triádica de direito em Estuca ou o antinormativismo de Pachucânis, assim como a crítica estrutural de Miaile ou o alternativismo latino-americano, todas estas visões precisam ser colocadas sob o crivo da história e a história não é um dado, mas antes é construída. Urge relermos, casando-os, a obra de Lira Filho assim como os feitos de Presbúrguer. Neles, não se cindem teoria e prática, mas há de se os superar, porque só na práxis histórica se encontra a verdade. E nós a reivindicamos, e como (tal e qual os "Obreros", da pintura acima de Ricardo Carpani)!

sábado, 30 de outubro de 2010

Coluna Prestes: a coluna de domingo


Caros leitores do blogue Assessoria Jurídica Popular,

Gostaria de avisar a todos que, há duas semanas, os colaboradores do blogue reelaboramos a divisão de tarefas quanto às contribuições de postagens. Daí que eu me incumbi da publicação de domingo, ainda que isso não signifique restrição a apenas este dia da semana. É somente uma organização dos blogueiros, de forma autogestionária, para a administração de nossos trabalhos.

Escolhi um nome para minha participação domingueira: Coluna Prestes. Apesar de todos me chamarem de Ricardo ou de Pazello, ressaltei a parte de meu nome que mais me agrada, o Prestes. Junte-se a isso uma pequena brincadeira histórica e de resistência e aí está, a sua coluna de domingo!

Um abraço, camaradas!

Ricardo Prestes Pazello

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Relato do acampamento do Sajup-PR em agosto

Noticiamos o relato do grupo de assessoria estudantil SAJUP-PR, que realizou nos dias 6, 7 e 8 de agosto de 2010 seu acampamento de formação, na Casa do Trabalhador, em Curitiba.
Foram dias intensos de debates, leituras, oficinas, teatros e místicas.

Em anexo a íntegra do texto preparado pelo grupo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

PET Direito UFSC aborda o Direito e a Ditadura

Direto de Florianópolis.

Está ocorrendo de 25 a 29 de outubro na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, o Seminário Direito e Ditadura, organizado pelo PET-Direito.

O evento é uma iniciativa dos estudantes do Programa de Educação Tutorial e dos professores Jeanine Philippi e Lédio Andrade.

Os temas em debate são variados, incluem os direitos humanos, justiça de transição, exceção, arte e cultura de resistência, regimes autoritários, resistência feminista ou feminina e os reflexos das ditaduras nas sociedades contemporâneas.

A programação inclui palestras com professores e pesquisadores brasileiros, comunicações orais, exibição de curtas, lançamento de livros e um sarau.


As atividades iniciaram ontem, em clima de grande agitação e mobilização estudantil. Muitas faixas, cartazes e fotografias foram dispostas no auditório e nos corredores da Faculdade de Direito.




Houve uma cerimônia para nomear a sala de aula do primeiro semestre como "Sala Adolfo Luiz Dias", (1954-1999), que foi estudante do curso de direito da UFSC, Presidente do Diretório Central de Estudantes em 1979, e da União Catarinense de Estudantes, 1980. Participou da Novembrada, marco da resistência contra a Ditadura em Florianópolis, onde foi preso com mais seis membros do DCE, todos enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

Contribuição importantíssima para a reaproximação do movimento estudantil e de pesquisadores sobre o tema da Ditadura Militar no Brasil. O retorno do debate ocorre num momento político conturbado na América Latina, onde grandes movimentações políticas tem acirrado os ânimos da direita golpista, como nos exemplos das tentativas na Venezuela, em 2002, e no Equador, neste ano. Ainda, é uma oportunidade para fortalecer o movimento nacional pela memória e a justiça de transição.

domingo, 24 de outubro de 2010

Os sujeitos históricos da transformação: organização político-jurídica e antropologia


Assumir uma perspectiva de crítica jurídica, sob o enfoque revolucionário, implica arcar com o ônus da utilização de velhas expressões que continuam como presentes anseios.


Lembro-me, por exemplo, da lucidez das análises de um Manoel Bonfim (Bomfim, na grafia original e ainda conservada nas publicações mais recentes sobre o autor) que em pleno início do século XX escrevia sobre os “males de origem” da América Latina. A posição de Bonfim é revolucionária para seu tempo, mas nem por isso menos posição de seu tempo. Lembrando Marx, diria que um dado “momento histórico” só se coloca frente a problemas que este mesmo “tempo histórico” pode resolver. É claro que aqui uso uma figura de linguagem e personifico o tempo que, na verdade, é uma parcela da construção social chamada “humanidade”, para usar a expressão do velho Marx. Pois bem, Manoel Bonfim não era alguém a frente do seu tempo (e aqui rendo minhas homenagens aos amigos catarinenses que enfatizavam este entendimento quando por lá discuti e me interessei pela obra de Bonfim), pois só um ente sobrenatural pode sê-lo. Não. Ele colocou problemas que seu tempo poderia resolver. O parasitismo social marcante na América Latina era a sobranceira compreensão desse tempo.

Todas estas reflexões eu as faço para discutir, ainda que brevemente, sobre o tempo histórico presente. E, como disse, este tempo é a parcela da humanidade, a qual não se vê refletida em seus avanços civilizacionais. Portando, entre o tempo e a humanidade há uma mediação faltante, que precisa ser constantemente rememorada. Eu gostaria de chamar atenção a ela, nomeando-a de “sujeitos históricos da transformação”. Utilizo-a no plural para poder dar conta do debate aberto, notadamente na América Latina, acerca de quem personifica esta mediação.

Poderia, bastante arbitrariamente (já que um exame rigoroso necessitaria de um aprofundamento mais sistemático sobre os atores da práxis envolvidos nesse debate – intelectuais orgânicos e movimentos populares, os quais não perfazem uma dicotomia, falsa por essência), lembrar de três debates que envolvem esta problemática: a “classe operária”, para Rui Mauro Maríni (ver artigo “O conceito de trabalho produtivo”); o “povo”, para Enrique Dússel (ver livro “Ética comunitária”, item 8.5) e a “classe-que-vive-do-trabalho”, de Ricardo Antunes (ver conferência “Os novos proletários do mundo na virada do século”). Tanto a teoria da dependência, quanto a filosofia da libertação e a sociologia do trabalho, bastante grosso modo, apontam para a historicidade do sujeito da transformação, o que impõe a constante reavaliação crítica (por isso mesmo não revisionista) da noção de classe e, fundamentalmente, da classe proletária. Por não ser ente metafísico, ela deve sempre ser historicizada, já que a história é o horizonte teórico-prático de todo materialismo crítico (logo, não ingênuo).

Nesse sentido é que se faz preciso alargar a visão que temos sobre os sujeitos da transformação social no presente. A minha posição não é uma proposta iluminista, no sentido de dar luz ao novo “concepto”. Ao contrário, segue a tendência crítica da produção teórica destes mesmos sujeitos históricos, ainda que sem perder aquela tensão que caracteriza a noção de “crítica” entre os franquefurtianos: a crítica sempre se faz histórica e necessária quando se distanciam teoria e prática no mundo concreto.

Tudo isto para dizer que assim como Maríni considera que “do ponto de vista estritamente econômico, a tendência do sistema é aumentar, nunca diminuir, a classe operária”; assim como Dússel diz que “povo é o ‘bloco comunitário' dos oprimidos de uma nação”; e assim como Antunes sublinha a necessidade de uma “noção ampliada de classe trabalhadora”; é preciso considerar o papel das chamadas “comunidades tradicionais” para a transformação social qualitativamente considerada.

Apesar de ser ponto polêmico, não pode deixar de ser enfrentado. Não quero, com isso, levianamente dizer que as posições acima justificam esta idéia corrente no seio de alguns movimentos populares, mas antes demonstrar a historicidade das mediações teóricas e de suas visualizações práticas. Negar um papel revolucionário a estes sujeitos é negar historicidade à resistência. Tentando traduzir Mariátegui para hoje, poderíamos dizer que não queremos voltar à tradição dos incas, mas ver que existem franjas no modo de produção hegemônico, o qual, por mais totalitário que possa ser, não consegue absorver toda a realidade, porque o real não se reduz ao existente. É preciso perceber as potencialidades do não-lugar-ainda; o exemplo de Zumbi dos Palmares!

Assim é que faz sentido, no caso brasileiro, compreender o papel revolucionário do modo de vida comunitário de indígenas, quilombolas e faxinalenses, dentre inúmeros outros representantes das chamadas comunidades tradicionais. Assim como, historicamente, a classe trabalhadora parece ter absorvido, de uma forma ou de outra, em grau menor ou maior a depender da corrente teórica que a formula, os camponeses, os assalariados e os lumpemproletários, é preciso pensar o papel mariateguiano dos quilombos, das tribos e dos faxinais. Nesse sentido, é preciso deglutir os estudos antropológicos, da mesma maneira como os estudos pós-modernos: compreendendo que sua potencialidade crítica não se anula só porque suas repostas para o mundo concreto são fragmentárias, assim como não deixam de ser importantes as realizações materiais da civilização moderna. Superando as relações de causa-efeito, um determinismo intelectual, reformulamos a relação entre fins e meios, mostrando haver uma teia muito mais complexa, porque totalidade, de mediações na vida concreta.

Por isso, a nascente antropologia jurídica latino-americana tem muito a oferecer, se bem que também muitíssimo a caminhar, nessa importante discussão acerca dos sujeitos históricos da transformação. Transformação esta, como dito, qualitativa, pois que deve levar a um outro lugar que não o do fim da história nem tampouco o da história dos guetos, burgos ou feudos. Daí a necessidade histórica de se compreender a organização política (que, em nosso escasso vocabulário, não escapa a ser também jurídica) dos povos tradicionais. A tradição não é nosso futuro, mas nosso futuro também nada será sem nosso passado de resistências.


Chefe dos Bororenos partindo para uma expedição guerreira, de Debret

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Crítica aos direitos humanos e movimentos sociais

Assunto espinhoso na esquerda brasileira é o dos direitos humanos. Há quem defenda posição, fundamentada em Marx, de que não é possível trabalhar, mesmo que no âmbito do discurso, com uma visão positiva dos direitos humanos. Isto é, os direitos humanos são meramente os direitos do homem individualmente considerado, e identificado, formal e materialmente com a classe dominante. Para alguns, representa ainda, um discurso próprio da estratégia neoliberal.

Ocorre que inúmeros movimentos populares brasileiros, com seus assessores, compartilham a idéia de direitos humanos num plano positivo, de sua afirmação perante a sociedade civil e o Estado. Um exemplo é o Movimento Nacional dos Direitos Humanos, que assessora inúmeros movimentos populares e leva este conceito como sua principal bandeira ideológica. Inclusive, existem hoje organizações de direitos humanos, que diferenciam-se de outros sujeitos coletivos como as ONGs, justamente por propor esta terminologia.

Por onde começar para propor a ressignificação deste termo "direitos humanos", senão da própria práxis dos movimentos populares? Independente do termo, o que é necessário afirmar é a igualdade material de todos "homens" (homens e mulheres) neste modo de produção capitalista. Mesmo que sabedores da impossibilidade concreta de alcançar esta igualdade, conforme Marx. A afirmação de algo irrealizável hoje funciona como um mecanismo eficiente de denúncia desta condição, fruto da conscientização dos movimentos populares a respeito da necessidade histórica de dar fim ao trabalho assalariado e ao capitalismo. Trata-se da disputa do conceito levada as últimas consequências.
Ainda, os direitos humanos no âmbito cultural carregam um significado histórico determinante em algumas correntes do movimentos feminista, indígena, negro, de gênero, entre outros. Necessário compreender estas especificidades e buscar cumprir o desafio histórico de unir forças para o fim do capitalismo com estes sujeitos.

Por fim, o discurso dos direitos humanos é estratégico para levar a cabo a união temporária com setores progressistas, para barrar retrocessos dos raivosos reacionários e golpistas de direita, fortalecendo uma democracia representativa limitada, formal e desigual, mas que significa condição mais favorável do que a ditadura militar, por exemplo.

Fica a questão para debate: quais sentidos atribuídos pelos movimentos sociais aos direitos humanos?

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Assessoria popular em ocupação urbana de Passo Fundo

Por Luiz Otávio Ribas

Hoje irei relatar parte do trabalho do Centro de Assessoria Jurídica Universitária e Popular CAJU Sepé Tiaraju, de Passo Fundo, Rio Grande do Sul.

O CAJU desenvolveu a maior parte de suas atividades de 2005 a 2007, principalmente, com o trabalho de apoio a uma ocupação urbana no bairro Alexandre Záchia, no município de Passo Fundo - que foi organizada pelo Movimento Resistência Popular (fundado em 1999, na cidade de Guarulhos, São Paulo). Esta ocupação foi iniciada pelo movimento social em 28 de maio de 2005, quando cerca de 220 famílias, mais de 700 pessoas, ocuparam área de propriedade de empresa mista de saneamento de água e esgoto, e nesta construíram suas moradias.

No período de junho a dezembro de 2005, o CAJU teve participação no “Ciclo de Oficinas Multitemáticas construindo sonhos”, quando facilitamos cinco oficinas e acompanhamos todo o período crítico, os primeiros quinze meses de ocupação. As oficinas envolveram os temas sugeridos pelos moradores: acesso à justiça, trabalho, função social da posse, movimentos sociais, criminalização das ocupações e democratização da mídia.

Antes do trabalho educativo fizemos várias visitas ao local, comparecemos às audiências judiciais cíveis, aplicamos formulários aos ocupantes, comparecemos a reuniões e assembléias do movimento. A principal preocupação, num primeiro momento, era colaborar na rede de apoio social a ocupação para prevenir a repressão dos órgãos públicos, assim como informar a opinião pública. Nos unimos a articulação de apoio formada por outras entidades da sociedade civil, que organizaram ações de educação popular na ocupação e de comunicação com a sociedade e o poder público. Outra preocupação era auxiliar os advogados do movimento no estudo das alternativas jurídicas e administrativas para o caso, principalmente do Estatuto da Cidade, das leis municipais sobre a questão, sobre a situação do imóvel, das leis ambientais etc. As oficinas educativas ocorreram em locais disponibilizados pelo movimento. Três ocorreram numa escola do bairro, uma num galpão disponibilizado por um morador e outra numa igreja evangélica. As oficinas ocorreram imediatamente antes ou depois da assembléia semanal do movimento, realizada no sábado à tarde.

Na avaliação de um dos integrantes do movimento social, o CAJU atuou como mais um grupo de apoio. A partir das atividades educativas foram facilitadas questões relacionadas ao acesso a justiça, principalmente. Além disso, as oficinas auxiliaram para explicação dos problemas jurídicos e análise de conjuntura, para organização das ações diretas.

Busquei relatar e refletir sobre esta experiência no texto "Assessoria jurídica popular universitária e direitos humanos".

Alguns integrantes do CAJU voltaram a reunir-se na comunidade nos últimos meses. O interesse é avaliar criticamente a primeira atuação e seguir com o trabalho de apoio e educação popular. A primeira tarefa será auxiliar o movimento a recontar sua história para os próprios moradores do bairro e da cidade, assim como comunicar a experiência para outros grupos de apoio e movimentos sociais.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O dia 9, o dia 10, o dia 11 e o dia 12...

Qualquer data do calendário, seja o calendário que for, pode nos remeter às mais impressionantes histórias. Falecimentos e nascimentos, por exemplo, não deixam de abundar. Acontecimentos e fenômenos pululam aos cântaros. Isto para não falar em fatos corriqueiros, que nos embalam em nosso dia-a-dia irremediavelmente. Vou juntar aqui quatro datas - as quais não deixam de ser pouco mais que um acontecimento astrológico - e fazer uma breve reflexão sobre elas.

As quatro datas são justamente as que nos envolvem no dia de hoje, bem como no de ontem, no de anteontem e no de amanhã. Serei linear e cronológico e começarei por anteontem.

Na noite de 9 de outubro, a banda "Rage against the machine" participou de um concerto inserido no "Fórum Global de Sustentabilidade". O fórum tem por princípio máximo a idéia de que "começa com você" (em inglês, starts with you - por isso SWU) e poderia ser mais um evento promovido pelo pensamento pós-industrial eurocêntrico (com o tradicional preço caro de sempre) não fosse a postura dos Rage de ter dedicado uma de suas canções ao MST. Isto mesmo, "People of the sun" foi dedicada aos trabalhadores rurais sem-terra. A postura imediata da transmissão brasileira que se dava por canal fechado (da Multixou - Organizações Globo) foi a de censurar a apresentação, em especial quando o guitarrista Tom Morelo vestiu o boné vermelho do MST. O guitarrista comentou depois: "isso significa que estamos ganhando" (ver postagem divulgada na página de Luís Nassif).

Esta censura (sobre a imagem, já que o discurso é tolerável, uma vez que o público brasileiro não entenderia mesmo o idioma inglês do vocalista) nos remete ao poder que é exercido sobre os países dependentes da periferia do sistema-mundo colonial capitalista moderno. Adjetivos não bastam para nos referirmos à opressão comezinha, tão rotineira quanto as datas tanto no calendário quanto na astrologia. Pois bem, o dia 10 de outubro, por exemplo, traz uma marca importante nesta história dos vencidos: a conclusão do Canal do Panamá, no já longínquo ano de 1913. Milhares de trabalhadores panamenhos e colombianos morreriam durante as obras que duraram cerca de dez anos (anos de consolidação da independência panamenha, influência direta da ardilosa atuação imperialista dos EUAAS). E assim tem sido a história da periferia: obras, mortes, mobilizações e repressão. Aliás, a história da construção do Canal do Panamá, verdadeira zona franca do comércio estadunidense, cristaliza o avanço imperialista ianque que sairia vitorioso da guerra hispano-americana invertendo o eixo neocolonialista na América Latina. Porto Rico e Guantánamo seriam "aquisições" duradouras dos EUAAS com relação ao poder espanhol. Cuba (como também as asiáticas Filipinas) sairia da condição de protetorado (se não formal, ao menos material) apenas quando da independência efetiva com a revolução de 1959. Assim, a guerra hispano-americana tem no Canal do Panamá sua referência econômica maior e este é o símbolo contra o qual se dedicou a revolução cubana dos irmãos Castro, de Cienfuegos e de Guevara.

No dia 11 de outubro, porém, é possível rememorarmos um trágico dia para a história brasileira, dia no qual o autoritarismo apareceu entre nós, no ano de 1965, com a mão forte e bem nutrida pelo bico da ave de rapina imperial. É o dia que ficou marcado pela invasão da Universidade de Brasília por tropas milicianas, o que resultaria num movimento demissionário de professores. A ditadura mandaria 15 professores embora; a resistência docente se daria por uma autodemissão coletiva de 223 professores. A UnB era palco de uma tentativa de transformação nacional pela educação e tem muita afinidade, em seus primórdios, com aquilo que costumamos designar hoje de uma "utopia da universidade popular" - ainda que não se possam excluir daí várias críticas (mas isso vale um futuro e prometido comentário sobre a "universidade popular").

Pois bem, se as datas lineares nos levam para a diacrônica exposição acima, devo terminá-la com o marco privilegiado de 12 de outubro. Mais que dia da padroeira do Brasil ou das crianças, o 12 de outubro é o dia da conquista - bélica e espiritual - das Américas! E o estrondoso evento não poderia deixar de ser rememorado em suas vésperas. Não para comemorá-lo como costumamos fazer nos dias presentes, mas para tornarmos presente a nossa memória coletiva. O 12 de outubro de 1492 (data certamente arbitrária, como o é por definição toda data) é o índice maior de nossos tempos. Marca o choque de culturas que se arrasta no tempo e faz vingar a colaboração forçada dos povos. E quem o força é o arrasador movimento do modo de produção capitalista, que, não fosse seu ímpeto de conseguir construir resistências contra ele próprio, seria sem dúvida o fim dos tempos, o fim da história. Mas assim não é. A história não tem fim assim como não há povos sem história. Nós temos a nossa, assim como todos os homens das culturas autóctones do continente americano; assim como os resistentes estudantes, professores e trabalhadores da UnB; assim como os rebeldes panamenhos; assim como os trabalhadores rurais sem-terra e os intelectuais e artistas empenhados em defender sua legitimidade, como também a de outros movimentos sociais e populares, apresentada como sendo a legitimidade de um sujeito coletivo histórico da transformação social, o verdadeiro povo do sol.

______________________________________________________________________________________________

"Tablas de la conquista de México"

(de Miguel González - Museu Nacional de Belas Artes, Buenos Aires/Argentina)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Captura Críptica - novo volume e chamada para artigos



A revista Captura Críptica: direito, política, atualidade lançou seu mais novo volume, referente ao 1º semestre de 2010.


É a revista discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, que acolhe contribuições de estudantes de graduação e pós-graduação, bem como profissionais, militantes de movimentos populares e interessados em geral no problema da crítica jurídica.


O edital para o próximo número já está publicado, ficando para 7 de novembro o prazo para envio de trabalhos.


Vale ressaltar que esta edição traz uma entrevista com Luiz Alberto Warat, bem como o resgate de um texto crítico do economista e teólogo alemão, radicado na América Latina, Franz Hinkelammert. Os blogueiros também contribuíram para a atual edição e com os seguintes textos:


A dura história, a história dita dura (ou Os bons meninos de hoje eram os rebeldes da outra estação), por Ricardo Prestes Pazello


Algumas reflexões sobre o ensino jurídico: interlocução com o agir comunicativo de Jürgen Habermas e a ideia de direito como integridade de Ronald Dworkin ou Tentando resgatar uma flor em meio à aridez do deserto dogmático-doutrinário das salas de aula, por Nayara Barros de Sousa


Movimentos sociais e descolonialismo: aportes para um pluralismo jurídico insurgente, por Liliam Litsuko Huzioka e Ricardo Prestes Pazello


Resenha: SANTOS, Boaventura de Sousa (Queni N. S. L. Oeste). Rap global, por Ricardo Prestes Pazello


Boa leitura a todos!

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Direito insurgente e pluralismo jurídico

Por Luiz Otávio Ribas

O direito insurgente é uma proposta de advogados com movimentos populares brasileiros. Inclusive sem inserção nos cursos de pós-graduação em direito, alguns advogados constituíram uma boa base de reflexão teórica e prática a respeito de um direito dos movimentos populares. É possível encontrar diálogos desta corrente, principalmente do assessor popular Miguel Pressburger, com outras teorias críticas do direito - todas valorizadas pelo movimento estudantil de direito nas décadas de 1980 e 1990: direito achado na rua, direito alternativo e pluralismo jurídico.

Existe uma proximidade teórica entre o direito insurgente e o pluralismo jurídico, na medida em que o primeiro constitui-se na dualidade dialética de afirmação e negação do direito. A afirmação pelo positivismo (positividade) de combate, que constitui na "garimpagem" da legislação positivada em busca de interpretações favoráveis a manutenção das conquistas políticas dos movimentos. Assim como a negação de todo processo jurídico ideológico vinculado ao modo de produção capitalista - seu fiel escudeiro. A superação consiste na insurgência de um novo direito, nas "barbas" do regime capitalista e arquitetado em seus escombros.

A relação com o pluralismo está na denúncia da inexistência de um direito (como justiça social) na atualidade, expressa na frase "isto que está aí não é direito". O direito está fora/dentro do Estado, nos movimentos populares, na prática política de resistência, desobediência e revolução.


O pluralismo jurídico popular e insurgente privilegia o direito como fato social de movimentos populares, mas também preserva a idéia de direito como norma. Destaca a normatividade jurídica que insurge dos múltiplos movimentos de produção autônomos - alguns "plastificados" e "engessados" pela "carapaça" estatal. O trabalho popular prevê o positivismo de combate, ou o diálogo direto com o direito estatal, a desobediência civil, o exercício do direito de resistência e a construção de uma proposta insurgente de modelo jurídico. Privilegia-se a democratização do acesso à terra e à moradia, com a interpretação da função social da posse e da propriedade da terra e da moradia, as ocupações e os modos de produção da vida autônomos dos acampamentos e assentamentos. Neste sentido atua a assessoria jurídica de movimentos populares: na dualidade de fortalecer as garantias para o povo e da construção de uma prática jurídica que visa à extinção do Estado capitalista.

domingo, 3 de outubro de 2010

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha


Na semana em que a secretária de estado ianque pediu desculpas públicas aos guatemaltecos pela realização, entre 1946 e 1948, de pesquisas médicas em encarcerados, mulheres e doentes mentais daquela nacionalidade com o intuito de testar a capacidade da penicilina na cura da sífilis (inclusive, notícia publicada pela grande mídia), o continente nuestro-americano assiste, apreensivo, a mais uma tentativa de golpe de estado em um país da aliança bolivariana.

O Equador, do presidente Rafael Correa, teve suas instituições atacadas por um setor da polícia que teria sofrido diminuições em sua renda por conta da nova Lei de Servidores Públicos (ver comentários técnico-jurídicos sobre a referida lei) que lhes retirou uma série de benefícios, os quais seriam compensados por incrementos salariais ou soldos, segundo o governo.
-
Mais que, porém, defender a democracia equatoriana, ou a revolução cidadã de Correa (como fizeram várias organizações populares, tais quais a Via Campesina), na qual se inclui a inovadora constituição do Equador (certamente, símbolo máximo do novo constitucionalismo latino-americano, tendo por artífices juristas progressistas do continente como Roberto Gargarela e Caterine Walsh), cabe levantar alguns pontos importantes para se pensar o que ocorre em nosso continente. Vários e importantes teóricos latino-americanos, há algum tempo, anunciavam: “vivemos uma primavera política”. Mas será mesmo? Ainda que esta questão também seja relevante, não é a ela que quero me dedicar e sim ao conjunto de episódios que assolam, há uma década, a América Latina e o que se pode fazer a partir dessa análise mínima.

Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, vimos vários acontecimentos que tiveram o condão de consolidar uma primavera continental, mas outros tantos que apontam para um rigoroso inverno. Talvez, dentre os principais destes últimos esteja o parco avanço da estratégia bolivariana (que, por si, já é passível de algum questionamento) e a incrível escalada cooptadora nos supostos governos progressistas, em especial, da América do Sul. Mas, sem dúvida alguma, o principal índice meteorológico do inverno rigoroso que se anuncia é a série de golpes de estados a que o continente assiste estarrecido. E pior: contra estes golpes, apenas um discurso e em uníssono – a defesa da legalidade e da constituição!

Não que a defesa da legalidade e do regime constitucional seja, universalmente, uma tática equivocada. No entanto, quando esta tática – parcial por natureza, justamente por ser tática – se torna o horizonte inultrapassável de nosso tempo, um verdadeiro “fim da política”, a estratégia última e utópica de um conjunto geracional, aí sim devemos todos permanecer alerta.

O golpe contra o presidente venezuelano Chávez (documentado de forma incrivelmente direta pela película “A revolução não será televisionada”); a sedição encampada na Bolívia do presidente Evo Morales; e agora a sublevação policialesca no terceiro tripé bolivariano da América do Sul, ou seja, no Equador; todos estes episódios de extremada relevância registram a sucessiva (poderia dizer, até, galopante) organização das forças regressistas no continente, sob a égide da aliança das elites nacionais com o poder imperial (ainda que, como sempre aliás, velada) de amplos setores das diplomacias e governos de países do capitalismo chamado tardio e das corporações transnacionais. Aliados a estas tentativas frustras de golpes, estão os acontecimentos de Honduras e a vergonhosa deposição do presidente Zelaia, assim como a postura política de colombianos e peruanos e a potentíssima ideologia de cooptação nacional popular dos governos do Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai (claro, há de se ressalvar que cada uma destas localidades tem inúmeras peculiaridades e que, por isso, sempre há algo de arbitrário em classificá-las todas de uma mesma forma). Somada a tudo isto, a situação espoliativa no Haiti e a marcha de contínuas repressões no resto do continente, mormente com relação aos movimentos e organizações sociais e populares.

Se, por um lado, o presidente equatoriano Correa pôde resistir heroicamente, bradando: “Si me quieren matar, mantenme”; por outro, parece evidente que não há resistência suficientemente construída para o continente agüentar esta contra-ofensiva. Basta lembrar da postura, ainda que simpática, mas um tanto vacilante, do presidente hondurenho, longe que esteve de honrar o discípulo de Martí que não titubeou ao vociferar: “pátria ou morte!” Sim, o povo sempre resiste. Mas a resistência, é urgente que percebamos!, precisa ser vivida como positividade e não apenas como defesa. Neste caso, a melhor defesa está longe de ser o melhor ataque. Aqui, só se pode defender a vida e nada mais. Sobrevida, portanto, sobredefesa.


E esta denúncia está clara para os principais dirigentes dos países da ALBA. Evo Morales é enfático: os EUAAS executam treinamentos militares em territórios peruano e colombiano e vêm orquestrando golpes de estado na região. Segundo ele (conforme relatado em notícia intitulada Morales acusa a EE.UU. de preparar golpistas en Perú y en Colombia”), os quatro grandes golpes efetivados na última década – a década da consolidação da democracia no continente! – foram levados a cabo por estas intenções imperialistas.

Daí voltar a fazer sentido o discurso de Golberi do Couto e Silva, para quem, astutamente, o ocidente precisava da América Latina, assim como esta necessitava daquele, e que, numa impressionante inversão do ideário latino-americanista, dizia: “para nós, povos desta outra América ainda embrionária e em luta com a miséria e a fome, o penhor supremo da redenção é o senso das responsabilidades próprias na defesa do Ocidente”. E o que significava esta defesa, a qual ganhou o nome pouco oportuno de defesa ou segurança nacional? Eis a resposta: “que estaremos prontos a defender, sem tegiversações covardes nem subterfúgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova”. E esta prova é a prova de fogo da guerra: “essa é a guerra – total, permanente, global, apocalíptica – que se desenha, desde já, no horizonte sombrio de nossa era conturbada. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé”. São trechos, das conclusões e da introdução, do livro de Couto e Silva, chamado “Geopolítica do Brasil” e escrito em 1966.

É claro que se trata de texto inserido no temor contextual do anticomunismo, bem como na guerra fria, na qual o ocidente capitalista se contrapunha ao oriente, nem tão socialista assim. De qualquer forma, a clareza histórica das linhas, para quem as lê, é surpreendente, mesmo porque pede bênção (ou reconhecimento) aos países desenvolvidos e, em especial, aos Estados Unidos da América Anglo-Saxã. E tudo o que vivemos hoje parece, infelizmente, lembrar os tempos em que se preparavam paramilitares no Panamá. Agora, é na Colômbia e no Peru. Ontem, o padre Camilo Torres pagara com sua vida. Hoje, John Saxe-Fernández e Noam Chomsky esbravejam diuturnamente contra as bases militares que rodeiam a ALBA.

E o que fazemos nós? Não quero com isso recair em nenhum simplismo do tipo: “peguemos em armas!” Mas é necessário compreender que a geopolítica nunca se purificou e se há alguma grande lição a partir do pensamento de Golberi é isto: a geopolítica continua utilizando armas, ainda que dentre estas estejam também, e fortemente, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento.

O estado de exceção instaurado, oficialmente, por Correa, no Equador, talvez deixe sem chão os teóricos da vida nua (a não ser que o conceito – estado de exceção – se molde apenas a situações particulares – e daí seria preciso limpar o terreno e voltarmos à noção de poder, já no velho Bênjamin). Daí que nem o constitucionalismo nem o novo constitucionalismo nem mesmo um futuro novíssimo constituciomalismo nos sejam suficientes. É a consciência do povo quem ditará os rumos destes processos, que continuam a ter nas armas combatentes ferozes – e, por ora, combatentes apenas inimigos. Talvez ainda Cuba e Nicarágua (países também membros da ALBA) possam complementar os ensinamentos de Venezuela, Bolívia e Equador. Não desperdicemos quaisquer experiências, pois que são preciosas todas elas e toda consciência tem de se fazer objetiva também.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Coluna de Jacques Alfonsin

Jacques Alfonsin, no artigo "Os riscos que o País corre se não limitar a possibilidade de aquisição de suas terras por estrangeiros" aborda os riscos do avanço das transnacionais sobre as terras brasileiras. Tema que estaria em segundo plano com a proximidade das eleições, principalmente sobre um recente parecer da Advocacia Geral da União.