domingo, 30 de janeiro de 2011

Amílcar Cabral, as formas da resistência e o suicídio de classe

Muito está por ser lembrado e apropriado, para uma nova práxis, do que vem da continental luta de libertação dos africanos no segundo meado do século XX. Inclusive ao nível teórico. Ouvimos falar dos argelinos e dos sul-africanos: dentre os primeiros, Fanon (Frantz Fanon) e Memi (Albert Memmi), difundidos pela força do pensamento sartriano; quanto aos segundos, Bico (Steve Biko) e Mandela (Nelson Mandela), pela potencialidade da comunicação anglo-saxã. No entanto, o colonialismo português - para além de o francês e o inglês - também fez germinar, em suas colônias africanas (hoje, 5 países: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), grandes líderes e referências para as recentes discussões descolonizadoras do poder e do saber.

Há quase quarenta anos, morria assassinado Amílicar Cabral, expoente da luta de libertação nacional em Guiné-Bissau e Cabo Verde. O dia 20 de janeiro é feriado nacional nestes dois países e muito pouco se fala disto e de tal personagem histórica (ver, como exceção que confirma a regra, a notícia Clone de Amílcar Cabral na memória, 38 anos depois).




Das festas co-memorativas de sua morte, surge um importante dever a todos nós: o resgate da ação-pensamento de um importante combatente contra o imperialismo, em prol da libertação nacional africana e do socialismo. Tendo se formado como engenheiro agrônomo na metrópole lusitana, voltou a sua terra natal para trabalhar na assessoria das atividades do campo e acabou fazendo parte da equipe que recenseou a região rural da Guiné-Bissau, o que lhe daria instrumentais fortíssimos para desenvolver sua luta política que já despontara desde os estudos superiores.

Da atividade técnica, passou à organização política, fundando o Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), engrossando o caldo de organizações a favor da libertação nacional das colônias africanas, e em especial das portuguesas. Apesar de divergências teóricas e prática, a força intelectual e política de Fanon e Cabral são marcos essenciais para a compreensão desse período histórico, bem como testemunhos ativos da exigência revolucionária na periferia do mundo. Assim como Fanon, Cabral morre antes de ver a independência total de seu país reconhecida, mas, como aquele, também participaria dos movimentos insurgentes desde a década de 1950.

Junto ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e ao Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), o PAIGC é o exemplo histórico que nos arrasta à discussão da organização política; dentro dela, à análise conjuntural de uma determinada formação social. Dentre os principais líderes destas organizações revolucionárias e libertadoras - tais como Agostinho Neto (MPLA), Eduardo Mondlane ou Marcelino dos Santos (FRELIMO), Pinto da Costa (MLSTP) - Amílcar Cabral (PAIGC) certamente é um dos que nos legou um conjunto dos melhores, com reflexões dotadas de radicalidade e argúcia na compreensão da realidade, bem como de capacidade de sistematização.

Dois focos de suas análises merecem nossa atenção. De um lado, a insistente aposta nas formas de resistência; de outro, a interpretação de sua realidade, que o leva a sedimentar a concepção de "suicídio de classe".

Quanto às formas de resistência, há um seu depoimento histórico bastante interessante, gravado por ocasião do Seminário de Quadros, do PAIGC, de 1969. Publicado com o título "Análise de alguns tipos de resistência", concentra-se na depuração dos modos de resistir a partir de suas qualificações como "política", "econômica", "cultural" e "armada". Partindo do pressuposto de que toda dominação gera resistência, propõe que antes de mais vem a resistência política. Esta é que dá o tom da organização popular contra as formas do colonialismo, ensejada pelo desenvolvimento da consciência. A partir dela, reflete sobre as demais formas, com especial relevo para a resistência cultural. Poeta que fora, Cabral foi considerado como o "pai da nacionalidade" em Cabo Verde e seus versos bem o demonstram (lembrando que nasceu ele em Guiné - terra da mãe - e aos oitos anos foi viver em Cabo Verde - solo do pai):

Ilha

Tu vives — mãe adormecida —

nua e esquecida,

seca,

fustigada pelos ventos,

ao som de músicas sem música

das águas que nos prendem…

Ilha:

teus montes e teus vales

não sentiram passar os tempos

e ficaram no mundo dos teus sonhos

os sonhos dos teus filhos

a clamar aos ventos que passam,

e às aves que voam, livres,

as tuas ânsias!

Ilha:

colina sem fim de terra vermelha

terra dura

rochas escarpadas tapando os horizontes,

mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

Como é sabido, Paulo Freire viria a desenvolver sua pedagogia em vários países africanos pós-libertação nacional, como a Tanzânia e São Tomé e Príncipe, mas também Guiné-Bissau e Cabo Verde. Apesar de não terem trabalhado juntos, devido à prematura morte de Cabral, apresentam afinidade teórica sensível. Se Paulo Freire propõe uma dialética de denúncia-anúncio para uma sociedade nova (denunciar a opressão e anunciar a liberdade), Amílcar Cabral afirma que a resistência é "destruir alguma coisa, para construir outra coisa". Na singeleza de suas palavras, o potencial descolonial de seu pensar. E, acima de tudo, a importância da resistência para a mobilização das classes populares.

A resistência, porém, é exercida concretamente - e não na abstração das teorias. Em seu texto clássico "A arma da teoria: fundamentos e objetivos da libertação nacional em relação com a estrutura social" (na verdade, um discurso realizado em Havana, por ocasião da 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, em 1966) - há uma versão virtual do texto dentro da coletânea "Amílcar Cabral: livro", com o título "Fundamentos e objetivos" -, Cabral consigna a necessidade da luta armada, em seu contexto (um apelo a uma "violência libertadora" que faria qualquer benjaminiano simpatizar-se com ele) e faz uma avaliação da situação de classes dentro do colonialismo, cuja marca é a dominação direta pelo imperialismo, distingundo-se, portanto, do neocolonialismo, no qual haveria dominação imperialista indireta. Assim sendo, o líder do PAIGC enfatiza a centralidade das forças produtivas livres, assumindo o critério do "nível das forças produtivas" como o motor da história (já que as classes sociais não eram universais, pois não teriam havido antes da apropriação privada dos meios de produção nem subsistiriam às fases superiores das sociedades socialistas nascentes), e chega a desenhar um esboço da situação das classes na África, notadamente a lusitana.

É aí que aterrissa a questão do "suicídio de classe", que viria a ser incorporado pelo pensamento freiriano. Lutar contra o imperialismo e a favor da libertação nacional exigia, segundo ele, a organização política, que se apresentava como sendo uma vanguarda revolucionária capaz de praticar a conscientização com as massas populares. Isto até o ponto de se formar uma vanguarda popular, formada e encabeçada pela classe trabalhadora do campo e cidade. Mas este esquema ideal - que, é certo, justificava as trilhas seguidas pelas revoluções africanas - não podia prescindir de uma importante mediação de transição: a pequena-burguesia.

Para Cabral, "a única camada social capaz, tanto de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação, é a pequena-burguesia nativa". Mas, atenção, não se trata de uma frase ingênua ou mesmo astuta. Trata-se, isto sim, de uma análise concreta de sua realidade. Apesar de não dotada de universalidade, ela nos traz uma importante reflexão, já que oriunda da análise objetiva dos movimentos de independência africanos. Tanto é que é ele mesmo que nos diz que há um dilema subjacente à verificação deste fenômeno, o de que há dois caminhos a serem seguidos por tal pequena burguesia: "essa alternativa - trair a revolução ou suicidar-se como classe - constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional". E é exatamente a este ponto que gostaríamos de chegar: como podem os assessores populares agir revolucionariamente? Sem dúvida nenhuma - a não ser para os que consideram anacrônica tal expressão "revolução" -, esta ação pressupõe a luta de classes e o protagonismo das classes subalternas, que na América Latina chamamos de classes populares trabalhadoras. O que os universitários das camadas médias do modo de produção capitalista periférico podem fazer nesse contexto? Parece que o suicídio de classe, apontado por Amílcar Cabral, é o nosso grande exercício histórico, confirmando a totalidade objetivo-subjetiva da pertença de classe.

Que fique a reflexão, meio incial e um tanto polêmica, como sinal da vitalidade e criatividade do pensamento de tão importante figura do socialismo do século XX, chamado Amílcar Cabral.

Ver ainda:

- textos de Amílcar Cabral (inclusive o citado "Fundamentos e objetivos"), na página da Associação Guiné-Bissau Contributo;

- página da Fundação Amílcar Cabral;

- página do CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral;

- texto "Alguns princípios do partido".

sábado, 29 de janeiro de 2011

Carla Miranda e a práxis da assessoria jurídica universitária popular

Dissertação de Carla Miranda, intitulada "Na práxis da Assessoria Jurídica Universitária Popular: extensão e produção de conhecimento", no mestrado em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba, em 2010.


Resumo:
Fazemos aqui uma reflexão de uma prática social denominada Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP). Das nossas próprias práticas ajupianas, naquilo que as falas dos seus membros explicitam sobre sua característica principal: sua capacidade crítica e emancipatória do direito, da universidade e da sociedade. Resgatamos seu marco teórico na experiência histórica dos movimentos teórico-práticos críticos do direito da década de 1980 e 1990. Mas no contexto da universidade em que se realiza hoje, falamos da prática enquanto uma extensão universitária e, marca de sua intencionalidade política transformadora, a identificamos com o movimento da extensão popular. Caracterização que, como uma práxis, ressalta a exigência de produção de conhecimentos socialmente útil na extensão. Esta caracterização enfatiza a educação popular como metodologia, mas na pluralidade de sentidos que o termo abrange hoje torna necessário perceber nos momentos metodológicos de implementação dessa práxis nossa real aproximação da unidade teórico-prática. Nesse sentido, as experiências sistematizadas nos mostram por um lado, o esboço de um modo próprio de fazer extensão popular em direito: um fazer com uma maior inserção comunitária, em que a investigação não é uma prévia, senão, parte mesma da ação, e que reconhece sociabilidades jurídicasoutras, além das oficiais. Mas mostram-nos também, por outro lado, nossas dificuldades ainda nesse exercício dialógico com o povo, nesse trabalho orientado por um sentido ético libertador. Pensar nas práticas em sentido ético é reconhecer que toda prática social traz consigo uma teria (como modo de ser, estar e conhecer), e produz conhecimento e transformação (ainda que conservadora) na reflexividade desses modos de se relacionar no mundo e com o mundo. Ou seja, nossas práticas, assim como o conhecimento que produzimos neslas, estão intimamente relacionadas a um modelo civilizatório. É aqui que falar em AJUP como extensão popular em direito, e da necessária produção de conhecimento útil nesta prática, retoma o debate do valor no conhecimento. As experiências demonstram um conhecimento útil, produzido na prática social, de modo relacional nas situações existenciais da vida. E é reconhecendo racionalidades diversas da racionalidade da ciência moderna que a extensão popular questiona profundamente a universidade. A compreensão das nossas dificuldades está no reconhecimento de que nossas práticas reproduzem muitas vezes a ética dominante e dominadora que tanto criticamos, especialmente quando não refletimos sobre os condicionados culturais em que também estamos imersos. No nosso caso da AJUP, é importante reconhecer os limites do nosso "olhar do direito", e tmabém, do olhar do "nosso direito". Nesse snetido, uma prática em sentido ético-libertador significa mais uma postura de questionamento constrante de nós próprios e nossas relações com o mundo, que da reprodução de qualquer modelo de prática "emancipatória". É no fundo um exercício de profunda autocrítica, de nós mesmos e de nossas práticas, que nos orienta para diminuir as distâncias entre nosso dizer e nosso fazer, para a realização concreta de uma prática libertadora e em Assessoria Jurídica Popular Universitária.

Palavras-chave: Assessoria Jurídica Universitária Popular; Extensão Popular; Produção de Conhecimento; Metodologia


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A comunicação e o apoio popular

A militância hoje está se organizando em torno da comunicação. Os assessores populares trabalham diretamente com a produção de informação, campanhas de agitação e propaganda.

Variadas vertentes políticas (anarquistas, socialistas, comunistas) reúnem-se em meios de comunicação alternativos, especialmente blogues e jornais. Neste blogue, por exemplo, reúnem-se professores, estudantes, advogados, trabalhadores, entre outros assessores populares.

O tema geral do direito insurgente remete a necessidade de pensar a comunicação nos mesmos marcos. É preciso utilizar a mesma estratégia fundada na dualidade da assessoria jurídica popular: positivismo de combate e pluralismo jurídico popular e insurgente.

Na comunicação pode ser feita a analogia para um jornalismo de combate e uma comunicação social popular e insurgente. Cabe tanto uma aliança com a classe dos jornalistas, que vem sendo duramente atacada nos últimos anos, como assumir o desafio de fazer comunicação com viés jornalístico.


Assessores populares: olhai para estes ternos olhos em fogo.


O jornalismo de combate significa tanto a proposta do entrismo, de Adelmo Genro Filho, de que é necessária a guerra de posição nos grandes meios das grandes mídias (jornal, rádio, televisão, internete) - além, é claro, de sua valorosíssima contribuição sobre uma teoria marxista do jornalismo, na obra "O segredo da pirâmide"; como o jornalismo de libertação, de Elaine Tavares, de entregar-se de mente e coração aos movimentos sociais e vivenciar junto com estes para ajudar a contar as suas histórias - com sua obra "Porque é preciso romper as cercas" . Este último já se coloca dentro da proposta maior de comunicação popular e insurgente, que significa a criação de novas estratégias, instrumentos, que reúnam a cientificidade, a arte e o conhecimento popular. Bons exemplos neste campo são mesmo o Núcleo Piratininga de Comunicação, Palavras Insurgentes, Centro Teatro do Oprimido, Fazendo Media, Brasil de Fato, entre muitos outros.

Façamos da asessoria jurídica popular um espaço de comunicação, que estrapole os limites dos projetos com rádios comunitárias e até mesmo este blogue - para construirmos a unidade para a luta.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A repercussão de uma vitória no judiciário: o caso dos laranjais e a luta pela terra

A alegria que não há nos laranjais do latifúndio (arte naif de Araci)

A luta pela terra, em um país com extremíssima disparidade social em torno da propriedade imóvel rural como o Brasil, sempre foi uma das demandas que melhor conseguiu mobilizar a opinião em pública em favor de uma justa distribuição do uso e poder sobre o solo. Em vista justamente disso, talvez, a maior ofensiva contra a "singela" reforma agrária - reivindicada há tempos por organizações populares, políticos progressistas e estudiosos do assunto - venha dos meios de comunicação, haja visto o "caso Cutrale", como veio a ficar conhecido.

Em setembro de 2009, ocorrida a mobilização do MST nos limites da fazenda da Cutrale, onde se planta laranja, a gradne mídia comercial cumpriu seu papel histórico: o de assumir um lado na luta de classes instaurada no país e em todo o continente. Uma despreocupada pesquisa pelas páginas de busca mostra bem isto (ver notas e reportagens de alguns dos principais jornais comerciais sobre o assunto: MST invade fazenda de laranja em Iaras, MST destrói tratores e instalações antes de desocupar plantação de laranja em SP e Invasão da Cutrale: MP aceita denúncia contra 22 sem-terra). E é uma tomada de lado que simplesmente desconsidera a já decantada distinção entre invasão e ocupação, cristalizada em 1990 por um nome do porte de José Gomes da Silva; para não dizer na aguda denúncia de que as terras da Cutrale foram griladas e eram públicas.

Pois bem, após ocorridos os fatos, seguidos de denúncia e prisão preventiva de camponeses sem-terra, vem à tona acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo decidindo sobre o caso, ao apreciar um habeas corpus em prol de mais de vinte integrantes do MST. E a decisão é bastante clara:

"pelo exposto, concede-se a ordem para revogar a prisão preventiva dos pacientes; e, de ofício, concede-se-a também para, declarada a inépcia da denúncia, anular o processo desde o início, ressalvado o direito de ser oferecida nova peça vestibular que preencha, e sem contradição qualquer, todos os requisitos legais."

Mas o que expõe a sucinta decisão colegiada do tribunal paulista? Em primeiro lugar, que a denúncia oferecida não traz os pressupostos mínimos para que possa ter vida nos meandros burocráticos do judiciário, ressaltando-se o fato de que


"a denúncia não descreve referentemente a cada um dos corréus, os fatos com todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). Imputa-se a todos a prática das condutas nucleares dos tipos mencionados. Em outras palavras, plasmaram-se imputações em blocos, o que implicaria correlativamente absolvição ou condenação também coletiva. Isso é impossível. Imprescindível que se defina qual a conduta imputada a cada um dos acusados. Só assim, no âmbito do devido processo legal, cada réu poderá exercer, à luz do contraditório, o direito de ampla defesa."


Em segundo lugar, o acórdão também rejeita, com certa veemência e espirituosidade, algo que tem sido recorrente nos casos envolvendo os fortes movimentos populares brasileiros, em especial os do campo: a alegação de infringência dos crimes contra segurança nacional, da lei 7.170, de 1983 (atenção para a data!). Com a onda de repressão ao terrorismo que chegou a uma mesma espécie de auge qualitaitivo com o 11 de setembro de 2001, os aparatos de repressão de todo o ocidente têm lançado mão desta definição para enquadrar várias condutas transgressivas e insurgentes. Em território brasileiro, esta importação chegou a sua máxima morbidez com a ação civil pública do Ministério Público do Estado Rio Grande do Sul, propondo a dissolução do MST, caracterizado como "pessoa judiciária" apta a responder em juízo e como entidade terrorista que mereceria punição por crimes contra a segurança nacional. Trocando em miúdos, desencavaram a lei requentada do final da ditadura (e que até foi reeditada com bons propósitos) - conferir artigo de Heleno Fragoso, sobre referida lei, intitulado "A nova lei de segurança nacional".


Cabe-nos, a partir desta vitória na esfera do judiciário, questionar o que ela significa no panorama geral do direito oficial brasileiro, notadamente a partir das reflexões da assessoria jurídica popular. Isto porque trabalhamos nos quadrantes da crítica ao direito estatal e às limitações de seu monismo - ou sua monocultura de saberes, para fazer uso de uma terminologia mais modernosa, o que implica, em alguma medida, adotar uma visão do direito achado na rua, do direito insurgente ou de pluralidade jurídica. O puro e simples garantismo constitucionalista nos deixa refém de uma ordem em que é espinhosa sua defesa sem mais.


Muitos teóricos e assessores jurídicos populares vêm ressaltando esta problemática, no exato sentido que demonstra que as vitórias legislativas ou judiciárias podem ter efeitos perversos. Isto não quer dizer que se deva trabalhar com um instrumental teórico que preconize o fracasso nessas disputas políticas institucionais, mas sim com uma armadura crítica que anteveja que estas vitórias são sempre provisórias e contingentes. Afinal de contas, não são as classes populares que estão no timão desse processo histórico. Em todo caso, fica ressaltado que "as derrotas jurídicas sempre são vitórias políticas" na medida em que organizam os atingidos e dão espaço à conscientização (conforme verbete de Luiz Otávio Ribas sobre o advogado e assessor popular Jacques Alfonsin).


Os absurdos técnico-jurídicos se avolumam (como nos dois casos citados, o dos laranjais e o do MP gaúcho) e dariam, no mínimo, uma tese de doutorado. Por outro lado, a aceitação de novas argumentações jurídico-políticas entram muito penosamente no livre convencimento na classe causídica, pública e privada. Nesse sentido, é preciso dizer que algumas interpretações progressistas também podem ser consideradas "absurdas" e, portanto, esta não é a melhor vereda para seguir na crítica ao direito que emana de nossas instituições jurídicas. Fazê-lo significaria submetermo-nos a seus pressupostos (o jargão amebóide e pouco preciso da democracia, cidadania, sociedade civil e constituição - ainda que esta última tenha considerável dose de objetividade em seu uso).


O que importa, por ora, é incorporar a vitória judiciária no rol das bem-aventuranças dos movimentos populares dentro do judiciário (mesmo porque cerca de dez pessoas estavam sofrendo na carne, cruamente, os malefícios da prisão e outras tantas estavam ameaçadas de também participarem dos horrores deste patíbulo) e não continuar criando muitas expectativas de que mais delas venham. Pode haver alguns juristas alternativos, mas eles são a minoria. O único caminho que se pode continuar indicando - ainda que isto não seja novidade para quaiquer movimentos sociais e popular - é o da organização política, no mundo da vida e dos fatos. Porque o mundo dos autos é bastante pobre, ainda que às vezes se sensibilize com uma canção popular como a de Ataulfo Alves, lembrada por uma advogada popular: "laranja madura na beira da estrada/ Tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé".

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sobre a tragédia no Rio...

Todo ano a tragédia provocada pelo descaso dos governantes se repete. São inundações, desabamentos, soterramentos e por aí vai. Como sempre o discurso dos governos é culpar o clima ou a natureza, ou então as pessoas que "irresponsavelmente" construíram suas casas em áreas de risco.

A mídia sensacionaliza essa tragédia, dá ênfase ao sofrimento dos atingidos, mas não procura debater o que mais interessa: A falta de planejamento dou uso e ocupação do solo, a especulação imobiliária que expulsa as pessoas mais pobres de aréas mais valorizadas, e de uma estrutura adequada para a prevenção de desastres do gênero.

Numa atitude midiática, a recém empossada presidente do Brasil, Dilma Roussef junto om o governador do RJ, visitaram o local do desastre e anunciaram a liberação de recursos, cerca de 700 milhões de reais para serem gastos em regime de urgência, , sem fiscalização é bem provável que boa parte desses recursos não ajudem a quem verdadeiramente precisa.

Só pra fazer uma comparação : A reforma do maracanã unicamente engolirá a bagatela de R$ 900 milhões. O fato do maracanã já ter passado por uma reforma em 2008 para o Pan-Americano é esquecido, o que se argumenta agora é que é necessário cumprir as exigências da FIFA, para deleite das empreiteiras.

Não há um projeto ou política nacional de habitação que atendam as demandas do povo. Há um projeto nacional de construção de moradias que atendem os interesses da empreiteiras. Além disso o atual Ministro das Cidades, Mário Negromonte é um conhecido empreiteiro da Bahia.

Daqui alguns dias essa tragédia deixa de ser manchete nos principais jornais e tudo segue como dantes no país de abrantes. Até a próxima tragédia se repetir e provocar de novo a verborragia demagógica dos nossos governantes.


 Visite a nossa biblioteca digital.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Algumas linhas sobre assessoria jurídica popular e assistência jurídica

A assistência jurídica está pautada no escritório-modelo de cunho assistencialista e paternalista onde há uma operacionalização do saber dogmático voltado basicamente para lides postas perante o poder judiciário. Num prisma estritamente formal havendo assim uma distanciação de uma discussão sociológica e interdisciplinar, ou seja, o estudo e práticas se concentram mais nas formas processuais de ação do que em uma problematização mais profunda dos problemas da realidade social.

Encontrando-se distanciada das lutas dos trabalhadores e vista, na maioria das vezes, como formas neutras que podem mediar os interesses das camadas sociais sem condições econômicas a assistência jurídica esquece que o direito não é só uma obediência a lei, mas uma interpretação por parte do operador do direito. Acaba deste modo seguindo paradigmas e pressupostos da comunidade jurídica dados a priore sem serem questionados ou refletidos.

Já o campo de atuação da assessoria tem como pressupostos iniciais o pensamento de 3 autores marxistas: Antonio Gramsci, Paulo Freire, e Roberto Lyra Filho, evidenciando é claro a grande importância de outros autores críticos dentro do processo de construção como: Agostinho Ramalho Marques Neto, Antonio Carlos Wolkmer, Boaventura de Sousa Santos, Roberto Aguiar, entre outros.

A assessoria utiliza o viés de uma sociologia jurídica crítica e do pluralismo jurídico. Por que entende que o operador do direito tem um papel importante na luta contra a desigualdade de acesso a justiça, na luta a favor da efetivação dos direitos fundamentais, na luta pela emancipação social, entre outros.

Parte então da visão do fenômeno jurídico através de uma ótica de reflexão marxista por isso há alguns pontos importantes que supõe ser de fundamental importância nos seus estudos e ações:

*A crítica da ideologia como discurso mistificador da realidade;

*Compromisso com atitudes não dogmáticas; e

*Emancipação dos oprimidos e transformação da realidade.

Vê o direito como um campo contraditório, pois hora serve como emancipador hora como dominador, percebe então ser precioso o entendimento de 3 âmbitos de atuação:

*O da realidade sonegada: que busca agir pelas normas já incorporadas ao ordenamento jurídico, porém carente de efetivação;

*O da legalidade relida: que busca uma construção por dentro do sistema de uma hermenêutica capaz de denunciar o modelo legal tradicional.

*Legalidade sonegada: que se afirmação das práticas jurídicas insurgentes, não formais, de afirmação do pluralismo jurídico.

Para concluir pode-se dizer que: a assistência jurídica é atomizada e forense enquanto a assessoria prima pelo coletivo e por ações de caráter formativo e político em uma luta engajada.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A tradução na assessoria jurídica popular

Por Luiz Otávio Ribas

Após apresentar uma pequena tese sobre a conscientização de direitos, e em outro momento ter abordado a proposta de Paulo Freire, passo a comentar o que entendo pelo conceito de tradução.

Parto da mesma idéia pensada por Jacques Alfonsin, de que a tradução envolve o esforço para explicar o processo ao cliente, assim como outras práticas educativas, que envolvem cartilhas, trabalho com assessores estudantis e oficinas de educação política.

Ainda conforme Alfonsin, é preciso atuar em três frentes: tradução, assistência e formação. A assistência consiste no acompanhamento processual de grupos e movimentos sociais, e a formação significa a atualização em matéria processual e pesquisa acadêmica. Alfonsin relata que essa divisão foi inspirada na proposta da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), fundada em 1986, em São Paulo, que une o esforço de elaboração teórica (com publicações) e advocacia preventiva (tradução da teoria e organização popular).

É possível observar nos textos de Alfonsin que sua escrita está implicada com a tradução, isto é, com uma grande preocupação com a linguagem e com a compreensão pelo leitor, inclusive usando metáforas que o aproximam da linguagem falada.

Acredito que a linguagem dogmática do direito oferece dificuldades para o diálogo que não está presente na linguagem artística, por exemplo.

Stédile, Saramago, Sebastião Salgado e Chico Buarque: precisam de tradução?

Também na página do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Crioula, do Rio de Janeiro, consta que "a tradução da lei e das ações judiciais para uma linguagem acessível às populações desprovidas de direitos é uma das mais importantes contribuições daqueles que tem o domínio (ou a possibilidade de dominar) o instrumental processual-jurídico. É a atuação destes agentes que contribuiu para a apropriação do direito não somente como reprodutor das desigualdade sociais, mas também como um instrumento de emancipação".

Desta forma, acredito que a assessoria jurídica popular, como metodologia do trabalho popular, pode facilitar diálogos entre conhecimentos. O apoio a movimentos sociais por estudantes, advogadas e advogados, militantes, entre outros, configura a assessoria jurídica popular. Agora, esta também pode ser levada adiante por "não iniciados" na ciência do direito, por membros de uma comunidade participantes das atividades, como constatado na experiência de alguns movimentos. Assim, a tradução é necessária, mas não imprescindível - conforme a radicalidade do envolvimento do assessor com o movimento esta preocupação diminui. No entanto, a tradução ainda constitui um conceito que precisa de delimitação e muita discussão pelos grupos brasileiros.

Então deixo uma questão para o debate: "a tradução cumpre qual papel no diálogo entre conhecimentos presente na prática dos assessores jurídicos populares?"

Leia também:
Coluna de Jacques Alfonsin no blogue RS Urgente "O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social: ao que vem, ao que deve e ao que pode".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Metodologia e organização interna das AJUPs: alguns apontamentos para o aprimoramento da praxis

Início de ano é sempre um período um tanto turbulento, mas de extrema importância para as AJUPs e outros projetos de extensão nas universidades. Além da (infelizmente inevitável) saída de alguns integrantes e a necessária renovação do grupo (que passa por trabalhosas reuniões de planejamento da divulgação do projeto, inserção de novos integrantes, sensibilização, formação etc), é ainda um momento geralmente propício para um balanço das atividades realizadas até então, com vistas ao planejamento das atividades futuras.

Já se discutiu anteriormente aqui no blogue sobre alguns elementos essenciais para a formação de uma AJUP, o que certamente precisamos seguir aprofundando cada vez mais. Meu intuito, agora, é mais de fazer uma pro-vocação (o mais propositiva possível), tanto para projetos novos como para grupos mais antigos e consolidados, no sentido de (re)discutir o direcionamento das atividades de AJUP e as suas formas organizativas correspondentes.


Está sendo desenvolvida pela RENAJU uma proposta de mapa dos conflitos nos quais os projetos da Rede estão inseridos, iniciativa que não só contribui para um maior conhecimento dos projetos entre si, como também nos possibilita avançar no debate sobre as práticas concretas dos grupos, no sentido de aprimorar sua organização interna e sua proposta metodológica de atuação.

Me parece interessante, para adentrar nesse debate, partirmos do fundamento de que a AJUP representa uma forma de uso alternativo da universidade, que não tem a mera função de conceder horas complementares ao estudante ou ser uma forma de expiação do "complexo de culpa" que acomete alguns por estudar "de graça" num país de pobres e miseráveis. Pelo contrário, as AJUPs tanto têm um papel de intervenção na realidade concreta no sentido de sua transformação (o que faz avançar as lutas populares nos seus diversos âmbitos), como de formar juristas que compreendam a dialética social do Direito e atuem, onde estiverem, na defesa dos explorados e dos oprimidos de nossa sociedade.

O problema, no entanto, é que nem sempre nossos projetos conseguem intervir como poderiam no sentido de contribuir para as lutas dessas classes e grupos sociais, seja por deficiências na formação política (e é nesse sentido que se encontra a importância dos Cursos de Formação Política, Projetos Político-Pedagógicos etc), seja por limitações em nossas metodologias e formas organizativas internas (que não deixam de ser reflexo das limitações políticas, ou seja, há uma relação dialética entre todos estes fatores).

Para além do debate sobre o caráter dessa formação política (o que está sendo discutido atualmente pelos estudantes, não apenas na RENAJU mas também na FENED), penso que a principal carência atual dos projetos em termos metodológicos e organizativos está na ausência de uma melhor "dialética de escalas" ao se compreender e intervir no processo da luta de classes. Quero dizer com isso que ora os projetos possuem uma boa análise do processo geral mas não dos contextos das lutas nos locais específicos (ex.: a forma organizativa do projeto permite o acompanhamento da atuação geral do movimento, mas não possui contato direto com suas áreas específicas); ora possuem uma análise profunda da comunidade onde atuam mas não conseguem relacionar com o processo geral (ex.: os problemas da juventude numa dada escola pública são encontrados em muitas outras escolas, mas como não há uma visão em escala mais ampla, não conseguimos pensar em ações que transcendam aquele local onde atuamos).

Como disse, essa limitação tem origem em determinadas concepções políticas, e é necessário rediscuti-las e reelabora-las, para que, de forma criativa, possamos inclusive reestruturar a organização e as metodologias de nossos projetos. Nesse sentido, a categoria da Totalidade (tão citada neste blogue) me parece essencial, pois precisamos pensar a realidade na qual atuamos como "partes" de um "Todo estruturado".

Haveria então alguma sugestão em termos de formato organizativo, dentro dessa perspectiva totalizante? Não há resposta pronta, mas é sim possível fazer apontamentos, que apenas a praxis pode confirmar ou corrigir em cada contexto. Penso que uma possível saída organizativa para abarcar essa "dialética de escalas" seria estruturar, quando possível, núcleos dentro dos projetos vinculados não a temas, mas a setores da classe trabalhadora e dos grupos sociais oprimidos, estejam eles organizados ou não. Nada impede que o grupo siga atuando em sua comunidade específica, mas sua perspectiva é de buscar mapear outras comunidades que constituam a mesma classe e/ou grupo social, motivo pelo qual vislumbramos potenciais alianças estratégicas no sentido de impulsionar as lutas cotidianas.

Nesse sentido, me parece que o referido mapa de conflitos pode contribuir bastante nesse debate metodológico e organizativo. Seria interessante se os integrantes das AJUPs Brasil afora deixassem aqui sua contribuição, relato, concordâncias/discordâncias. Dialoguemos sobre nossa praxis!

domingo, 16 de janeiro de 2011

Provocação de 50 anos atrás: o que a universidade cria e o que ela descria


Nos idos de 1961, Álvaro Vieira Pinto, dos maiores intelectuais críticos brasileiros, escreve para os estudantes da UNE de então um opúsculo sobre a universidade. Intitulado “A questão da universidade”,´livro que certamente merece uma resenha mais apurada e que em breve traremos a público, Vieira Pinto procura estabelecer a crítica à instituição tradicional e fixar os horizontes para uma “reforma” radical dela, tendo como lastro a cultura popular e o ímpeto estudantil.

Sua crítica contundente à universidade não faz com que, todavia, se perca o valor dado a ela. Mas tal valor não tem a ver com a história da universidade medieval européia, pois a nossa seria qualitiativamente distinta, seja pelo transplante colonial operado quanto pelas perspectivas que pode oferecer a uma sociedade subdesenvolvida, como gostavam os isebianos – dentre eles, Álvaro – de se referir.

Dessa forma, o autor diagnostica qual o papel da universidade numa sociedade periférica, premida pelo capitalismo das classes internas e do imperialismo: a alienação cultural. E com esta sentença, resume o que significou a sua construção para o Brasil, algo que nunca pode ser perdido de vista por todo estudante de direito:

só com a instalação da sede do poder colonizador no território da própria colônia, o que iria facilitar, como ocorreu, a independência política, vieram a ser fundadas as primeiras escolas superiores. Estas foram, como é sabido, as de Direito, em Recife e São Paulo, e as de Medicina, na Bahia e no Rio de Janeiro. Compreende-se que assim ocorresse, pois eram estas as oficinas que deviam preparar os especialistas exigidos pela sociedade semicolonial no grau em que se encontrava: advogados para defender os direitos dos senhores de terras, uns contra os outros, e médicos que tratassem da saúde dos membros da classe rica” (p. 18).

Com esta fotografia histórica, Álvaro Vieira Pinto nos traz uma questão de grande importância em tempos de discussão sobre a universidade popular, sobre a centralidade do trabalho e sobre a assessoria jurídica popular. A universidade dominante produz não só o profissional diplomado, mas também – e principalmente! - o não-profissional. É a totalidade que sintetiza, centripetamente, a exterioridade. É Vieira Pinto quem no-lo diz:

a universidade intervém então, procedendo à triagem dos ofícios admissíveis como aristocráticos, insignes, superiores, separando-os daqueles que classifica como espúrios ou de validade suspeita. Constitui-se deste modo em organismo repressor das funções bastardas e veta o surgimento de funções sociais originais. Cria ao mesmo tempo a hierarquia funcional entre diplomados e os que chama apenas de 'práticos' do ofício, como profissionais modestos, de nível menor. Cria, assim, uma classe de profissionais que sonham com as galas universitárias, sem jamais ter meio de obtê-las. Deste modo surgem as figuras do 'enfermeiro', do 'dentista prático', do 'rábula', do 'guarda-livros', e tantas outras que desempenham a atuação pública eficiente fora dos quadros do ensino oficial, relegados aos planos ínfimos da hierarquia intelectual, por efeito do papel seletivo exercido pela universidade. O mérito inferior que lhes é atribuído não está em relação com a eficácia menor da atividade social que dispendem, mas decorre dos preconceitos de classe, cuja guarda está confiada à universidade” (p. 28-29).

Assim, a certificação do jurista significa ao mesmo tempo, e historicamente, a expulsão do conhecedor popular do direito. Apesar de aparentemente ser uma necessidade do mundo jurídico, na verdade, pode ser interpretada esta tendência como uma burocratização e tecnificação do próprio direito em geral. A autonomia da “ciência do processo” e a multiplicação das disciplinas do direito público (constitucional, administrativo, tributário, financeiro, ambiental, econômico etcétera) dão o tom deste fenômeno que contrasta até com a suposta universalidade romanística do direito por via do direito civil.

O que fica da provocação de Vieira Pinto é, sem dúvida, o fato de que a universidade, tal qual ela se apresenta hoje, tem uma função na sociedade que ainda está bastante distante de ser um serviço popular. Em termos de estrutura histórica, estamos preocupante e demasiadamente perto de 1827 (no caso do direito, data em que se formava "advogados para defender os direitos dos senhores de terras, uns contra os outros") muito mais do que de um 2011 revolucionário. Sem reducionismos, este horizonte merece sempre nossa atenção e impulsiona à crítica de nosso ensino superior e o incentivo à construção do novo, a universidade popular a que tanto almejamos. O livro de Álvaro Vieira Pinto é um exemplo disso e precisa ser lido por todos os críticos do direito.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Manifesto do Conselho Popular contra ditadura aos pobres

Divulgamos o "Manifesto contra a ditadura aos pobres na cidade do Rio de Janeiro", assinada pelo Conselho Popular, Pastoral de Favelas, MUCA, Pela Moradia, FIST e associações de moradores das comunidades atingidas.


O ato está ocorrendo neste momento na Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (Central do Brasil). O movimento denuncia a prática "ditatorial" dos governos municipal e estadual na condução da política urbanística de remoções em massa, em virtude da aproximação de grandes eventos esportivos.

Dentre as reivindicações estão a "moradia no centro para famílias com renda de zero a três salários mínimos; entendimentos honestos e democráticos propiciando condições de morar no mesmo bairro ou indenizações prévias e justas; indenização aos comércios; mais e melhores opções de indenização; reconhecimento do Conselho Popular como entidade mediadora destes conflitos; manutenção e melhoria das ocupações dos sem-teto; e nossos direitos já".

Clique e leia o manifesto na íntegra.

O Conselho Popular é uma articulação que reúne movimentos sociais de luta pela moradia do Rio de Janeiro. Na assessoria jurídico-política está Miguel Baldéz. Na assessoria institucional estão o Núcleo de Terras da Defensoria Púlica e a Subprocuradoria do Ministério Público.

A aposta política do Conselho Popular, conforme Miguel Baldéz, está no princípio da "presentatividade", próximo da ideia de nucleação - em que os núcleos elegem "presentantes" de colegiados temporários com funções específicas, buscando uma democracia horizontal, que define prioridades em assembléias regulares. Busca-se uma cidadania própria, para criar condições para que o povo possa resistir.

Leia também: Blogue do Baldéz

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Conscientização de direitos: pequena tese

Por Luiz Otávio Ribas

Hoje vou abordar uma questão fundamental para pensar o direito e a subjetividade: a conscientização de direitos.

Considera-se que existem saberes que, mesmo que não sejam de conhecimento consciente de todos, estão estendidos a esses de forma inconsciente, de forma que a conscientização sobre a operação dos processos de criação do direito colabora muito para o pensar e o agir crítico em relação à realidade.

O direito é um dos casos em que o agir inconsciente está vinculado a noções extrajurídicas que representam uma linguagem muito mais acessível ao senso comum do que a prória linguagem jurídica. Pode-se dizer que o inconsciente conduz muito da aceitação e obediência ao direito, sem falar no elemento coativo obrigacional da norma jurídica, embora se entenda que a função repressiva não é única no direito.

 
Envio estas mal traçadas linhas

Ocorre que a falta de saberes sobre o direito é um dos elementos responsáveis pela manifestação de dominação sobre aqueles que o desconhecem. Os detentores do conhecimento tem monopólio da produção científica e das normas. As normas produzidas por aqueles que pouco conhecem sobre o "direito estatal" recebem a denominação de "antijurídicas" ou "não-jurídicas". Aqueles que procuram reconhecer a juridicidade em fatos sociais que estão para além do Estado e do monopólio da força econômica ganham a denominação de "alternativos", dexando claro que a ideologia jurídica dominante, a liberal-burguesa formalista e positivista jurídica, busca preservar o monismo jurídico, visto que privilegia, unicamente, a produção normativa oficial do Estado por suas fontes formais.

Assim, deixo a questão para discussão: do que trata a conscientização de direitos?

domingo, 9 de janeiro de 2011

Por uma nova articulação da assessoria jurídica popular


"Cuando no duermo, yo sueño" (1955), do pintor cubano Vilfredo Lam

No Brasil e na América Latina, houve uma constitutividade histórica de movimentos de resistência ao poder instituído que nos alça às mais importantes discussões sobre a realidade social, desde uma perspectiva que procure observar a totalidade das condições de produção e reprodução dos modos de vidas, em suas múltiplas paticularidades históricas.

Toda formação social que se apresenta como que orientada por uma estrutura econômica, aliás, deverá sempre refletir também processos contra-hegemônicos. É isto que caracteriza essa resistência à qual me refiro. Mas dizer sobre a "orientação da estrutura econômica" não pode significar, aqui, nenhuma espécie de reducionismo acerca da realidade. Ao contrário. Trata-se, sim e como não poderia deixar de ser, de uma abstração racional feita pelos atores e intérpretes do mundo. No entanto tal momento abstrativo não deixa de se compreender em toda sua complexidade. Este é o maior argumento que se pode dedicar à defesa do marxismo em seu debate específico com as chamadas correntes pós-modernas da filosofia: em termos de valorização da complexidade, não houve quem mais o fizesse que o velho Marx. Isto não quer dizer, porém, que a complexidade possa fazer perder de vista a estruturação do todo e isto implica observar orientações. Daí falarmos em "economia". Isto, contudo, merece sempre uma ressalva, na medida em que a expressão significa muito mais do que a divisão social do trabalho intelectual quer dizer, como ciência recortada e delimitada no âmbito do conhecimento moderno. Talvez, materialidade fosse um termo melhor que economia, já que a menção se volta para significar âmbitos econômicos, ecológicos, libidinais, políticos, geográficos, biológicos, dentre muitos outros (para que fiquemos só com designações próprias da referida divisão social do trabalho intelectual).

Pois bem, a verificação de que há orientações materiais/econômicas (que alguns preferem chamar de "leis") e de que tais condicionamentos produzem resistência(s), nos permite enxergar o trabalho da assessoria jurídica popular para além de o mero acaso histórico, apesar de em uma boa medida ser uma contingência.

A formação colonial do direito latino-americano - para acessarmos uma mediação mais concreta da totalidade -, ainda que envolta nas especificadades de cada grupo nacional ou intranacional, produziu-se de modo a estabelecer uma ordenação concentradora e centralizadora das formas jurídicas. Nada de específico até aqui, já que esta é a característica própria do direito moderno em seu nascedouro europeu: com a ascensão da burguesia, econômica e politicamente, busca-se desfazer o conjunto de pequenas ordenações para agrupá-las em torno do estado moderno. Nesta medida, o estado moderno destrói a complexidade medieval do direito europeu e erige um centro único - o estado. Isto não pode querer dizer, entretanto, que houve um retrocesso, por se ter concentrado o poder de dizer o direito. A volta ao direito medieval é mais que uma quimera, é um conservantismo injustificável tendo-se em vista que apesar de a sedução que gera a pluralidade jurídica, o estado apresentou-se como um fenômeno histórico que não pode ser desconsiderado, pois, como diria o pensamento tributário do hegeliano, é uma síntese frente à qual há necessidade histórica de nos relacionarmos.

Conforme este direito foi se concentrando também acabou expelindo com maior vigor suas contestações de dentro de seu seio. E com a emancipação política, alcançou uma reviravolta, qual seja, a possibilidade de uma sua coordenação. Vale dizer: o direito antes colonial (e plural por natureza, já que convive com o ordenamento metropolitano) passa a ser nacional e tem de articular a regulação social em todo seu território soberano. Com o sensível avanço das relações sociais do modo de produção capitalista entre nós, no século XX, este mesmo direito nacional teve de se deparar com novos mecanismos de sua própria desintegração já que sua unidade é deôntica, mas nunca sociológica. Se a sociedade européia encontrou no estado a síntese necessária para a unidade social, esta mesma fórmula está longe de ser a resolução da periferia do mundo, já que a ela foi imposta uma "tecnologia" política que promoveu uma artificial aceleração de sua história. Nem por isso deixa de ser histórica a nossa forma jurídica (portanto, real), mas, por outro lado, também não é por isso que para ela não há alternativas.

A contínua, ainda que bastante incompleta, tomada de consciência continental, nacional e de classe de nosso povo e de nossos intelectuais produziu fortíssimos enfrentamentos político-jurídicos, seja no âmbito das lutas práticas, seja no plano das disputas ideológicas. Podemos dizer, com alguma certeza, que após os períodos presidenciais de Vargas e o desenvolvimento industrial que nos permitiu a organização sindical, anarquista e comunista, assim como após o surgimento do pensamento social crítico no Brasil e suas formas mais contudentes de nacional-desenvolvimentismo e marxismo, o nível da reflexão jurídica mesma teve grandes saltos de qualidade. Antes mesmo da organização jurídica nacional contra o estado de exceção da ditadura de 1964 (que em alguma medida, ainda que menor, houve também de 1930 a 1945), teve vida a formação de advogados populares que auxiliaram um dos mais importantes movimentos populares deste século, as Ligas Camponesas. A partir daí, construiu-se um pensamento crítico e uma capacidade de mobilização de juristas em prol das causas populares, redundando no movimento de assessoria jurídica popular a que hoje assistimos e no qual atuamos.

Até aqui, tem prevalecido a hegemonia do modo de produção capitalista em seus estágios mais avançados e formas contra-hegemônicas que trabalham no sentido da resistência no plano institucional. O apoio das chamadas AJUPs - assessorias jurídicas populares - se dá, sensivelmente, na esfera da defesa popular para assegurar direitos tidos como conquistas históricas. Ocorre que a experiência de já meio século consolidado nesse caminho traz novos desafios e a necessidade de se pensar novos caminhos para as AJUPs. Daí a pretensão de trazer esta reflexão a público e colocá-la à prova de todos os interessados e engajados neste campo.

Sem dúvida, faz-se preciso articulação nacional, que já há. Mas nos espaços presentes desta articulação vige uma divisão política que parece não ser muito benéfica ao aprofundamento das questões que envolvem a assessoria popular: unidade nas lutas práticas versus pulverização do debate sobre as concepções sobre o direito e a política. Ante esta contestação, dizemos todos os assessores jurídicos, quase que em uníssono: "ou é isso ou é nada". Maior demonstração de fragilidade política não há. Por outro lado, os movimentos, organizações e grupos políticos de fora do movimento das AJUPs não vêem a pertinência dessa discussão.

Além de isso, tal articulação nacional precisa se fazer observando uma nova dinâmica entre pautas locais e demandas nacionais. Mas este ponto delicado só pode ser resolvido se claro estiver o que politicamente se quer com a assessoria, assim como tendo no horizonte a dimensão das lutas sociais e dos grupos envolvidos nas lutas locais, o que muitas vezes é desconhecido pelos próprios ajupianos.

Junto a isso, a aproximação com a universidade e seus protagonistas (os estudantes), com o trabalho de arte e cultura, assim como a produção e reprodução do conhecimento adquirido na prática da assessoria, são pontos nodais para uma nova configuração da assessoria jurídica popular.

Agora, sem dúvida, o maior apelo que se pode fazer para referida rearticulação, é a ultrapassagem do paradigma do apoio institucional para o da produção da resitência positiva, ou seja, a construção de uma organização política contra-hegemônica, reconhecendo-se a ela uma contra-juridicidade capaz de sintetizar um poder dual e transitório diante do estado de direito/poder atual. A meu ver, esse é um caminho que só pode ser tomado caso se verfique a integração entre as assessorias e os movimentos populares, de acordo com uma direção política destes, forjada na construção coletiva de uma nova unidade a partir da pluralidade de reivindicações materialmente respaldadas (aquilo que chegamos a chamar de o "econômico" anteriormente).

Eis um desafio que precisamos enfrentar, já que o refluxo dos movimentos e organizações populares é seguido de perto pela desarticulação dos grupos de assessoria, ainda que o nosso momento histórico seja justamente o que esteja parindo os melhores teóricos/práticos possíveis dentro da tradição ampliada das AJUPs, que hoje integram as cadeiras das faculdades de direito como professores, são advogados com causas populares, adentram o aparelho de estado como funcionários do povo, pesquisam e assessoram formal e informalmente as mais variadas comunidades. Urge atarmo-nos todos, com a pauta da socialização dos meios de produção e das causas populares.

Assessores do continente todo, uni-vos!

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Resenha do livro de Alberto Kopittke sobre a Renap

Faço a crítica ao texto “Introdução a teoria e a prática dialética no direito brasileiro: a experiência da Renap”, de Alberto Liebling Kopittke, na tentativa  de traçar um debate frutífero para os leitores deste blogue.

Tratar do tema da assessoria jurídica popular com base na obra de Roberto Lyra Filho, que por sua vez realiza leitura da obra de Marx, é um desafio deveras interessante e espinhoso.


Alberto Kopittke percorre este caminho, inicialmente, com a leitura atenta dos principais escritos de Lyra Filho sobre Marx. Neste sentido aponta suas principais conclusões e contextualiza politicamente o sentido de sua leitura na esquerda mundial.

Ele traz contribuição de formulários e entrevistas realizadas com advogados e advogadas da rede nacional. Os dados possuem grande relevância, no sentido de que  desenham um retrato de alguns daqueles que apóiam movimentos sociais com seu trabalho jurídico e político. Mas não é possível universalizar os dados  coletados, uma vez que não foi apontado o número de integrantes da Renap, ou de advogados populares atuando no Brasil, ao menos numa  perspectiva aproximada. 

É feita referência às  concepções destes advogados em relação à  prática jurídica. Neste sentido são reunidas as idéias no direito natural de combate – apontado por Michel Miaille – e no positivismo de combate – definido por Lyra Filho. Kopittke aponta Jacques Alfonsin como defensor daquela  primeira concepção com sua idéia de direito natural dos pobres. As relações propostas pelo autor são apressadas se forem levadas em consideração as discussões presentes no Movimento de Direito Alternativo e nos escritos de Jacques Alfonsin. É necessário contextualizar estas idéias para que seja travado um debate bastante frutífero para a advocacia popular. 

Na minha visão, é preciso ter claro, sobremaneira, que Lyra Filho propunha a superação do debate polarizado positivismo jurídico x jusnaturalismo, pela concepção dialética do direito e da própria sociedade que o informa. Assim, atrelar as concepções dos advogados populares a ambas as correntes polarizadas pode ser uma armadilha no plano das idéias. Reduzi-se a possibilidade de pensamento e também da atuação.  Acredito que a proposta de Miguel Pressburger de unir a positividade de combate no âmbito do direito insurgente dos movimentos populares ganha vulto e interpela nossa práxis.

Kopittke apresenta a atuação dos advogados populares, com base em Lyra Filho, para reafirmação do Estado Democrático de Direito e da justiça social. Para tanto, nega a proposta de “dualidade de poderes”, abordada por Lyra Filho, que fora utilizada nos soviets na Revolução russa. Neste ponto, é necessário traçar um diálogo com o próprio Boaventura de Sousa Santos, que em seus primeiros textos publicados no Brasil abordou esta proposta também na Revolução dos Cravos. Também é preciso fazer um paralelo com as idéias de Miguel Baldez que propõe uma desobediência radical presente na insurgência dos movimentos.  Isto porque a afirmação do Estado Democrático de Direito é algo que divide concepções de advogados populares de todo Brasil, e da esquerda como um todo.

Por fim destaco o poema de Roberto Lyra Filho, resgatado por Kopittke, em que assina com o pseudônimo de Noel Delamare, intitulado “O credo”:

Não me lamento, porque canto;
Faço do canto, Manifesto: 
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.
Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos:
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são DIREITOS.

KOPITTKE, Alberto Liebling. Introdução a teoria e prática dialética no direito brasileiro: a experiência da Renap. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 21.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O giro descolonial e o direito: os três cortes estruturais da colonialidade do poder

José Marti, morto, na primeira independência latino-americana

Há muito que a América Latina gesta em seu seio um pensamento próprio para que possa fazer irromper uma nova prática quotidiana, um novo e estrutural modo de vida. Não se trata de autoisolamento ou síndrome de diferenciação. É algo, antes de tudo, que sensibiliza a visão de totalidade para suas mediações específicas. A universalidade da filosofia européia, por exemplo, pode nos ensinar muito, mas certamente não nos faz compreender tudo. Em especial, se olhamos para nosso passado, nossa história, nosso presente, nossa realidade.

Até a década de 1950, podemos dizer que reproduzimos o pensar canônico dos imaginários dos países centrais. Salvo algumas exceções estonteantemente críticas, como a obra consolidada por um Mariátegui até 1930, foi só a partir de uma confluência entre tomada de consciência teórica e atividade prática, parida no fim dos anos 1950 e início dos 1960, que conseguimos apontar para o aspecto geopolítico da formação do pensamento dentro do todo que é a práxis.

Sem medo de embargo, colaboraram para isso o surgimento da teoria da dependência, a teologia da libertação e a filosofia da libertação. Ao lado delas, a construção de um marxismo insurgente desde a periferia do mundo capitalista, notadamente entre nós latino-americanos. É claro que nunca poderemos deixar escanteado, nesse nível de reflexão, a arte popular e as expressões artísticas de muitos de nossos, letrados ou não, poetas, músicos e pintores. Aliás, o século XX brasileiro deu ao mundo não só as greves anarquistas e a fundação do partido comunista (ainda no seu primeiro meado), mas as artes plásticas de um Di Cavalcânti ou de um Portinári, a literatura rebelde de uma Pagu e de um Osvaldo de Andrade, e a música brasilianista de um Vila-Lobos ou o samba filosófico de um Noel Rosa, para não falar em toda a geração regionalista da prosa modernista tupiniquim – de Jorge Amado a Graciliano Ramos, passando por José Lins do Rego e Raquel de Queiroz.

Sendo assim, ao falarmos da práxis insurgente do continente, em sua esfera da produção do saber, não podemos esquecer o panteão do nosso quefazer teórico crítico. No entano, e sem olvidá-lo, foi com a ascensão das perspectivas dependentistas (de um Gúnder Franque, um Rui Mauro Maríni ou um Teotônio dos Santos), dos teólogos ecumenistas e libertários (como Comblin, Gustavo Gutiérrez e os irmãos Bof) e dos filósofos criativos do continente (tal e qual Leopoldo Zea, Augusto Salazar Bôndi, Enrique Dússel e Horácio Cerúti, para ficar com alguns e em suas respectivas polêmicas), que se pôde cristalizar a necessidade de efetivarmos um giro descolonial de nosso pensar e de nosso atuar.

Saber e poder, neste âmbito, permanecem inseparados. Tanto assim é que contemporaneamente vem ganhando força e apelo nas academias do continente o chamado giro descolonial do pensamento latino-americano e periférico em geral. Aníbal Quijano – um sociólogo teórico da dependência – e Válter Mignolo – um crítico literário – assumem o pólo mais visível da difusão deste conjunto de concepções, ainda que apresentem distinções e argumentos passíveis de crítica.

Certamente, o excessivo receio para com o marxismo é o ponto mais fraco deste pujante movimento, ainda que derive, de alguma maneira, dele. Apesar de isso, não é equivocado apresentá-lo como teoria contra-hegemônica do continente sem a qual não podemos seguir adiante. E isto se torna patente quando verificamos que o descolonialismo sedimentou a crítica aos cortes estruturais da sociedade periférica no modo de produção capitalista. Isto significa que existem grandes relatos os quais são seguidos por grandes opressões, as quais assumem centralidade em nosso contexto. Paulo Freire dizia que não se poderia esperar a revolução para começar a ser dialógico e democrático (diríamos nós, autogestionários); mas não o dizia com pretensão de pintar o clamor revolucionário como uma quimera. Não. Adotava tal postura pois cria ser prudente ampliar a visão acerca do caminho transitivo rumo a uma nova sociedade.

Quanto ao giro descolonial, podemos considerar a mesma ordem de questões. A luta de classes continua central e estrutral, porém ela precisa ser enfocada junto a dois outros importantes níveis de classificação das sociedades em tela: o racismo e etnocentrismo; e o machismo e patriarcalismo. Vivemos em um mundo de proprietários e não-proprietários, mas que é um mesmo mundo de brancos e não-brancos e de homens e não-homens. Classe, etnia/raça e gênero conformam nossa realidade. Cindir tais cortes estruturais da realidade é segmentar ao extremo a percepção de nosso entorno; é fragmentar, irracionalmente, o nosso mundo.

Estas considerações, todavia, ainda são renitentemente absorvidas pelo mundo do direito. Muito se fala de sua pertinência mas pouco se consegue estabelecer algo sobre sua vinculação com o contexto jurídico. E pouco se avançará, em verdade, enquanto se continuar a tomar o direito como uma estrutura autônoma da realidade, cada vez mais distante do aspecto político de sua constitutividade e refundação contínua. A despeito de toda crítica epistemológica trazida à baila pela crítica jurídica desde a década de 1970, ainda sói ser prevalente uma visão do direito como técnica – e isto por parte até dos novos críticos... Tecnificar o direito, considerá-lo um instrumento utilizável em conformidade com a mão que o opera, não parece ser a melhor saída. O direito é intrinsecamente produto do poder e é aí que podemos encontrá-lo com a colonialidade. Toda e qualquer crítica ao estado tem de passar pela crítica ao direito, caso contrário será uma crítica manquitolante. E ainda que nos esforcemos por dizer que não se resume ao estado este mesmo direito, é preciso não obscurecer a realidade e aceitar que a feição estatal é a hegemônica. O direito não-estatal quiçá nem direito seja!

De toda forma, é preciso reabilitar a crítica jurídica, colocando no centro de suas discussões os três cortes estruturais que a colonialidade nos impôs. Mas isto com a atenção de quem maneja com a ferramenta do método que propugna pelo todo desde um ponto de partida ético. De muito pouco nos adiantará apontar apenas para versões fragmentárias dessa crítica – nem só a raça nem só o gênero e nem só a classe. Todas as dimensões conjuntamente: este é o grande vigor que nos legará o giro descolonial.

Che, vivo, no segundo movimento de independência latino-americana