José Marti, morto, na primeira independência latino-americana
Há muito que a América Latina gesta em seu seio um pensamento próprio para que possa fazer irromper uma nova prática quotidiana, um novo e estrutural modo de vida. Não se trata de autoisolamento ou síndrome de diferenciação. É algo, antes de tudo, que sensibiliza a visão de totalidade para suas mediações específicas. A universalidade da filosofia européia, por exemplo, pode nos ensinar muito, mas certamente não nos faz compreender tudo. Em especial, se olhamos para nosso passado, nossa história, nosso presente, nossa realidade.
Até a década de 1950, podemos dizer que reproduzimos o pensar canônico dos imaginários dos países centrais. Salvo algumas exceções estonteantemente críticas, como a obra consolidada por um Mariátegui até 1930, foi só a partir de uma confluência entre tomada de consciência teórica e atividade prática, parida no fim dos anos 1950 e início dos 1960, que conseguimos apontar para o aspecto geopolítico da formação do pensamento dentro do todo que é a práxis.
Sem medo de embargo, colaboraram para isso o surgimento da teoria da dependência, a teologia da libertação e a filosofia da libertação. Ao lado delas, a construção de um marxismo insurgente desde a periferia do mundo capitalista, notadamente entre nós latino-americanos. É claro que nunca poderemos deixar escanteado, nesse nível de reflexão, a arte popular e as expressões artísticas de muitos de nossos, letrados ou não, poetas, músicos e pintores. Aliás, o século XX brasileiro deu ao mundo não só as greves anarquistas e a fundação do partido comunista (ainda no seu primeiro meado), mas as artes plásticas de um Di Cavalcânti ou de um Portinári, a literatura rebelde de uma Pagu e de um Osvaldo de Andrade, e a música brasilianista de um Vila-Lobos ou o samba filosófico de um Noel Rosa, para não falar em toda a geração regionalista da prosa modernista tupiniquim – de Jorge Amado a Graciliano Ramos, passando por José Lins do Rego e Raquel de Queiroz.
Sendo assim, ao falarmos da práxis insurgente do continente, em sua esfera da produção do saber, não podemos esquecer o panteão do nosso quefazer teórico crítico. No entano, e sem olvidá-lo, foi com a ascensão das perspectivas dependentistas (de um Gúnder Franque, um Rui Mauro Maríni ou um Teotônio dos Santos), dos teólogos ecumenistas e libertários (como Comblin, Gustavo Gutiérrez e os irmãos Bof) e dos filósofos criativos do continente (tal e qual Leopoldo Zea, Augusto Salazar Bôndi, Enrique Dússel e Horácio Cerúti, para ficar com alguns e em suas respectivas polêmicas), que se pôde cristalizar a necessidade de efetivarmos um giro descolonial de nosso pensar e de nosso atuar.
Saber e poder, neste âmbito, permanecem inseparados. Tanto assim é que contemporaneamente vem ganhando força e apelo nas academias do continente o chamado giro descolonial do pensamento latino-americano e periférico em geral. Aníbal Quijano – um sociólogo teórico da dependência – e Válter Mignolo – um crítico literário – assumem o pólo mais visível da difusão deste conjunto de concepções, ainda que apresentem distinções e argumentos passíveis de crítica.
Certamente, o excessivo receio para com o marxismo é o ponto mais fraco deste pujante movimento, ainda que derive, de alguma maneira, dele. Apesar de isso, não é equivocado apresentá-lo como teoria contra-hegemônica do continente sem a qual não podemos seguir adiante. E isto se torna patente quando verificamos que o descolonialismo sedimentou a crítica aos cortes estruturais da sociedade periférica no modo de produção capitalista. Isto significa que existem grandes relatos os quais são seguidos por grandes opressões, as quais assumem centralidade em nosso contexto. Paulo Freire dizia que não se poderia esperar a revolução para começar a ser dialógico e democrático (diríamos nós, autogestionários); mas não o dizia com pretensão de pintar o clamor revolucionário como uma quimera. Não. Adotava tal postura pois cria ser prudente ampliar a visão acerca do caminho transitivo rumo a uma nova sociedade.
Quanto ao giro descolonial, podemos considerar a mesma ordem de questões. A luta de classes continua central e estrutral, porém ela precisa ser enfocada junto a dois outros importantes níveis de classificação das sociedades em tela: o racismo e etnocentrismo; e o machismo e patriarcalismo. Vivemos em um mundo de proprietários e não-proprietários, mas que é um mesmo mundo de brancos e não-brancos e de homens e não-homens. Classe, etnia/raça e gênero conformam nossa realidade. Cindir tais cortes estruturais da realidade é segmentar ao extremo a percepção de nosso entorno; é fragmentar, irracionalmente, o nosso mundo.
Estas considerações, todavia, ainda são renitentemente absorvidas pelo mundo do direito. Muito se fala de sua pertinência mas pouco se consegue estabelecer algo sobre sua vinculação com o contexto jurídico. E pouco se avançará, em verdade, enquanto se continuar a tomar o direito como uma estrutura autônoma da realidade, cada vez mais distante do aspecto político de sua constitutividade e refundação contínua. A despeito de toda crítica epistemológica trazida à baila pela crítica jurídica desde a década de 1970, ainda sói ser prevalente uma visão do direito como técnica – e isto por parte até dos novos críticos... Tecnificar o direito, considerá-lo um instrumento utilizável em conformidade com a mão que o opera, não parece ser a melhor saída. O direito é intrinsecamente produto do poder e é aí que podemos encontrá-lo com a colonialidade. Toda e qualquer crítica ao estado tem de passar pela crítica ao direito, caso contrário será uma crítica manquitolante. E ainda que nos esforcemos por dizer que não se resume ao estado este mesmo direito, é preciso não obscurecer a realidade e aceitar que a feição estatal é a hegemônica. O direito não-estatal quiçá nem direito seja!
De toda forma, é preciso reabilitar a crítica jurídica, colocando no centro de suas discussões os três cortes estruturais que a colonialidade nos impôs. Mas isto com a atenção de quem maneja com a ferramenta do método que propugna pelo todo desde um ponto de partida ético. De muito pouco nos adiantará apontar apenas para versões fragmentárias dessa crítica – nem só a raça nem só o gênero e nem só a classe. Todas as dimensões conjuntamente: este é o grande vigor que nos legará o giro descolonial.
Há muito que a América Latina gesta em seu seio um pensamento próprio para que possa fazer irromper uma nova prática quotidiana, um novo e estrutural modo de vida. Não se trata de autoisolamento ou síndrome de diferenciação. É algo, antes de tudo, que sensibiliza a visão de totalidade para suas mediações específicas. A universalidade da filosofia européia, por exemplo, pode nos ensinar muito, mas certamente não nos faz compreender tudo. Em especial, se olhamos para nosso passado, nossa história, nosso presente, nossa realidade.
Até a década de 1950, podemos dizer que reproduzimos o pensar canônico dos imaginários dos países centrais. Salvo algumas exceções estonteantemente críticas, como a obra consolidada por um Mariátegui até 1930, foi só a partir de uma confluência entre tomada de consciência teórica e atividade prática, parida no fim dos anos 1950 e início dos 1960, que conseguimos apontar para o aspecto geopolítico da formação do pensamento dentro do todo que é a práxis.
Sem medo de embargo, colaboraram para isso o surgimento da teoria da dependência, a teologia da libertação e a filosofia da libertação. Ao lado delas, a construção de um marxismo insurgente desde a periferia do mundo capitalista, notadamente entre nós latino-americanos. É claro que nunca poderemos deixar escanteado, nesse nível de reflexão, a arte popular e as expressões artísticas de muitos de nossos, letrados ou não, poetas, músicos e pintores. Aliás, o século XX brasileiro deu ao mundo não só as greves anarquistas e a fundação do partido comunista (ainda no seu primeiro meado), mas as artes plásticas de um Di Cavalcânti ou de um Portinári, a literatura rebelde de uma Pagu e de um Osvaldo de Andrade, e a música brasilianista de um Vila-Lobos ou o samba filosófico de um Noel Rosa, para não falar em toda a geração regionalista da prosa modernista tupiniquim – de Jorge Amado a Graciliano Ramos, passando por José Lins do Rego e Raquel de Queiroz.
Sendo assim, ao falarmos da práxis insurgente do continente, em sua esfera da produção do saber, não podemos esquecer o panteão do nosso quefazer teórico crítico. No entano, e sem olvidá-lo, foi com a ascensão das perspectivas dependentistas (de um Gúnder Franque, um Rui Mauro Maríni ou um Teotônio dos Santos), dos teólogos ecumenistas e libertários (como Comblin, Gustavo Gutiérrez e os irmãos Bof) e dos filósofos criativos do continente (tal e qual Leopoldo Zea, Augusto Salazar Bôndi, Enrique Dússel e Horácio Cerúti, para ficar com alguns e em suas respectivas polêmicas), que se pôde cristalizar a necessidade de efetivarmos um giro descolonial de nosso pensar e de nosso atuar.
Saber e poder, neste âmbito, permanecem inseparados. Tanto assim é que contemporaneamente vem ganhando força e apelo nas academias do continente o chamado giro descolonial do pensamento latino-americano e periférico em geral. Aníbal Quijano – um sociólogo teórico da dependência – e Válter Mignolo – um crítico literário – assumem o pólo mais visível da difusão deste conjunto de concepções, ainda que apresentem distinções e argumentos passíveis de crítica.
Certamente, o excessivo receio para com o marxismo é o ponto mais fraco deste pujante movimento, ainda que derive, de alguma maneira, dele. Apesar de isso, não é equivocado apresentá-lo como teoria contra-hegemônica do continente sem a qual não podemos seguir adiante. E isto se torna patente quando verificamos que o descolonialismo sedimentou a crítica aos cortes estruturais da sociedade periférica no modo de produção capitalista. Isto significa que existem grandes relatos os quais são seguidos por grandes opressões, as quais assumem centralidade em nosso contexto. Paulo Freire dizia que não se poderia esperar a revolução para começar a ser dialógico e democrático (diríamos nós, autogestionários); mas não o dizia com pretensão de pintar o clamor revolucionário como uma quimera. Não. Adotava tal postura pois cria ser prudente ampliar a visão acerca do caminho transitivo rumo a uma nova sociedade.
Quanto ao giro descolonial, podemos considerar a mesma ordem de questões. A luta de classes continua central e estrutral, porém ela precisa ser enfocada junto a dois outros importantes níveis de classificação das sociedades em tela: o racismo e etnocentrismo; e o machismo e patriarcalismo. Vivemos em um mundo de proprietários e não-proprietários, mas que é um mesmo mundo de brancos e não-brancos e de homens e não-homens. Classe, etnia/raça e gênero conformam nossa realidade. Cindir tais cortes estruturais da realidade é segmentar ao extremo a percepção de nosso entorno; é fragmentar, irracionalmente, o nosso mundo.
Estas considerações, todavia, ainda são renitentemente absorvidas pelo mundo do direito. Muito se fala de sua pertinência mas pouco se consegue estabelecer algo sobre sua vinculação com o contexto jurídico. E pouco se avançará, em verdade, enquanto se continuar a tomar o direito como uma estrutura autônoma da realidade, cada vez mais distante do aspecto político de sua constitutividade e refundação contínua. A despeito de toda crítica epistemológica trazida à baila pela crítica jurídica desde a década de 1970, ainda sói ser prevalente uma visão do direito como técnica – e isto por parte até dos novos críticos... Tecnificar o direito, considerá-lo um instrumento utilizável em conformidade com a mão que o opera, não parece ser a melhor saída. O direito é intrinsecamente produto do poder e é aí que podemos encontrá-lo com a colonialidade. Toda e qualquer crítica ao estado tem de passar pela crítica ao direito, caso contrário será uma crítica manquitolante. E ainda que nos esforcemos por dizer que não se resume ao estado este mesmo direito, é preciso não obscurecer a realidade e aceitar que a feição estatal é a hegemônica. O direito não-estatal quiçá nem direito seja!
De toda forma, é preciso reabilitar a crítica jurídica, colocando no centro de suas discussões os três cortes estruturais que a colonialidade nos impôs. Mas isto com a atenção de quem maneja com a ferramenta do método que propugna pelo todo desde um ponto de partida ético. De muito pouco nos adiantará apontar apenas para versões fragmentárias dessa crítica – nem só a raça nem só o gênero e nem só a classe. Todas as dimensões conjuntamente: este é o grande vigor que nos legará o giro descolonial.
Che, vivo, no segundo movimento de independência latino-americana
Oi Pazello, concordo contigo, e a chamada transversalidade das opressões é algo muito importante de se atentar. Dussel faz referência a essa transversalidade no livro Ética da Libertação, e creio que um dos movimentos sociais que melhor atua nessa ótica é o MST, que percebeu há tempos que o projeto contra-hegemônico de sociedade não passa apenas pela constituição da reforma agrária, mas por mudanças no âmbito da comunicação, educação, gênero, entre outras frentes em que atua, algo que também é seguido pelo movimento indígena, sobretudo com o vácuo da não aprovação do Estatuto das Sociedades Indígenas.
ResponderExcluirAgora, também incluiria, nesse rol denominado de marcadores sociais da diferença (ou da desigualdade, para pensar nitidamente nas relações de poder) no setor geracional (relações assimétricas entre adultos e não-adultos - aqui incluídas as crianças e os idosos), pois é também um campo de intensa disputa de poder físico e simbólico, sobretudo no âmbito das legislações e das formas de institucionalização do saber e da intervenção.
Abraços e sigamos nas reflexões...
Pazello,
ResponderExcluirMuito sistemática a exposição. Concordo quando você diz que a crítica deve ser pensada conjuntamente ( assim como não somos parcialmente seres humanos, precisamos de todas as nossas dimensões).
E Assis, você toca num ponto em que tenho lido, refletido e discutido com alguma frequência nas últimas semanas, idosos e crianças, especialmente crianças. E especialmente devido à leitura dos escritos da amiga Andreia Marreiro para a monografia que apresentará em breve, que utilizou do maravilhoso método da sociopoética para construir "confetos" com as crianças. Andreia conseguiu chegar num lugar onde qualquer interessado pelas palavras e sua força, que liberta e que submete, gostaria de alcançar: sua gênese. Revela, neste processo, a violência que são as "palavras legais", institucionalmente autorizadas do mundo adulto para as crianças, especialmente o grupo com que entrou em contato ( crianças trabalhadoras).
Maiores explicações com a autora do trabalho, que vai me repreender por isto.
=)
Abraço em tod@s!
Excelente reflexão, Pazzelo. A questão da reabilitação da teoria crítico do (e no) direito é algo muito importante. Penso que é necessário inventariar, como muito já se fez, as raízes da crise do pensamento crítico, tendo em vista, inclusive, a Paidéia que surge da experiência da AJP.
ResponderExcluirForte abraço.
Companheiros,
ResponderExcluirConcordo com a denúncia do conflito intergeracional. No entanto, tenho dúvidas sobre sua centralidade dentro do quadro esboçado pelos críticos da colonialidade do poder e do saber. O sistema-mundo colonial/moderno se estrutura a partir de grandes relatos frente aos quais tem de exercer contínua violência. Na medida em que há juventudes absorvidas pela ideologia e adultezas afeitas a ímpetos de transformação, fico realmente me questionando sobre o papel estrutural deste conflito (que poderia ser visto ao lado da opressão estudantil, por exemplo). Não se trata, portanto, de negá-lo. Creio, mesmo, que seja uma discussão importantíssima. Só estou ressalvando sua posição dentro do giro descolonial naquilo que apresenta como estrutural. Mas nada que uma boa discussão não possa esclarecer. Convido você, Assis, a aprofundar este debate brindando-nos com mais uma postagem.
Abraços
Olá companheiros!
ResponderExcluirEscrevo aqui não para comentar, mas para compartilhar uma entrevista de Dussel que me surpreendeu bastante já no título: "Absurdo, plantear la disolución del Estado". O link é: http://www.jornada.unam.mx/2011/01/03/index.php?section=politica&article=002n1pol Mais subsídios para o debate começado com os colunistas! Abraço grande!
Olá, muito bom o texto. Tenho pensado na questão do pensamento descolonial e a situação de rua. Entendo que o viés de colonialidade atravessa todas as dimensões do nosso cotidiano, marcado pela colonialidade do saber/poder. Desta forma, as próprias categorias de análise que costumamos utilizar para pensar "o social" carregam esse olhar eurocentrado, baseado em uma crença, mesmo que inconsciente, de uma linha evolutiva linear.
ResponderExcluirO diálogo com meninos e meninas em situação de rua tem me mostrado que muito além dos estigmas e estereótipos criados, há uma racionalidade própria que se constitui na fronteira, desde o lado escuro da modernidade.
A aposta no caminho dialógico tem me parecido importante para a consolidação do giro epitemológico proposto por Mignolo.
Abraços,
Paula
Olá, Paula!
ResponderExcluirAgradeço pelo comentário e fico contente de ver que as discussões descoloniais cumprem seu papel criativo de re-pensar várias outras abordagens da nossa realidade.
Estou de acordo com as possibilidades que podem ser geradas, a partir dessa perspectiva, no diálogo com meninos e meninas em situação de rua. Acredito que o resgate de algumas experiências vividas nas franjas do sistema-mundo colonial/moderno/capitalista podem ser muito interessantes também. Destacaria a pedagogia soviética e, em especial, os relatos pedagógicos de Anton Macarenco (MAKARENKO). Junto a Paulo Freire, me parece que a reflexão-ação sobre a educação tradicional fica desestabilizada a partir de tais visões e nos impulsiona a novas formas de compreensão do quefazer pedagógico e social.
Um abraço