domingo, 30 de janeiro de 2011

Amílcar Cabral, as formas da resistência e o suicídio de classe

Muito está por ser lembrado e apropriado, para uma nova práxis, do que vem da continental luta de libertação dos africanos no segundo meado do século XX. Inclusive ao nível teórico. Ouvimos falar dos argelinos e dos sul-africanos: dentre os primeiros, Fanon (Frantz Fanon) e Memi (Albert Memmi), difundidos pela força do pensamento sartriano; quanto aos segundos, Bico (Steve Biko) e Mandela (Nelson Mandela), pela potencialidade da comunicação anglo-saxã. No entanto, o colonialismo português - para além de o francês e o inglês - também fez germinar, em suas colônias africanas (hoje, 5 países: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), grandes líderes e referências para as recentes discussões descolonizadoras do poder e do saber.

Há quase quarenta anos, morria assassinado Amílicar Cabral, expoente da luta de libertação nacional em Guiné-Bissau e Cabo Verde. O dia 20 de janeiro é feriado nacional nestes dois países e muito pouco se fala disto e de tal personagem histórica (ver, como exceção que confirma a regra, a notícia Clone de Amílcar Cabral na memória, 38 anos depois).




Das festas co-memorativas de sua morte, surge um importante dever a todos nós: o resgate da ação-pensamento de um importante combatente contra o imperialismo, em prol da libertação nacional africana e do socialismo. Tendo se formado como engenheiro agrônomo na metrópole lusitana, voltou a sua terra natal para trabalhar na assessoria das atividades do campo e acabou fazendo parte da equipe que recenseou a região rural da Guiné-Bissau, o que lhe daria instrumentais fortíssimos para desenvolver sua luta política que já despontara desde os estudos superiores.

Da atividade técnica, passou à organização política, fundando o Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), engrossando o caldo de organizações a favor da libertação nacional das colônias africanas, e em especial das portuguesas. Apesar de divergências teóricas e prática, a força intelectual e política de Fanon e Cabral são marcos essenciais para a compreensão desse período histórico, bem como testemunhos ativos da exigência revolucionária na periferia do mundo. Assim como Fanon, Cabral morre antes de ver a independência total de seu país reconhecida, mas, como aquele, também participaria dos movimentos insurgentes desde a década de 1950.

Junto ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e ao Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), o PAIGC é o exemplo histórico que nos arrasta à discussão da organização política; dentro dela, à análise conjuntural de uma determinada formação social. Dentre os principais líderes destas organizações revolucionárias e libertadoras - tais como Agostinho Neto (MPLA), Eduardo Mondlane ou Marcelino dos Santos (FRELIMO), Pinto da Costa (MLSTP) - Amílcar Cabral (PAIGC) certamente é um dos que nos legou um conjunto dos melhores, com reflexões dotadas de radicalidade e argúcia na compreensão da realidade, bem como de capacidade de sistematização.

Dois focos de suas análises merecem nossa atenção. De um lado, a insistente aposta nas formas de resistência; de outro, a interpretação de sua realidade, que o leva a sedimentar a concepção de "suicídio de classe".

Quanto às formas de resistência, há um seu depoimento histórico bastante interessante, gravado por ocasião do Seminário de Quadros, do PAIGC, de 1969. Publicado com o título "Análise de alguns tipos de resistência", concentra-se na depuração dos modos de resistir a partir de suas qualificações como "política", "econômica", "cultural" e "armada". Partindo do pressuposto de que toda dominação gera resistência, propõe que antes de mais vem a resistência política. Esta é que dá o tom da organização popular contra as formas do colonialismo, ensejada pelo desenvolvimento da consciência. A partir dela, reflete sobre as demais formas, com especial relevo para a resistência cultural. Poeta que fora, Cabral foi considerado como o "pai da nacionalidade" em Cabo Verde e seus versos bem o demonstram (lembrando que nasceu ele em Guiné - terra da mãe - e aos oitos anos foi viver em Cabo Verde - solo do pai):

Ilha

Tu vives — mãe adormecida —

nua e esquecida,

seca,

fustigada pelos ventos,

ao som de músicas sem música

das águas que nos prendem…

Ilha:

teus montes e teus vales

não sentiram passar os tempos

e ficaram no mundo dos teus sonhos

os sonhos dos teus filhos

a clamar aos ventos que passam,

e às aves que voam, livres,

as tuas ânsias!

Ilha:

colina sem fim de terra vermelha

terra dura

rochas escarpadas tapando os horizontes,

mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

Como é sabido, Paulo Freire viria a desenvolver sua pedagogia em vários países africanos pós-libertação nacional, como a Tanzânia e São Tomé e Príncipe, mas também Guiné-Bissau e Cabo Verde. Apesar de não terem trabalhado juntos, devido à prematura morte de Cabral, apresentam afinidade teórica sensível. Se Paulo Freire propõe uma dialética de denúncia-anúncio para uma sociedade nova (denunciar a opressão e anunciar a liberdade), Amílcar Cabral afirma que a resistência é "destruir alguma coisa, para construir outra coisa". Na singeleza de suas palavras, o potencial descolonial de seu pensar. E, acima de tudo, a importância da resistência para a mobilização das classes populares.

A resistência, porém, é exercida concretamente - e não na abstração das teorias. Em seu texto clássico "A arma da teoria: fundamentos e objetivos da libertação nacional em relação com a estrutura social" (na verdade, um discurso realizado em Havana, por ocasião da 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, em 1966) - há uma versão virtual do texto dentro da coletânea "Amílcar Cabral: livro", com o título "Fundamentos e objetivos" -, Cabral consigna a necessidade da luta armada, em seu contexto (um apelo a uma "violência libertadora" que faria qualquer benjaminiano simpatizar-se com ele) e faz uma avaliação da situação de classes dentro do colonialismo, cuja marca é a dominação direta pelo imperialismo, distingundo-se, portanto, do neocolonialismo, no qual haveria dominação imperialista indireta. Assim sendo, o líder do PAIGC enfatiza a centralidade das forças produtivas livres, assumindo o critério do "nível das forças produtivas" como o motor da história (já que as classes sociais não eram universais, pois não teriam havido antes da apropriação privada dos meios de produção nem subsistiriam às fases superiores das sociedades socialistas nascentes), e chega a desenhar um esboço da situação das classes na África, notadamente a lusitana.

É aí que aterrissa a questão do "suicídio de classe", que viria a ser incorporado pelo pensamento freiriano. Lutar contra o imperialismo e a favor da libertação nacional exigia, segundo ele, a organização política, que se apresentava como sendo uma vanguarda revolucionária capaz de praticar a conscientização com as massas populares. Isto até o ponto de se formar uma vanguarda popular, formada e encabeçada pela classe trabalhadora do campo e cidade. Mas este esquema ideal - que, é certo, justificava as trilhas seguidas pelas revoluções africanas - não podia prescindir de uma importante mediação de transição: a pequena-burguesia.

Para Cabral, "a única camada social capaz, tanto de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação, é a pequena-burguesia nativa". Mas, atenção, não se trata de uma frase ingênua ou mesmo astuta. Trata-se, isto sim, de uma análise concreta de sua realidade. Apesar de não dotada de universalidade, ela nos traz uma importante reflexão, já que oriunda da análise objetiva dos movimentos de independência africanos. Tanto é que é ele mesmo que nos diz que há um dilema subjacente à verificação deste fenômeno, o de que há dois caminhos a serem seguidos por tal pequena burguesia: "essa alternativa - trair a revolução ou suicidar-se como classe - constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional". E é exatamente a este ponto que gostaríamos de chegar: como podem os assessores populares agir revolucionariamente? Sem dúvida nenhuma - a não ser para os que consideram anacrônica tal expressão "revolução" -, esta ação pressupõe a luta de classes e o protagonismo das classes subalternas, que na América Latina chamamos de classes populares trabalhadoras. O que os universitários das camadas médias do modo de produção capitalista periférico podem fazer nesse contexto? Parece que o suicídio de classe, apontado por Amílcar Cabral, é o nosso grande exercício histórico, confirmando a totalidade objetivo-subjetiva da pertença de classe.

Que fique a reflexão, meio incial e um tanto polêmica, como sinal da vitalidade e criatividade do pensamento de tão importante figura do socialismo do século XX, chamado Amílcar Cabral.

Ver ainda:

- textos de Amílcar Cabral (inclusive o citado "Fundamentos e objetivos"), na página da Associação Guiné-Bissau Contributo;

- página da Fundação Amílcar Cabral;

- página do CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral;

- texto "Alguns princípios do partido".

2 comentários:

  1. Realmente este blogue é um arsenal de conhecimento militante! Esse resgate de intelectuais orgânicos convenientemente esquecidos pela academia é essencial, ainda mais em se tratando dos africanos...

    Agora, correndo o risco de ser rotulado de "eurocêntrico", ou "marxista ortodoxo" (quando na verdade querem dizer dogmático), e assumindo a ignorância (espero que provisória!) do pensamento de Amilcar Cabral, gostaria de problematizar essa noção de "suicídio de classe" relacionando com o debate desse mesmo tema feito por Marx, Lenin e Lukacs.

    É que, o suicidio de classe em si não leva a uma postura autêntica e necessariamente revolucionária, a meu ver. Não só porque essa pequena burguesia pode se imiscuir noutras classes (burguesia, campesinato etc., isso para ficar num plano abstrato!), como a própria adesão ao proletariado pode se dar sob diferentes perspectivas, como social-democrata, sindicalista, anarquista etc. Me parece que, nesse último caso, a chave de explicação seria que a adesão ao proletariado não implicou a adesão ao "ponto de vista do proletariado" (nos termos de Lukacs, em História e Consciência de Classe), mas ao ponto de vista do proletário comum, mergulhado na alienação e na reificação inerentes à divisão social do trabalho, ainda que sob as particularidades de um capitalismo monopolista neocolonial.

    Marx e Lenin (este ultimo, inclusive em polêmica contra Rosa Luxemburgo) reconheceram o papel e a importância que a pequena burguesia tem nos partidos revolucionários do proletariado, dadas as suas melhores possibilidades de acesso à educação e formação intelectual. Mas, sem essa adesão ao "ponto de vista do proletariado" (que é o elemento fundamental para a consciência de classe), nem as melhores condições materiais e nem o voluntarismo de um (corajoso, diga-se) suicídio de classe parecem ser suficientes...

    Que tipo de ligação podemos fazer entre esse debate clássico no marxismo e o pensamento de intelectuais orgânicos das revoluções na periferia do sistema-mundo?

    ResponderExcluir
  2. Diego,

    O "suicídio de classe" tal como proposto por Amílcar Cabral pressupõe a análise da realidade concreta da África na qual vivia. Longe do desenvolvimento industrial tardio, a África de então preocupava-se em afirmar a independência nacional e, desse modo, tirar da cartola sua autodeterminação junto da autodeterminação do nascente proletariado e das classes populares em geral. Assim, a iniciativa dos intelectuais e libertadores socialistas deveria atender a estas duas demandas, algo não colocado no centro das reflexões dos comunistas europeus, desde Marx. Apesar de Lênin tematizar o imperialismo, ele o fazia desde uma Rússia industrializada.

    Nessa medida, o texto de Cabral mesmo é elucidativo, na medida em que diz que o papel da pequena burguesia é muito importante para favorecer a libertação nacional, mas tende a se deparar, logo em seguida, com o problema de aprofundar-se nesta "adesão ao ponto de vista da classe" ou trair a revolução, tornando-se a pequena burguesia uma grande burguesia. Ou seja, um dilema.

    Assim, para mim e a princípio, não haveria esta oposição entre "adesão ao proletariado" e "adesão ao ponto de vista do proletariado" na idéia de suicídio de classe de Amílcar Cabral, mesmo porque sua forja se daria no passo revolucionário de um processo histórico complexo que exige uma postura radical da exterioridade do sistema. Senão vejamos as palavras do próprio autor:

    "Para não trair esses objetivos, a pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento e as solicitações naturais da sua mentalidade de classe, identificar - se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Isso significa que, para desempenha r cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar - se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence."

    Abraços

    ResponderExcluir