segunda-feira, 28 de novembro de 2016

E quando não há o Pai para matar?

Assessoria Jurídica Popular Universitária:
E quando não há o Pai para matar?**

Vladimir de Carvalho Luz*



O pai introduz um corte, a diferença geracional torna possível uma ordenação na linhagem que constitui a série das gerações.
Ernesto Derezensky


I.
                  Em meia hora a reunião começaria. Já estava pronto desde cedo. Sai da casa rumo ao Vale do Canela. Desci uma escadaria e fui andando para a Faculdade de Direito da Bahia (FDUFBA). Durante o trajeto, não pude evitar certas imagens da memória, principalmente quando avistei ao longe a “Ponte”, o viaduto que atravessa o Vale e desemboca no “pé” da Faculdade. Dei-me conta de que foram alguns anos que fiz esse trajeto constantemente. Quando fui aluno da FDUFBA, meados dos anos de 1990, semanalmente atravessei essa “Ponte”, subindo o morrinho que dava na Fundação Orlando Gomes.
                  Sentei por alguns minutos em frente à Cantina.  Retomei o fôlego. Apesar de muita coisa ter mudado no espaço físico, era como se aquele dia fosse um daqueles dias em que eu iria para a Faculdade. Iria ao SAJU[1]. Dia de Reunião Geral.
                 

II.
                  Minha trajetória no campo da Assessoria Jurídica Popular Universitária (doravante AJuP) foi marcada por duas atuações distintas: uma delas, mais extensa, como estudante-militante, e outra, atual, como professor-pesquisador[2]. Ao longo desse percurso pessoal discente-docente, uma série de questões e de impasses se apresentou a mim no campo da AJuP. Com efeito, não é incomum, no campo das AJuPs, alguns embates típicos de seu cotidiano universitário, em geral traduzidos pelas oposições entre espontaneísmo versus organização, emancipação versus regulação, assistência versus assessoria, horizontalidade versus. verticalidade, coletivismo versus singularismo, rebeldia  versus acomodação, reforma versus ruptura e  autonomia versus institucionalidade. Esses dilemas, ainda que expressos aqui em fórmulas dicotômicas, precárias e incipientes, fazem parte, talvez, de um debate mais abrangente. Podem, então, ser lidos como dilemas transversais, e que dizem respeito não apenas à minha história singular, mas constituem parte de um dilema geracional que atravessa o campo das Assessorias Populares Universitárias na contemporaneidade.
                  Se essas minhas percepções e intuições de partida possuírem alguma força heurística, proponho avançar lançando algumas ponderações sobre esses conflitos como parte de dilemas geracionais, percebendo-os com decorrentes do processo transição do papel de discentes para o de docentes nas AJuPs.
                  Um passo que me arrisco a dar, então, é pensar esse processo de transição geracional[3] das AJuPs com ferramentas que possam evidenciar a tensão conflitiva dos sujeitos envolvidos não apenas em sua dimensão mais aparente, operacional ou tributária de uma evidente disputa institucional. Nessa perspectiva, tendo por mote minhas impressões pessoais, acredito ser possível pensar essas questões, esses dilemas e oposições, como conflitos específicos de subjetivação, ou seja: como expressão de inúmeras especificidades do campo imaginário e (ou) simbólico desses atores (discentes e docentes) à luz de suas demandas por afirmação de seus papéis como sujeitos específicos das AJuPs.

III.
                  Conversando informalmente com colegas de minha geração de AJuP e com outros de gerações mais próximas à minha[4], percebi que, mitigadas as singularidades, as especificidades locais e culturais, certos conflitos eram comuns e recorrentes no processo de transição pelo qual todos nós tínhamos passado, qual seja: o deslocamento da posição de estudante-militante para o de professor-coordenador (ou orientador) de coletivos de Assessoria Popular Universitária.  Essa questão me era nova por dois motivos: primeiro porque, na minha época de estudante-militante no SAJU/UFBA, não havia professores engajados na posição de um efetivo integrante do coletivo ou de um sajuano que virou professor e continuou sajuano; segundo, porque, de fato, as demandas discentes e docentes nem sempre confluem para o mesmo ponto pedagógico ou institucional, mesmo em espaços como AJuPs, e esses pontos de dissensos variam dependendo da geração que as formula e mesmo do perfil da instituição universitária em que se inserem.
                  O fato é que, a partir de percepções cotidianas, havia uma série de questões conflituosas que se mostravam a mim (e, em certa medida, a meus colegas em seus contextos), oriundas desse mal-estar, que são típicas de toda relação pedagógica entre gerações distintas, mas que, nesse caso dos coletivos de AJuP, apresentavam algumas peculiaridades. Para tornar mais claro de que se trata, destacaria dois grupos de questões recorrentes que marcam, ambivalentemente, esse processo específico a que me referi.
                  A primeira delas refere-se a uma relação conflituosa, definida pela dependência entre os discentes em relação aos docentes. Uma relação de dependência que não promove a autonomia dos discentes, os quais tendem a ficar ligados à figura reverente do professor como uma espécie de condutor e oráculo. Nesse aspecto, o caráter “emancipatório” da AJuP fica colapsado pela incapacidade de os discentes ressignificarem seu papel perante o professor-orientador, o qual, por sua vez, padece do conflito interno de não querer (ao menos conscientemente) se apresentar de uma maneira tutorial, justamente por conta de sua trajetória como discente formado em AJuP. Neste aspecto, o problema da não-emancipação dos discentes em relação aos docentes, além de ser uma contradição com o princípio da horizontalidade adotado pelas AJuPs, pode acarretar o definhamento objetivo dos projetos que necessitam de extremo proativismo dos estudantes.
                  Uma segunda questão, aparentemente oposta à primeira, mas parte do mesmo processo, se dá pelo confronto da afirmação de papéis no interior do Coletivo de AJuP, como é o meu caso em especial[5]. Dessa forma, se, no primeiro caso, o andamento da AJuP estava caraterizado pelo problema da falta de protagonismo discente, nessa segunda forma, a relação conflituosa se mostra por um vetor diferente: identificado pelos estudantes como a Autoridade em nível formal, a reação discente passa a ser marcada por sucessivas formas de desestabilização (também, às vezes, inconsciente) da figura docente no seu processo de busca pelo seu papel naquele ambiente. Essa tentativa de o docente ser um “igual” no Grupo produz esgotamentos de canais de comunicação, falas que, no fundo, não se identificam em sua raiz, o que dificulta a gestão das ações no Coletivo. Essa “queda de braço” entre discentes e docentes, por vezes sequer percebida como “uma questão” por seus atores, não se explica apenas como a expressão tão comum de uma rebeldia juvenil contra o mestre, o que pode ser, inclusive, uma das marcas de uma pedagogia libertária. Aqui, ao revés, há uma peculiaridade: se, por um lado, o docente (ex-discente-ajupiano) não deseja ocupar o lugar simbólico ou imaginário do “Pai tirano”, como abordarei alhures, por outro, os discentes não o reconhecem como um “igual”, e investem egoicamente contra essa figura, de forma a esvaziá-la de sentido nesse espaço. Trata-se, grosso modo,  não só de uma contrariedade rebelde em face do docente, mas de uma atitude marcada também por indiferenças de reconhecimento que podem corroer a participação do professor no Coletivo. Não se opera, nesse caso, por uma inércia marcada pela dependência, mas uma inércia manifesta pela indiferença. Tampouco se apresentam contrariedades à fala docente, pois há uma ação discente que não reconhece, no cerne, o lugar dessa fala no Coletivo como a de um igual.  
                  Não custa lembrar que essas questões – acima destacadas em dois blocos de tensões entre discentes e docentes na afirmação dos seus papéis no cotidiano de um Coletivo de AJuP –, ainda que colhidas das falas que mantive com interlocutores próximos, são parte de minha própria experiência. Todavia, mesmo como uma percepção muito pessoal disso tudo, tenho para mim que esses dois grandes blocos de conflitos que distingui não marcam apenas meras idiossincrasias. Podem, talvez, informar uma tendência mais geral.
                  Com efeito, não creio ser tão somente consequência de uma experiência singular a clara dificuldade – generalizada e atual – de serem constituídas novas AJuPs com a presença orgânica de docentes egressos do mesmo campo.[6]
IV.
                  Em outubro deste ano (2016), quando estava em trânsito por Salvador, resolvi visitar o SAJU da Universidade Federal da Bahia. A escolha do dia, para mim, tinha um sentido muito especial: iria no momento da “Reunião Geral do SAJU”. Depois de tantos anos, e mesmo já tendo participado de um evento do SAJU por ocasião dos seus 50 anos, voltar ao ambiente da Faculdade de Direito da UFBA e, especificamente, ir para uma “Reunião Geral do SAJU” gerou em mim uma expectativa intensa e reveladora de aspectos que tento esboçar aqui. Resolvi, então, ir na condição de observador, já que o evento era aberto.            
                  O SAJU atual não lembra em nada o de minha época, o do “Porão”. Situado agora no hall da Faculdade, o SAJU conta com uma sala de espera, sala de reunião e ambientes individuais de atendimento. Na sala de espera uma jovem estava sentada, e me informou que eu poderia entrar e que a reunião logo ocorreria. No corredor, pude ver os quadros com os cartazes das Semanas do SAJU da minha época.
                  Sentei-me à mesa de reunião.  Havia umas 10 pessoas ou mais. Tudo ocorreu de forma espontânea, e ninguém perguntou quem eu era, apesar de minha presença revelar um elemento estranho. Apenas uma sajuana presente ao meu lado me reconheceu por conta do facebook. Notei que havia um pôster com um cartaz da Semana do SAJU sobre Direitos Humanos com uma foto de uma criança pobre em frente à mesa. Certa hora, eu disse em tom nostálgico: “eu me lembro exatamente do dia que essa foto foi tirada”. Todos me olharam com aquele ar do tipo “hum, massa”, até que se iniciou a reunião. A reunião tinha uma pauta com assuntos gerais, mas havia um ponto que parecia polêmico: o pronunciamento (ou não) do SAJU sobre a questão do “Golpe” em relação ao Impeachment da Presidente da República.
                  Incrível imaginar que, transcorridos tantos anos, algumas cenas eram exatamente parecidas com as que ocorriam em minha geração. Detalhes como “quem vai escrevera a ata”? “Ah, hoje fulano vai escrever a ata” eram cópias das mesmas falas que ouvi tantas vezes. Ou mesmo as longas discussões sobre questões aparentemente banais do fluxo de trabalho e da burocracia interna. Quando se aproximou o ponto polêmico, notei que um Grupo de alunos do Núcleo de Assessoria chegou em bloco na reunião. Havia, como no meu tempo, uma perceptível tensão entre os de “Assistência” e os de “Assessoria”. Nesse momento, um discente do Núcleo de Assessoria me reconheceu e falou comigo, perguntando se houve uma apresentação. Eu disse que não, e ele pediu que me apresentasse por ter sido do SAJU e pesquisador do campo.  A reunião esquentou com o tema “polêmico”, também ativando minha memória para os temas polêmicos de minha geração. Já estava afastado da mesa e me coloquei, agora, numa postura de observador de toda cena. Mas, a certa altura dos debates, um ponto me chamou atenção: o SAJU, atualmente, está ligado à UFBA por ser um Projeto permanente de Extensão, e, para tanto, conta com a orientação formal de uma docente. Mais uma vez, como no meu tempo, surgiu uma breve ponderação se essa “orientação” deveria ser apenas formal ou não.
                  Sai antes de a reunião terminar. Antes de cruzar a porta, contudo, parei e olhei mais uma vez para o quadro com o rosto de um jovem. Aquele olhar sempre me fez pensar. Eugênio Lyra.

 V.
                  Que lugar é esse, o lugar simbólico e imaginário do Pai?[7] Não sou versado em teorias psi, mas sinto que elas provocam minha curiosidade sobre esses assuntos. Ainda mais em tempos de trabalhos acadêmicos estilo “enxuga gelo”, nos quais pouco se arrisca, pouco se implica. Dessa forma, apresento algumas correlações com certas noções de um campo diverso de minha formação, mesmo correndo o risco de apresentar incorreções e “imposturas intelectuais”[8].
                  Para Julien:
Lacan inventou três denominações ou dimensões para designar o que é ser pai. Primeiramente o simbólico, em segundo lugar o imaginário e, em terceiro, o real. (...) O pai, no plano simbólico, se refere à paternidade como uma terceira posição entre a mãe e o filho. (...) A segunda dimensão da paternidade é o pai no plano imaginário. Ele vem do filho ou da filha, da criança. Refere-se ao pai como imagem, imagem forte, grandiosa, majestosa, que tem uma força de sedução e de atração. Este é o pai como imagem, imagem de homem. Ele existe no imaginário graças a esta atração da criança pelo seu pai. Não estamos falando do pai biológico, mas da imagem que o pai mostra em sua vida, privada e social. Lacan, então, inventou o pai no plano real. Este vem de um homem que, em geral, é o pai das crianças na família. O pai, no sentido real, é um homem na condição de desejante, desejando uma mulher, em geral a mãe. Então, temos três dimensões: na dimensão do simbólico, o pai vem da mãe; na dimensão do imaginário, o pai vem da criança; e, na dimensão do real, o pai vem de um homem, que tem por objeto de desejo uma mulher.[9] (Grifei)

                  Haveria, nessas questões relativas ao trabalho de grupo em AJuPS, espaço para se indagar os conflitos dos sujeitos (discentes e docentes) a partir dessa gramática psi?
                  Grande parte de minha geração do SAJU/UFBA, com perfil discente-militante, optou pela carreira acadêmica docente como atividade profissional, ainda que, em certos casos, conjugada com outras atividades.[10] Esse processo ocorreu, de forma mais ou menos uniforme com a minha geração e a geração de sajuanos do Rio Grande do Sul do final dos anos de 1990.
                  De um modo geral, naquela época, estar no SAJU significava pertencer a um local de autogestão discente, de prática e de contestação do ideário tradicional das Faculdades de Direito[11]. Claro que havia inúmeras tensões e embates ideológicos entre os participantes do Coletivo, mas, em termos gerais, a questão da aderência às teorias críticas era um ethos comum. Nesse sentido, no SAJU, pude vivenciar o contexto do refluxo dos Congressos de Direito Alternativo e os debates teóricos outsiders que se faziam, principalmente no Sul do Brasil. Dessa forma, a via de entrada das teorias críticas em meu processo de formação na graduação não foi a sala de aula, mas o cotidiano da Assessoria Popular, seja nos grupos de estudo do SAJU ou pela demanda de fundamentação teórica mais sofisticada que a elaboração constante de projetos e de atividades nos impunha. Assuntos e abordagens marginais naquele contexto da Faculdade, tais como Criminologia Crítica, Advocacia Popular, Pluralismo Jurídico, Direito e Arte passaram a ter, no SAJU, o espaço de uma apropriação pessoal.
                  Nessa perspectiva, dessa presença das teorias críticas no ambiente formador do SAJU, deriva o fato de que nossos Pais imaginários e simbólicos[12] eram mais etéreos, distantes ícones contradogmáticos. Ou seja, esses Pais não se encarnavam tão fortemente em nosso cotidiano. Warat, Boaventura de Sousa Santos – ou qualquer outro Pai simbólico já morto, como Lyra Filho ou Marx – estavam amorosamente no lugar dos totens, na lembrança recalcada em relação ao respeito de sua autoridade (de Autor, de dono da fala autorizada), e que não nos demandava, para formar nossa subjetividade, querer ocupar seus lugares canônicos. A carne dos nossos pais simbólicos já estava introjetada em nosso imaginário como alternativa aos Pais tirânicos dos professores tradicionais de terno e gravata, aqueles Pais encarnados em nosso cotidiano, e para os quais o nosso investimento libidinal era direcionado na rebeldia de construir um discurso e uma prática de Assessoria Jurídica Popular como avesso a essa tradição conservadora. Nesse contexto, construímos, cada um à sua maneira, uma identidade sajuana.
                  Por outro lado, outras considerações podem ser somadas a um processo contextual mais específico. Ou seja, os conflitos decorrentes da demanda por subjetivação (discente e docente) de minha geração foram muito distintos dos que ocorrem no contexto da geração atual que pretende formar Coletivos de AJuP, mormente após os anos 2000. Por isso, já seria possível se pensar em “choque de gerações”.
                  Na atualidade, há um quadro de expectativas subjetivas que impacta os processos de formação nas universidades, especificamente nas Faculdades de Direito de maneira muito específica. Um elemento contextual que destacaria trata da orientação profissional a partir da graduação. Atualmente, é sensível perceber que a opção acadêmica (mestrado e doutorado) passa a ter a feição de um evidente “plano b”[13] no horizonte de escolhas profissionais, em vista da intensa competitividade do mercado e as fortes demandas por sobrevivência do egresso. Disso resulta que a identidade do jovem professor ajupiano opera no conflito em se vincular a Coletivos contestatórios, ao tempo que necessita se estabelecer em espaços que propiciem sua sobrevivência institucional mais imediata.
                  Atualmente, jovens docentes formados por AJuPs procuram seu lugar de sobrevivência financeira, mas também o seu lugar simbólico ou imaginário, guardando, na experiência, as reminiscências de sua identidade anterior, carregando o ônus de ser, em certa medida, transmissores autorizados dessa experiência; por outro lado, discentes de novas gerações já não partilham dos mesmos ideais desses transmissores do passado, e ora os reconhecem como Autoridade (pois, formalmente, são professores), ora os negam, indiferentes a esse papel em que não se reconhecem. Talvez por essas e outras razões o trabalho docente (dentro e fora da AJuP) seja tão desafiador ante os dilemas de subjetivação do jovem na contemporaneidade. Ainda mais quando se trata de jovens que, no ambiente de uma tradição marcada pela fala da Lei, optam por serem outsiders. Dai a função paterna, o nome do Pai, pensado pelo dilema edipiano, cederia lugar, hoje, ao dilema Hamletiano. Pois, como infere Joel Birman, a pergunta que espelha os dilemas de subjetivação dos jovens atuais, marcados pela ambivalência exaltação e/ou desamparo, é: ser ou ser?[14]
                  Mas, como Ser, quando não há mais o Pai para matar?
VI.
                  Quando voltei para casa, após a Reunião Geral do SAJU, havia uma brisa litorânea típica de Salvador. Um calor ao mesmo tempo úmido e fresco. Sigo até hoje com essas imagens do presente e do passado. No fundo, todo esse meu esforço visa a elaborar, para mim, uma história pessoal que faça sentido. Afinal, não seria isso a neurose, um mito individual que o sujeito conta a si mesmo, e que nele se reconhece e se nega ao mesmo tempo?
                  Se tudo for assim, aqui segue minha palavra misturada, meio razão, saber sabido e não sabido, livre associação, ato falho e catarse. Pois quem não tem divã, caça com o que se tem: Pontes, palavras e memórias.



** Texto intuitivo e nitidamente confessional, desprovido, portanto, de qualquer pretensão “científica” (seja lá o que isso signifique).
* Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Curso de Bacharelado em Segurança Pública (UFF). Integrante do TaCAP – Tamoios Coletivo de Assessoria Popular.
[1] Serviço de Apoio Jurídico Popular da Faculdade de Direito (UFBA).
[2] Essas duas dimensões pessoais no campo da AJuP podem ser resumidas assim: na graduação em direito, na Universidade Federal da Bahia, fui integrante discente do SAJU (1995-2000). Atualmente, desde 2014, sou professor da Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Direito (Curso de Segurança Pública), sendo integrante do Tamoios Coletivo de Assessoria Jurídica Popular, e, institucionalmente, sou professor responsável pelos projetos desse coletivo perante a PROEX/UFF.
[3] Uma geração de AJuP pode ser pensada não como um lapso temporal determinado, mas como um conjunto de atores que passou, em certo contexto comum, pela etapa de formação de graduação integrada, organicamente, ao ambiente da AJuP.
[4] Nesse processo, foram importantes os diálogos que travei com Erika Dmitruk, Roberta Laena e Marilson Santana, colegas que foram discentes-militantes e se tornaram professores em Coletivos de AJuPs em contextos diversos.
[5] Talvez em outro momento se possa avançar para traçar as diferentes formas desse conflito entre discentes e docentes à luz do tipo de instituição universitária em que se inserem. Dessa forma, por exemplo, em universidades públicas esse fenômeno pode se expressar de forma diversa do que se apresenta em universidades privadas.
[6] Anda que eu não tenha pretensões científicas, é preciso destacar a seguinte hipótese: mesmo sem pesquisas empíricas para discutir esta hipótese, é possível perceber a presença de docentes egressos de AJuPs no Brasil que participam, de forma indireta, de Coletivos Universitários na qualidade de orientadores, mas não se situam como Assessores Populares, com papéis horizontais com os discentes.

[8] Mesmo que inspirado no título do polêmico trabalho de Sokal e Bricmont, aqui minhas imposturas são dolosas ab ovo.
[9] “O pai continua Necessário”? Entrevista de Philippe Julien feita por Graziela Wolfart.  Fonte < http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2002&secao=267  >. Consultado em: 15.11.2016.
[10] Ver a monografia de Raquel Cerqueira Santos, “Educação Jurídica, Extensão Universitária e o perfil profissional do bacharel em direito: correlações possíveis” (Faculdade de Direito, UFBA, 2013), que estuda as contribuições relativas à atuação em projetos de extensão em relação ao perfil profissional dos egressos do SAJU.
[11] No campo das escolhas discentes, por óbvio, havia outras percepções individuais do que significava o espaço do SAJU, como, por exemplo, um lugar para uma socialização com a prática.
[12] Essa questão me foi levantada por Marilson Santana.
[13] O “plano A” é adentrar nas carreiras de Estado tendo em mente a “estabilidade”.
[14] Ensaio de Joel Birman, “Ser ou não Ser”. Fonte: <http://revistacult.uol.com.br/home/2011/05/ser-ou-nao-ser/>. Consultado: 15.11.2016.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O fantasma colonial do infanticídio indígena

Um fantasma colonial atormenta os povos indígenas do Brasil desde a edição, em 2005, do Projeto de Lei nº. 1057 pela Câmara dos Deputados do Congresso Nacional: a acusação de que maltratam suas crianças, e que isto seria uma questão cultural ou de "práticas tradicionais".



No centro das acusações e motivações está o alegado "infanticídio indígena", ainda que outras práticas tradicionais adjetivadas de "nocivas" também apareçam como "verdades incontesteis" a serem reguladas pelo Estado brasileiro para a defesa dos direitos das crianças. Atualmente, o antigo PL está registrado pelo número 119 de 2015, e tramita no Senado Federal, sendo que hoje, 14 de novembro de 2016, será alvo de debate em audiência pública da Comissão de Direitos Humanod o Senado Federal, convocada para discutir a temática.

Como já disse outras vezes, esta é mais uma tentativa de criminalizar os povos indígenas com alegações que não conseguem sustentar-se em dados consistentes, tampouco na forma como pretende abordar o assunto: via a violência policial-judicial e a imposição de valores. Para desconstruir essa falácia da proposta do PL, e apontar para horizontes em que o diálogo intercultural e o respeito às diferenças culturais impere, resgato o texto abaixo, de autoria de Washington Castilho e colaboração de Fábio Grotz, publicado no site do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), em que a questão é debate com olhares de pesquisadores, militantes e indígenas.


"O olhar do outro

por Washington Castilhos
colaborou Fábio Grotz

O denominado “infanticídio indígena” foi destacado no último mapa da violência do Ministério da Justiça brasileiro, por conta da prática Yanomâmi de dar direito a mães e pais de matarem recém-nascidos em casos de crianças que nasçam com deficiência. Segundo reportagem do programa dominical Fantástico do final de 2014, a prática teria engrossado os índices de violência da cidade de Caracarai (em Roraima, onde está localizada a maior reserva Yanomâmi do país), colocando-a como campeã de homicídios em 2012 no Mapa da Violência lançado em 2014.

A prática Yanomâmi foi alçada ao status de questão nacional em agosto de 2007, quando o deputado federal Henrique Afonso apresentou o projeto de lei 1057 – conhecido como Lei Muwaji – para“combater práticas tradicionais nocivas à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas”, e logo em seguida a Revista Veja publicou reportagem (sob o tendencioso título “Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a Funai nada faz para impedir o infanticídio”, edição 2021, de 15/08/2007) em que o ato era detalhadamente discutido. Desde então, o tema tem sido ocasionalmente abordado pelos diversos meios de comunicação brasileiros, sempre imerso em valores culturais e considerando unicamente a verdade moral ocidental acerca do que é a vida, do que são os povos indígenas e de como os agentes não indígenas podem resolver tais situações, com “nossos” aparatos e valores, assumindo uma supremacia sobre as cosmovisões desses povos.

Por ser este um tema inquietante desde sua denominação – o ato pode ser chamado "infanticídio"? –, fomos ouvir pesquisadores que desenvolvem estudos com recorte nas temáticas dos direitos humanos e étnicos nas áreas da Antropologia e do Direito, a fim de saber como estes avaliam a significação do (dito) “infanticídio indígena” como “problema social” e seu enquadramento nas estatísticas de violência produzidas pelo estado. Compreender a prática Yanomami torna-se complicado em uma sociedade cujas crianças têm cada vez mais seus direitos sujeitos à tutela do Estado e onde o conceito de vida é tão valorado e sacralizado.

“Todas as vezes que se classifica esta prática como ‘infanticídio’, cai-se num duplo equívoco: o primeiro deles é a redução da possibilidade de entendimento do que representa tal ato pela lógica ou olhar do povo Yanomami, pois a sua tipificação automática como infanticídio permite a intervenção estatal drástica, via esfera penal, ou ações de organismos privados, como missionários e ONGs, que têm por base uma leitura do bem jurídico ‘vida’ diferente daquela formulada pelos Yanomami, sobretudo na compreensão de quando se reconhece de fato um ser enquanto pessoa. O segundo equívoco é a inadequação do uso do tipo penal ‘infanticídio’, inserido no artigo 123 do Código Penal, para a compreensão do que de fato ocorreu em tais situações, posto que para o infanticídio seria necessária a existência de ‘estado puerperal’ que corresponderia à perturbação emocional da parturiente que motiva o ato, ou seja, existe um fator psicológico que explicaria o alegado crime. A prática Yanomamiseria melhor traduzida como o não reconhecimento coletivo de transformação do ser em pessoa e, consequentemente, em criança”, analisam Jane Felipe Beltrão, professora no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Assis da Costa Oliveira, Mestre em Direito, professor de Direitos Humanos e coordenador do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade, também da UFPA – campus de Altamira. Assis recentemente lançou o livro “Indígenas Crianças, Crianças Indígenas: perspectivas para construção da Doutrina da Proteção Plural” (Editora Juruá), no qual aborda o assunto..

Segundo os pesquisadores John D. Early e John F. Peters, que realizaram estudos junto aosYanomami na década de 1990, o que “nós” classificamos como “infanticídio” é visto por eles como “aborto terminal”, não como homicídio. Muito mais do que um ato ou uma decisão, trata-se de um processo cultural com fundamentação complexa e coerente internamente à aldeia, que não pode ser visto como ato de barbárie, primitivo ou comparado ao “estado puerperal”, na tentativa de defini-los como loucos ou como grupo que desconsidera a vida, pois é esta justamente o que está em jogo.

“Para uma comunidade indígena, o valor da vida é algo fundamental. Não há qualquer intenção, do ponto de vista deles, de agredir esse valor. O que há é uma demonstração de seus limites, freqüentemente cristalizados em valores e modelos de ação social. Nessas horas, uma negociação em diálogo com as crenças locais pode permitir soluções mais felizes. Mas uma ação do Estado, por sua natureza genérica e sua dita impessoalidade, que não consegue flexibilizar suas ações em contexto algum, não vai conseguir produzir soluções felizes. Ele vai impor normas de forma arbitrária”, afirma o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e coordenador de assuntos indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Para a pesquisadora Rita de Cássia Melo Santos, doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/MN/UFRJ, a ideia de tomar a prática indígena como um “problema social” diz respeito à forma como a sua origem e abrangência foram problematizadas pelo legislativo brasileiro.
“Segundo os órgãos indigenistas e movimentos indígenas, trata-se de uma prática isolada, ritual, realizada em comunidades específicas e em vias de extinção. A cultura é dinâmica, ela está em constante processo de transformação, inclusive no que concerne às populações indígenas. Logo, tratar a questão do infanticídio indígena como um problema para o qual se faz necessário um projeto de lei nacional, abre uma frente de homogeneização em relação a essas populações bastante perigosa. Muito tem se falado sobre infanticídio e sempre há uma recorrência a casos muito específicos e pontuais, ao mesmo tempo em que os assassinatos das lideranças indígenas, a usurpação dos seus territórios e a morosidade no atendimento às suas demandas pouco têm espaço na mídia. Estou certa que o projeto de lei do infanticídio corresponde a mais um braço da campanha orquestrada contra os direitos indígenas, muito mais do que uma questão de proteção às suas crianças. Para isso, temos a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente em 2009, que incluiu um artigo específico sobre as crianças indígenas, e o apoio do movimento indígena e dos órgãos de ação indigenista”, avalia Rita Santos, autora do artigo Sentidos e usos sociais do infanticídio indígena em alguns veículos da mídia brasileira. que compõe a coletânea “O fazer e o desfazer dos direitos” (E-papers, 2013).

Vale lembrar que, mesmo entre as diversas etnias indígenas, há diferenças. Os Guarani, por exemplo, além dos nascidos com deficiência, descartam um dos recém-nascidos em caso de gêmeos.
Jane Beltrão e Assis Oliveira lembram que certa vez ouviram um líder Guarani interpelar uma Procuradora da República que defendia a “vida pela vida” independente do contexto social, dizendo: “A senhora e sua gente nos ensinaram a não eliminar os gêmeos e os nascidos com deficiência a partir da ‘cartilha católica’, mas quando a aldeia se encheu de pessoas com deficiência, ninguém apareceu para oferecer vida confortável àqueles Guarani que deixamos viver sem garantia de uma vida boa”.

“Em outras palavras, o líder informou à autoridade que não há vida sem que seja possível viver bem, e que apesar do alarde pela vida, o Estado ‘deixa’ morrer por não atender. Até que ponto alguém pensa nesta correlação? Os Guarani, como os Yanomami, pensam a vida com condições de ser pessoa e usufruir da condição de humano com garantias”, salientam os pesquisadores.
Rita Santos concorda com o peso que têm os fatores sociais, como o difícil acesso dos povos a bens e serviços de saúde ofertados pelo Estado. “O infanticídio tem sido largamente utilizado como um elemento de ofuscamento das reais necessidades dos povos indígenas hoje, como a demarcação e desintrusão de seus territórios; e o acesso à educação e à saúde diferenciados”, diz ela.

Vida: o que é, quando começa e para que serve
Para os Yanomâmi, a vida tem início após a primeira mamada: o momento crucial de transmissão da alma é o aleitamento. Até então, o recém-nascido é um corpo como qualquer animal, assim o “descarte” dos que não são reconhecidos coletivamente como ‘pessoa’ não é repudiado. Deste modo, a discussão sobre a prática relativiza valores e coloca em evidência as possibilidades de ressignificar o que é vida e quando esta começa.

“Há uma tendência no pensamento ocidental de tornar todos os princípios rígidos, impositivos e, assim, perdem as conexões, ao não serem nunca consideradas em seus aspectos contraditórios e ambíguos, bem como ignoradas as suas repercussões positivas. Assim, eles, os índios, se transformam em monstros”, ressalta o antropólogo João Pacheco.

Mas é interessante notar o quanto na sociedade brasileira a questão da vida (ou de quando ela começa) não é um consenso. No Supremo Tribunal Federal (STF), os julgamentos quanto ao uso de células-tronco e ao aborto de fetos anencefálicos, ocorridos nos últimos anos, revelaram posições jurisprudenciais e doutrinárias bem diversas do que seria o direito à vida, isto sem falar da posição dos movimentos feministas e das religiões (não apenas as cristãs, por certo), entre outros segmentos da sociedade.

“Logo, nem ‘entre nós’ há consenso sobre quando começa ou quando e com que critérios é possível interrompê-la, o que está colocado fortemente na discussão sobre a regulamentação e/ou legalização do aborto. Desse modo, também é possível empreender a análise de que, no caso do povo Yanomami, assim como dos mais de 200 povos indígenas, está-se diante de uma diversidade de modos de compreender o que, desde quando e para que serve a vida, cujas disputas também são feitas internamente dentro desses grupos e no diálogo com outros grupos e com a sociedade nacional”, afirmam Jane Beltrão e Assis Oliveira.

Para João Pacheco, “as pessoas que vivem aquela cultura têm a capacidade de elaborar outras soluções, a cultura não é como nosso código legal, fechado e amarrado. Ela é reinterpretada pelas pessoas. Se houver liberdade para que elas reelaborem, se houver respeito em relação à cultura, se ela não for tratada como uma manifestação de primitivismo, de ignorância, as pessoas vão caminhar para soluções que sejam possíveis”, afirma o antropólogo do Museu Nacional, citando como exemplo uma prática dos índios Tikuna, no Alto Solimões, etnia estudada por ele em suas pesquisas.

“Eles têm um ritual chamado ‘festa da pelação’, em princípio realizado com todos os jovens que passavam pela época da iniciação, da puberdade, ora restrito às mulheres. É um ritual no qual se arranca os cabelos da menina, que depois é reapresentada à comunidade em uma nova condição. A partir daquele momento, ela é considerada um ser possível de casar, de ter relações sexuais, uma adulta. Antes disso, qualquer ação sexual realizada contra ela é considerada um ato patológico, que será punido como um crime monstruoso. Então, o ritual é um ponto fundamental. A visão que os regionais têm sobre isso é a de um ato cruel, e eles fazem pressão em relação a isso. A tendência dos índios hoje não é mais de arrancar os cabelos como eles faziam manualmente, tufo por tufo. Eles usam a tesoura, e às vezes tiram um tufo para a menina ter a ideia da dor. As velhas dizem que as moças precisam ter ideia da dor, porque o parto é uma coisa muito dolorosa, e se ela não for capaz de passar pelo ritual, não conseguirá ter uma criança”, relata o coordenador de assuntos indígenas da ABA.

De acordo com as fontes entrevistadas, a diversidade cultural de mais de 200 povos indígenas, somente no Brasil, nos diz, acima de tudo, que é necessário entender melhor tais situações, quem as realizam e por quais motivos.

“Não se pode generalizar o ‘infanticídio’ como elemento cultural de todos os povos indígenas, tampouco reduzir seu entendimento a mera ‘questão penal’, pois sua existência interroga, antes de tudo, a nossa ‘zona de conforto’ sobre o que somos, sobre nossos valores e direitos, mostrando-nos que há um campo de representação plural da vida que precisamos saber entender antes de querer intervir”, ressaltam Jane Beltrão e Assis Oliveira.

No Congresso Nacional tramitam atualmente vários projetos nocivos aos indígenas, grande parte confluindo para a questão da terra. Nesse sentido, o grande projeto em discussão é a chamada PEC 215, que visa transferir do Executivo para o Legislativo (o Congresso) a demarcação de terras indígenas, e a transformaria em um negócio a ser discutido entre bancadas e interesses regionais, sem mais usar qualquer critério técnico para demarcação de terras. Tiraria a Funai, os antropólogos e a Procuradoria da República de qualquer interveniência. Na prática, a PEC, se aprovada, pararia para sempre qualquer novo reconhecimento territorial e abriria espaço para a revisão dos territórios já demarcados.

Todas as propostas de intervenção judicial ou legislativa – a exemplo do Projeto de Lei 1057/2007, conhecido como Lei Muwaji – se fundamentam na ideia de criminalização dos indígenas, da pretensa incapacidade cultural de alguns povos tradicionais em saberem cuidar de suas crianças, de que são pessoas más, que querem muita terra e invadem propriedade privada. Tal fundamentação é sustentada pela ideia de que determinados costumes e práticas indígenas ignoram o valor da vida, da dignidade e da infância, colocando-se como atos bárbaros ou selvagens, em suma, de sujeitos de uma humanidade “abaixo da nossa”, e, por isso mesmo, passíveis de toda sorte de intervenção, seja para convertê-los (como fazem os missionários) ou para puni-los (como querem os legisladores ou juízes).

“Se compreendermos que a vida e a infância são valores culturalmente construídos e, portanto, interculturalmente significados de maneira plural, se reconhecermos a capacidade civil plena e a cidadania diferenciada garantidas pela Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, e se tivermos a preocupação em analisar tais situações (ditas) de ‘infanticídio’ com cautela e com atenção, buscando apreendê-las pelo ‘olhar do outro’ e dialogar sem impor os ‘nossos valores’, pensamos ser um bom começo, um procedimento que não busca relativizar valores, mas torná-los, efetivamente, multiculturais”, defendem Jane Beltrão e Assis Oliveira.

É preciso, segundo os pesquisadores, deslocar o foco para os problemas históricos e estruturais que afetam os povos indígenas, como os relativos à terra, à educação e à saúde.

“É necessário analisar as discussões sobre o dito ‘infanticídio indígena’ paralelamente a situações de genocídio explícito de índios, como existe em Mato Grosso do Sul, onde eles vivem na beira da estrada, sendo atropelados, violentados por donos de fazendas de soja, pelo governo do estado. No sul da Bahia, casas indígenas sendo incendiadas aparecem no jornal como exemplo. Os casos das ditas ‘práticas infanticidas’ – na maioria das vezes meras acusações carentes de confirmação – são infinitamente menores em relação aos casos existentes de violência contra os indígenas”, observa João Pacheco.

Artigo de Rita Segato, com base em pesquisa empírica desenvolvida entre os Suruahá, verificou que dos 143 membros deste povo houve, entre 2003 e 2005, 23 suicídios, dois “infanticídios” e uma morte por doença, ou seja, a ampla maioria dos casos de morte foram decorrentes de suicídio, isto sem contar os casos de desnutrição e pobreza. Compreender a diferença e produzir respeito aos povos indígenas, é o que a diversidade nos ensina.

Publicada em: 24/02/2015"