segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O CONCEITO DE CASA CONTRA O CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA NO FILME AQUARIUS

Humberto Góes

O CONCEITO DE CASA CONTRA O CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA NO FILME AQUARIUS
Em texto escrito por Túlio Jales e José Leôncio Guimarães Filho (http://dejure.org.br/…/aquarius-um-elogio-a-propriedade-pr…/ ), afirma-se a existência de um discurso de defesa da propriedade privada em seu aspecto liberal e de um possível egoísmo da personagem Clara. Estas seriam apontadas como algumas das "contradições" do filme Aquarius, cujo propósito, entre outros, é denunciar a ordem imposta à cidade pelas construtoras.
Em desacordo com que indicam os amigos, encontro outra perspectiva de leitura do filme e de compreensão para o modo como é apresentada a luta de Clara. Para expressá-la, primeiro, invoco um conceito que suponho fugir em alguma medida à concepção liberal de propriedade, o qual considero mais condizente com o conjunto das ideias esboçadas em Aquarius. É a categoria teórica "casa", que, no contexto, pode ser confundida com a noção de "território".
Usando argumentos que os próprios autores atribuem ao direito de propriedade no pensamento liberal tendo em conta certa visão filosófica, considero que a ideia de “casa” imprime a certo espaço marcas de subjetividade que o transformam em “lar”, em “moradia” - mais do que em propriedade. Por isso, apesar de ser considerado individualmente, o que parece surgir com a ação de Clara é a defesa de seu “território”, construído com a história esculpida nos objetos pessoais e no afeto constituído e difundido no cotidiano que se enlaça ao lugar.
Tal como é retratado, este não é apenas o cenário em que as coisas acontecem. É um sujeito que dialoga com Clara a todo o tempo. A expressão disso está em outros protagonistas que igualmente atuam para a configuração territorial do lugar, isto é, que contribuem para a formulação do conceito de "casa" que Clara parece invocar com a sua ação de desafiar tudo aquilo que afeta o seu território: a praia (e os tubarões com os quais concorre para se banhar); a cômoda que aparece sempre que se pensa ou se vivem os prazeres sexuais; os discos (e sua conexão com o presente por meio dos pendrives); o misto de tecnologias novas e antigas que imprime ao território imediato, ou seja, à casa, uma intertemporalidade; o esgoto identificado como divisor de bairros, portanto, de territórios mais amplos em que se situam as casas. Com esses elementos e juntamente com o sentimento de pertença que se vê promovido do contato subjetivo com o lugar, o território mesmo vai sendo definido, demarcado, o que também compreende a possibilidade de, dentro de certas circunstâncias, configurar-se a entrada ou a saída, bem como o contato desse lugar subjetivado com outros territórios com os quais aquele se interconecta por meio do território maior da cidade, também composta subjetivamente pelas pessoas que a realizam como tal.
Essa compreensão é o que parece surgir enquanto Clara caminha em direção a "Brasília Teimosa", um território que a princípio estaria proibido à protagonista do filme por sua condição social, e indica com clareza os marcos subjetivos que definem a divisão dos territórios no ambiente da cidade.
Nesse contexto é que igualmente se recompõe nas entrelinhas do filme o direito de herança. Este não surge apenas com uma transmissão qualquer de bens. Está intimamente ligado à ideia de cuidado com o território e à ideia de cuidado que própria protagonista tem consigo mesma e com a relação que, a partir de seu lugar, mantém com o mundo. Sob esta perspectiva, que passa pela noção de "casa", o cuidado se vincula à uma concepção de segurança que o abrigo pode proporcionar à existência humana.
Ao que parece, as pessoas, em maior ou menor medida, mantêm essa relação de cuidado e autocuidado com sua "casa". Porém, talvez para a maioria, todos os sentimentos que se dão em torno do território são passíveis de se transformar em dinheiro, o que reduz a condição da "casa" à concepção de "bem imóvel", portanto, de "propriedade". Não é o caso de Clara, que deseja acima de tudo preservar o seu lugar – nem lhe interessa saber o preço que lhe atribuem ao imóvel. Para ela, sua casa não tem preço. Tem valor e esse valor não se reduz a pecúnia.
Tanto é assim que ela afirma à sua filha aquele espaço físico subjetivado como sua "casa"; invoca o direito de preservar sua "autonomia sobre o território" e diz que ela e os irmãos poderão tomar decisões sobre o lugar somente depois de sua morte, portanto, quando os laços que a enraízam espacialmente, porque irrepetíveis diante de sua condição subjetiva, se perderão e/ou não poderão ser exercidos.
Apenas nesse instante é que vejo o direito de herança surgindo em seu aspecto liberal. Ainda assim, como uma pretensa promessa ou alento futuro para a filha. Não para a protagonista mesma.
Não se pode dizer que o filme não esboça incoerências e conflitos sociais individualizados em seus personagens. Ao contrário disso, representa as angústias e as inconsistências que cada um e cada uma pode viver diante do mundo. Sintetizadas mesmo na defesa do lugar, são apresentadas as contradições, os limites e o alcance que a própria luta de preservação vai produzindo. Nesse bojo, emergem algumas tomadas de consciência, a exemplo do reconhecimento da exploração do trabalho doméstico, minimizada pela tentativa de aproximação e de construção de um sentimento de lealdade, de amizade, com a pessoa que atua como empregada doméstica no que se define como "lar" ou "moradia".
A casa é o lugar em que tudo ocorre, mas também vai sendo marcada pelo traço subjetivo e cria ao mesmo tempo as condições para a emergência e reforço dessa subjetividade. Por essa razão é que considero inadequado pensar em um suposto egoísmo da parte de Clara. Na verdade, o que ela faz é resistir à logica que se naturaliza nas pessoas diante da atuação incisiva das empresas de construção civil para transformar todos os lugares da cidade em bens constituídos por seu intermédio.
Não é o fato de os vizinhos e a filha terem sucumbido a essa lógica que faz surgir em Clara o que se poderia chamar de egoísmo. Essa é a qualificação negativa atribuída à protagonista pela construtora e pelos personagens que tentam de forma violenta ou velada impor uma mudança de perspectiva, bem assim, a alteração de sua postura classificada como “intransigente” frente à proposta de compra, cujo significado se amplia ao se perceber que vem junto com uma promessa de mais segurança, de comodidade, de novidade. Ao contrário disso, a personagem assume em si mesma a resistência para preservar a cidade da tentativa da sanha capitalista de conotá-la como um “negócio”. Por isso é que Clara é vista pela construtora e por seus vizinhos como um obstáculo que precisa ser removido. Não importam os seus sentimentos, seus laços que territorializam o lugar. Ela não assume a lógica “normal” quanto ao que, para a construtora, é um bem a partir de que pode se dar a sobreposição de seus interesses econômicos a qualquer outro.
Por fim, observando nas imagens que compõem a obra cinematográfica o apagamento das torres de luxo construídas em descompasso com a historicidade do Recife antigo, considero Aquarius, sob outro aspecto, como a organização de um discurso que nega às construtoras a condição de medium entre as pessoas e a cidade. Isto é, considero que o filme se compõe como a defesa evidente de que são as pessoas que podem definir o lugar e as condições de viver e transformar a cidade.