Há momentos em que o melhor é calar-se. Não se calar por não ter nada a dizer, mas porque faltam palavras para se dizer o indizível do dia-a-dia. Às vezes, falta inspiração; por outras, faltam forças. O indivíduo, em sua solidão costumeira, consegue tão-somente superar-se. Superar seu entorno é tarefa impossível. E o que fazer quando queremos transformar o mundo, recriá-lo, fazer caber todos? A solidão, o indivíduo, não são as respostas certas.
Eu disse "relação resfolegante vida-morte para nós". Mas quem somos este nós? É certo que a relação vida-morte é universal, mas talvez não o sejam a perplexidade e agonia que gera bem como a fundamentalidade que adquire. Talvez, dessa forma, ganhe inteira a crítica ao filósofo d'além-mar: a "vida nua" não é mera abstração ou joguete simbólico de interpretação de um distante fenômeno essencial da vida; para nós, esta vida despida é totalmente concreta, seja porque não mera alegoria ou metáfora, seja porque não imaterial. Mas a questão persiste: o nós!
Vou lançar, agora, uma tese, pouco novidadesca, mas razoavelmente pujante, que concretiza a vida nua, já que negada, e que comunitariza o indivíduo, já que estéril em sua solidão. O exílio prático das "alegorias da derrota" latino-americanas (nem tão alegóricas assim) foi um possível apogeu da autoconsciência continental. E esta se expressou, reiteradamente, por vias poéticas.
Antes de começar a escrever esta postagem, pensei em vários títulos para ela. Percebi que pensar nos títulos era influência da necessidade do impacto, tal e qual o gerado em mim por um poeta desconhecido e que escreveu uma continental canção do exílio. "Longo caminhar", "Rocio do amanhecer", "Golpear-te América", "Uma vida quase inteira vivida na penumbra tumular dos socavões", "Cada promessa de paz é uma mentira", "Morrer sempre", "A vida é um gesto de amor desesperado", "Meu canto é um grito de combate", "Flores de sangue que murcharam", "Lírico fuzil" e "Iluminados corpos que tombaram"; tantos possíveis títulos, verdadeiras manchetes do impossível (ou inaceitável possível) de nosso tempo. Nosso, porque de todos nós, latino-americanos, latinos e americanos, para lembrar o poema.
E está dado que à mente vem a intertextualidade da poesia do tempo de antes e posterior, pois de Castro Alves a José Paulo Paes, de Tiago de Melo a Hamílton Faria, de Cenair Maicá a Chico Buarque, de Araújo Jorge a Ferreira Gular (mesmo que politcamente falecido) ou, ainda, de Manoel Bonfim a Darci Ribeiro, para lembrar apenas de brasileiros, tudo é discurso - e com que eloqüência! - a favor de uma "Canção de amor à América", como a do poeta da resistência Manoel de Andrade, curitibano e de exílio cediço, que escreveu o clássico "Poemas para la libertad" em 1970 e só em 2009 obteve uma sua publicação no Brasil, antecedida, dois anos antes, pela de outro livro, "Cantares".
Mas, como assinalei, tem vezes que é melhor calar, não ter nada a dizer, mas porque faltam palavras para se dizer o indizível. E como já calei pouco, deixo que o poeta diga por mim:
Canção de amor à América (Manoel de Andrade)
Ai América,
que longo caminhar!
Eu venho com o trigo do meu canto,
minha ternura aberta
e o meu espanto;
e desde o fundo de mim e assombrado
e pelos meus lábios de vinho e gaivotas,
te trago o meu cantar de caminhante.
Para ti, amada minha,
para teu corpo de cansaço
e por tua fome
eu trago este meu verso frutecido.
Eu venho com o rocio do amanhecer
sou o cantor da aurora
o que desperta
o que anuncia a vida e a esperança.
Eu sou o mensageiro destes anos
o cantor deste tempo e destas terras
eu sou daqui,
desde a Patagônia até o Rio Grande
e desde aqui alço meu canto para o mundo.
Ai América,
que longo caminhar!
Eu sou como uma ave que passa
apenas um cantor errante,
mas se na minha voz há uma guitarra delirante,
é para golpear-te América,
para levantar teu braço adormecido.
Agora venho cantar-te
e meu canto é como o dia e como a água
para que me entenda sobretudo o homem humilde.
Agora venho cantar-te
mas em teu nome América,
eu só posso cantar com a voz que denuncia.
Eu não venho cantar o esplendor de Machu Picchu
a Grande Cordilheira e a neve eterna;
não venho cantar a esta América de vulcões e arquipélagos
a esta América altiplânica da lhama esbelta e de vicunha;
eu venho em nome de uma América parda, branca e negra,
e desde Arauco a Yucatán,
venho em nome desta América indígena agonizante,
eu venho sobretudo em nome de uma América proletária
em nome do cobre e do estanho ensangüentado.
Eu hoje não vim cantar um continente de paisagens,
não vim falar dos lagos escondidos na montanha
nem dos rios que correm ao fundo dos vales florescidos;
não, eu não vim cantar a este trigo que se nega a quem semeia;
eu venho por uma história mais sincera,
venho falar do homem que vi e ouvi pelos caminhos.
Ai América,
que longo caminhar!
Eu venho falar do camponês
de sua pele seca e sua cor de bronze,
de sua túnica desbotada e o seu colchão de terra,
de sua resignação e seu misterioso silêncio,
de seu grito incontido que em alguma parte se levanta,
de sua fome saciada com o sangue dos massacres.
Eu venho falar do mineiro e sua morte prematura,
de uma vida quase inteira vivida na penumbra tumular dos socavões,
da silicose escavando dia a dia os pulmões dos operários jovens;
eu venho falar das palhiris bolivianas,
dessas desamparadas viúvas do mineiro massacrado ou soterrado,
que buscam no lixo do estanho,
o pão diário dos seus filhos.
Eu não vim para falar do encanto colonial destas cidades,
dos altares espanhóis recobertos com o ouro incaico,
das grandes praças onde se erguem as estátuas magníficas dos libertadores;
venho falar de favelas, barriadas e tugurios,
de povoações calhampas e vilas-misérias,
eu venho falar da tuberculose e do frio,
venho em nome dos meninos sem pão e chocolates.
Eu venho falar por toda voz eu se levanta,
por uma geração reprimida com fuzis,
venho falar das universidades fechadas
e com a marca das tiranias encravadas nas paredes.
Eu venho denunciar falsas revoluções
e o oportuno pacifismo,
venho falar de um tempo de desterros e torturas,
eu venho alertar sobre um terror que cresce uniformado
e sobre estes anos em que cada promessa de paz é uma mentira.
Ai América,
que longo caminhar!
Rumo ao norte
ao sul
a leste ou a oeste,
eu avanço atravessando estas nações.
Oh, caminhar, caminhar
e saber sentir-se um caminhante!
pois é tão triste morrer a cada dia
morrer com os punhos abertos e o coração vazio.
Morrer distante do homem e sua esperança
morrer indiferente ao mundo que morre
morrer sempre
quando a vida é um gesto de amor desesperado.
Oh, caminhar, caminhar!
mas caminhar como caminha o rio e a semente,
conhecendo a mais completa plenitude em seu destino.
Oh, caminhar!
e saber-se um dia fruto.
Caminhar
e sentir-se um dia mar.
Ai, América,
que não exista a dúvida em meu caminho,
que somente me guie este imenso amor que trago,
que apenas esta paixão de justo me enamore.
Fui prisioneiro,
mas outra vez sou pássaro,
outra vez um caminhante,
e volto a abrir a alma com meu canto.
Hoje me detenho aqui...
Levanto minha voz,
minha bandeira de sonhos,
minha fé.
Recolho meu testemunho e me vou.
Eu sou o jogral maldito
e bem-amado.
Meu canto é um grito de combate
e eu não canto por cantar.
Eu parto deixando sempre uma inquietude,
deixando numa senha a certeza de uma aurora.
Eu sou o cantor clandestino e fugitivo,
aquele que ama a solidão imensa dos caminhos.
Passo despercebido de cidade em cidade.
Em algum lugar público eu vou dizer meus versos
e ali conheço amigos e inimigos.
Mas sempre pude encontrar ao grande companheiro,
ao homem novo,
aquele que traz a marca verdadeira,
aquele que se aproxima em silêncio
e como um gesto inconfundível me saúda.
Ai América,
que longo caminhar!
Eu venho amada América,
para iluminar com meu canto este caminho,
te trago meu sonho imenso, latino e americano,
e meu coração descalço e peregrino.
Mas quando sinto meu sangue escorrendo-se nos anos
e que a vida se me acabe antes de ver-te amanhecida;
quando penso que é muito pouco amada minha
o que eu posso dar-te um poema;
ai, quando penso nestas flores de sangue que murcharam,
nestes iluminados corpos que tombaram,
e que talvez não pude fazer por ti quando quisera,
ai, se com o tempo eu descobrir
que este lírico fuzil que trago não dispara,
ai, América,
quem dirá que a intenção que tive foi sincera.
Quito, agosto-70
(Extraído da versão publicada na revista Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, n. 19, janeiro de 1980, p. 7-10, inclusive para pontuação e ortografia).
Ver mais:
- Manoel de Andrade, poeta da resistência;
Pós-escrito: esta reflexão foi construída como fechamento de um ciclo, pois passaremos a reestruturar a periodicidade de textos das colunas Prestes e Luiz Otávio. A Coluna Prestes esta semana completou sete meses, nos quais, ininterruptamente, todo domingo apareceu uma postagem minha para falar de crítica jurídica, marxismo, América Latina, antropologia ou movimentos populares. Depois de trinta domingos (este foi o trigésimo-primeiro), Luiz Otávio Ribas e eu dividiremos o primeiro dia da semana e traremos nossas reflexões a cada quinze dias cada um.