domingo, 7 de novembro de 2010

"A Internacional" e o direito: notas sobre a ludicidade revolucionária

Em 1871 podemos encontrar a gênese de uma das canções mais entoadas pelas esquerdas de todo o mundo: "A Internacional". E por que o digo? Justamente porque o autor dos versos de sua primeira versão foi Eugênio Potier (Eugène Pottier), operário francês que cerrou fileiras na Comuna de Paris. A história da Comuna é um marco para o proletariado, aglutinando em torno de seu exemplo várias bandeiras que hoje se multiplicam em várias denominações: socialistas, comunistas, anarquistas... Esta mesma história recebeu uma ardente e pujante narração de Marx no calor dos acontecimentos históricos do ano de 1871. O texto é temperado por várias menções a leis, decretos, direitos, processos judiciais e burocratas do aparelho judiciário, o que adquire para nós especial relevância. Mais, porém, do que fazer o inventário das críticas de Marx ao direito francês de então, vale a pena estabelecer um nexo histórico entre esta experiência e a organização política de uma revolução. Em sua famosa e polêmica "Introdução" de 1891, Êngels proclama: "olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!", a qual permitiu "abolir violentamente o velho poder estatal e substituí-lo por outro, novo e verdadeiramente democrático".

A Comuna, para Marx, foi "essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho" (capítulo III, de "A guerra civil na França"). E esta forma política, descentralizada e autogestionária, influenciaria toda a reflexão marxista posterior, com especial ênfase a Lênin, em seu "O estado e a revolução", bem como, na seara jurídica, Pachucânis, em seu "Teoria geral do direito e marxismo".

O interessante é mostrar que tal experimento operário de matiz revolucionário, apesar de sua efêmera duração, foi o depósito da agirança dos trabalhadores a partir de então, nela se destacando o cuidado dos operários com a regulação daquela realidade. Tanto assim foi que logo se instaurou uma organização política (o que nós chamaríamos de direito, no sentido de direito-categoria, ainda que não no de direito-fenômeno - ver postagem anterior: Marx e o não-direito: direito e marxismo) e também um primeiro decreto: a substituição do exército permanente (do estado francês) pelo "povo em armas". E, junto a isto, todo um sistema popular de administração da Comuna, com conselheiros municipais eleitos e substituíveis, salários de operários aos delegados, junção de executivo e legislativo em uma corporação de trabalho, juízes eleitos e demissíveis, universalização da educação pública, enfim, um verdadeiro "governo dos produtores pelos produtores".

Nem por isso, todavia, Marx se esquivou de sentenciar sobre o direito burguês: "a civilização e a justiça da ordem burguesa aparecem em todo o seu sinistro esplendor onde quer que os escravos e os párias dessa ordem ousem rebelar-se contra seus senhores" (capítulo IV). Aí está a avaliação final de nosso filósofo da práxis, uma vez que a Comuna foi debelada com o terror de uma pseudo-conciliação que se traduziu em massacre do operariado comuneiro nas ruas parisienses.

Pois bem, esta história de resistência e factibilidade revolucionária, a um só tempo, deixou no campo do imaginário socialista uma profunda marca cuja permanência pode ser constatada na cristalização lúdica da canção "A Internacional", hino de tantos e tantos partidos comunistas e socialistas, assim como de países socialistas, tal como a União Soviética. Como dito, Potier escreveu os seus versos que seriam cantados, primeiramente, com a força marcial da Marselhesa, mas depois teria uma versão própria, de Pedro Degeiter (Pierre Degeytter), em 1888 (ver informe de Vito Gianóti, na página do Núcleo Piratininga de Comunicação).

O mais instigante é que o conteúdo do poema destaca o problema do direito, o que deve nos inquietar a todos. Isto porque coloca uma vez mais a controvérsia nominalista acerca do direito no campo do marxismo. É claro, trata-se de uma expressão poética dos trabalhadores que fizeram a Comuna. Na verdade, de um deles. Mas apesar de não se poder exigir rigor e sistematicidade teórica dos versos, impossível é negligenciar o seu apelo "jurídico-político". Talvez, aqui, o melhor seja compreender a expressão direito não só como forma de organização política, conforme nossa compreensão anteriormente explicitada, mas também de acordo com os analogados propostos pela filosofia jurídica de Jesus Antônio de la Torre Rangel: o direito é um conceito analógico, podendo se referir não só ao direito posto, mas também à ciência do direito, assim como à justiça ou a direitos subjetivos (ver texto "Los pobres y el uso del derecho", na cartilha do AJUP "Direito insurgente: o direito dos oprimidos"). E, de fato, o que a letra de "A Internacional" destaca é exatamente este último analogado. Vejamos a tradução portuguesa:

O Crime do rico a lei o cobre
O estado esmaga o oprimido

Não há direitos para o pobre
Ao rico tudo é permitido
A opressão não mais sujeitos
Somos iguais todos os seres
Não mais deveres sem direitos

Não mais direitos sem deveres


Assim sendo, a poesia que consagrou a expressão "condenados da terra" (em francês, "damnés de la terre", expressão que seria, por sua vez, consagrada pela obra anticolonialista de um Frantz Fanon, na luta pela libertação argelina), traz de forma explícita o clamor por direitos com deveres, problemática central em toda organização política. Em todo caso, isto não significa os direitos e os deveres da ordem burguesa, a qual tomou metonimicamente a parte pelo todo e chamou-se a si mesma de direito (ou, em sua versão mais atualizada, estado democrático de direito).

A mesma idéia se repete em várias línguas estrangeiras, já que a música recebeu inúmeras traduções. Para ficarmos com as línguas mais acessíveis, tomemos como exemplo a versão originária em francês:

L'etat opprime et la loi triche,

L'impôt saigne le malheureux,

Nul devoir ne s'impose au riche,

Le droit du pauvre est un mot creux.

C'est assez languir en tutelle,

L'égalité veut d'autres lois;

Pas de droits sans devoirs, dit-elle,

Egaux, pas de devoirs sans droits

Em italiano:

Lo stato opprime e la legge imbroglia,
Le tasse dissanguano lo sventurato;
Nessun dovere è imposto al ricco,
Il diritto per i poveri è una parola vuota.
Basta languir nella tutela!
L’uguaglianza chiede altre leggi,
Niente diritti senza doveri, dice,
Uguali, nessun dovere senza diritti


Em espanhol:

La ley nos burla y el Estado
oprime y sangra al productor.
Nos da derechos irrisorios,
no hay deberes del señor.
Basta ya de tutela odiosa,
que la igualdad ley ha de ser,
no más deberes sin derechos,
ningún derecho sin deber

E em inglês:

We're tricked by laws and regulations,
Our wicked masters strip us to the bone.
The rich enjoy the wealth of nations,
But the poor can't sell their own.
Long have we in vile bondage languished,
Yet we're equal one and all
No rights but duties for the vanquished
We claim our rights for duties done

Não é, a meu ver, mero diletantismo hermenêutico ver que a tradução manteve, nas cinco línguas apreciadas, o mesmo conteúdo. É bastante comum ocorrer várias transformações no conteúdo dos versos quando estamos lidando com traduções. Ainda mais para os mais diversos idiomas. E o mais incomum é que o problema "jurídico" não causou reservas nas versões indicadas, ao passo que a dimensão religiosa obteve restrições na tradução, por exemplo, para o português do Brasil: os versos "Messias, Deus, chefes supremos/ Nada esperamos de nenhum" foram alterados para "Senhores, patrões, chefes supremos/ Nada esperamos de nenhum", devido à força do cristianismo entre as esquerdas nacionais. No mínimo, o que pode ser dito é que o tema do direito causa menos celeuma entre nós que o da religião.

Há quem diga que Marx pressupõe e põe um princípio de justiça, em especial em sua famosa "Crítica ao Programa de Gotha", no qual estabelece a célebre divisa: "de cada qual segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades". Estou de acordo, a princípio, ainda que isto não resolva a questão sobre o direito. De qualquer modo, é significativo que também esta idéia se encontre em "A Internacional". Mais uma vez, que seja o exemplo a versão em português:

Abomináveis na grandeza
Os reis da mina e da fornalha

Edificaram a riqueza

Sobre o suor de quem trabalha

Todo o produto de quem sua
A corja rica o recolheu
Queremos que nos restituam

O povo quer só o que é seu


Eis que, a partir desta expressão cultural eminentemente popular - um poema operário -, podemos divagar um pouco sobre a relação entre direito e revolução socialista, ponto no qual continuamos a chapinhar, os teóricos críticos do direito identificados com a obra de Marx. Um dia conseguiremos limpar o terreno e deixar a questão mais clara, superando a tensão congênita ao jurídico, qual seja, a necessidade e desnecessidade, histórica e ao mesmo tempo, do direito. Daí o decantado não-direito! Para além de isso, porém, a abordagem aqui feita leva a duas outras importantes discussões: a da organização autogestionária do governo dos produtores e a da universidade popular que ressalte os saberes contra-hegemônicos e as culturas sujigadas pelo modo de produção imperante. Certamente, duas necessárias postagens que aparecerão nos próximos domingos e, oxalá seja assim, também na realidade social.


3 comentários:

  1. A interpretação generalista de muitos aspetos da obra marxiana transformou-a em algo estéril e incapaz de manter a devastadora crítica original no decorrer do tempo. Não à toa, comunas do mundo todo misturaram no mesmo caldeirão da causa socialista a necessidade do ateísmo, sem considerar que nem a mais profunda mercantilização e simplificação das práticas religiosas foi capaz de alterar a necessidade intransponível do ser humano por alguma tentativa de elevação espiritual. É relevante notar, inclusive, que ignorando este aspecto, toda as tentativas de transformação são amputadas pelo pescoço e nunca haverá uma revolução social em sua plenitude. Comunas do mundo, voltem ao planeta Terra!

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  2. Ricardo,

    Outro texto muito interessante. Concordo em grande parte com tuas colocações. Faço apenas algumas considerações.

    O direito, como demarcamos insistentemente, possui uma ligação genética com a produção e reprodução do capital. O que não significa que não seja um campo de tensões - apartado da luta de classes. Há, a meu ver,um núcleo essencial - entendicomo locus da continuidade - vinculado à produção e realização do valor e outro, evidentemente em interação dialética, compreendido como causalidade posta, relacionado à teleologia juridica do antogonismo social.Nesse sentido, as reinvincações imediatas da classe trabalhadora assumem necessariamente a forma jurídica.
    Na "Internacional", esse horizonte aparece: a expressão poética da alienação do trabalho e das das formas mediatizadas de dominacao social representada pelo direito e estado.Agora, se não temos uninamidade no tocante aos possíveis significados do significante direito, imagine em uma canção revolucionária. A no imaginário popular uma vinculação entre direito e justiça, que não deve ser subestimada. Por isso, falar em um novo direito trás tanto peso ideológico como problemas na práxis política.

    Grande Abraço
    Moisés

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