sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Há um ano, em Teresina...


Dois forasteiros aportaram por estas paragens. Umas barbas estranhas, um sotaque diferente... O que será que eles queriam?

Relutante e desconfiada, decidi me aproximar. Como pano de fundo, um mini-curso com um título que mais parecia um eco: “a crítica da crítica crítica...” ( “a sagrada família jurídica”).

Confesso que não estava muito predisposta para o evento. A cabeça dolorida pelo dente que havia arrancado no dia anterior por conta do bendito aparelho, o mau humor por não estar assistindo ao ” Fórum Íbero-Américano de Direito” que acontecia simultaneamente e que prometia ser um evento de debates e novas idéias. Tudo culpa do Macell que praticamente me obrigou a ir ao mini-curso!

Retornei à UESPI onde havia me formado um ano antes- sem poucos traumas. Foi lá que o mini-curso aconteceu.

Então eles começaram: Kant, Hegel, Marx... Até aí tudo bem. O primeiro ano da graduação havia sido razoavelmente bem aproveitado. Depois a coisa toda começou a tomar um rumo muito estranho: Stucka, Pachukanis, Boaventura, Sidekum, Alfonsim, Freire, Warat, Lyra Filho e até mesmo Saramago? Pensei comigo: “Peraí, cadê o bom e velho direito dogmático, ou sua crítica bem alinhada, cortês, de riso desdenhoso?”. Onde eu havia me metido?

Mantive-me um pouco afastada dos facilitadores, ainda que trocasse uma ou duas palavras a partir do segundo dia. Eu precisava de distância para pensar...

Percebi, então, que ali eu estava adentrando numa das mais profundas, conscientes, sensíveis e avassaladoras críticas às nossas instituições e aí também, obviamente, ao direito. Um “pré-ssentimento” de um porvir...

Ao final do mini-curso, que foi muito intenso, eu sabia que algo havia acontecido. E era dentro de mim. Uma voz que havia quase emudecido por conta de desilusões acadêmicas. Eu podia ouvir as cadeias rompendo e tudo o que eu havia reprimido por conta do curso de direito (por motivos que não cabem nesta postagem), simplesmente desaguando, águas rolando como no poema do Rosa ( Águas da Serra).

Não me senti revolucionária como os outros participantes- para mim eles eram revolucionários! Eles me pareciam bem mais maduros quanto a isso e acho que eu teria ainda muito o que resolver antes de me reconhecer como tal, mas a sensibilidade, o desejo de transformação, a perspectiva do plural, a dialogicidade, a ludicidade ( a literatura!), o sonho... Tudo estava de volta! E eu mal cabia em mim de contentamento.

E, bom, eles foram embora. Aqueles barbados de sotaque diferente. Soube que logo depois se tornaram professores e que hoje são vozes chaves do “u-tópico”, que aqui interpreto como o lugar que ainda pode ser...

Foram embora, mas deixaram um importante legado dentro desta que vos escreve.

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Trecho de Águas da Serra ( João Guimarães Rosa- Magma)

“(...)

E então, do semi-sono dos paraísos

perfeitos,

os diques se romperam,

forças livres rolaram,

e veio a ânsia que redobra ao se fartar,

e os pensamentos que ninguém pode deter,

e novos amores em busca de caminhos,

as águas e as lágrimas sempre correndo,

e Deus talvez ainda dormindo.”



8 comentários:

  1. Hoje eu pulei da cama cedo. Peguei o caderno ornado com os ipês teresinenses e refleto de lembranças escritas do sul do país para rabiscar algumas considerações a serem feitas logo mais num debate sobre os 20 anos do ECA, organizado pelo centro acadêmico da UESPI.

    Quando coloquei a data no topinho da folha, me arrebataram as lembranças da mesma data de anos atrás. Data que me remete à arte do encontro, à vida, nas palavras do poeta. O encontro que me tira o fôlego, que me tira as capas, que embaralha as idéias, que alimenta os sonhos e enchem de coragem e esperança que explodem em ações.

    Em 12 de novembro de 2009, dividida entre as oficinas realizadas com as crianças e adolescentes trabalhadores e o mini-curso sobre a crítica crítica crítica, percebi (e agradeci!) mais uma vez os motivos de nossos caminhos terem se cruzados.

    Os rebuliços são muitos e verbalizá-los, para mim, é um desafio. Porém, sentir e viver vocês foi o melhor que pude fazer desde anos atrás ... novembro nunca mais foi o mesmo!!!

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  2. Belíssima lembrança. Por mais que não seja eu muito afeto a datas astrológicas para relembranças, elas servem para que todos se sintam impelidos a elas. Relembranças remetem a esperanças, as quais não tenho, porque imprimem passividade às palavras, uma verdadeira subliminaridade lingüística. Prefiro AGIRANÇA! Mais democrática, mais participativa, revolucionária! Todos precisamos de poesia, de brincar com os sonhos, assim como todos necessitamos do barro nos pés e graxa nas mãos. Nem o céu nem o inferno: nosso espaço é este mundo real que nos preme e agonia. Dos corações saltam vivas e tristezas. Os encontros e desencontros que a vida impõe são severos, rigorosos, implacáveis. Mas é nessa lida que nos construímos. Talvez seja o caso de lembrar de algum poema também e me expressar no esplendor da carne-língua. Que a minha voz tenha o som da de outro poeta já visitado por aqui e por mim - Araújo Jorge:

    "Canto de Ódio e Amor"

    Sempre nos encontraremos
    não adianta fugir, nos encontraremos.

    Meu passo estará adiante, minha mão estará à frente
    aguçada coma uma lâmina.

    Sim, sou cristão. Sei amar e odiar com justiça.
    Não darei a outra face à bofetada
    nem terás tempo.

    Só que não merecias a terra, a doce terra democrática,
    onde te dissolverás com antecedência
    para que o ódio termine.

    Meu irmão, irei buscar-te, no fundo do abismo de mil degraus
    nos feriremos juntos, as mãos, o coração,
    dividirei o meu gole d'água
    entregarei meu pão, cederei minha cama.

    Oh! o amor, sim amarei! - Mais que meu braço, secarei meu corpo
    me dispersarei na total doação, terei mil corações,
    descansarei no grande berço, na doce terra democrática,
    para que haja amor.


    ("Estrela da Terra", 1947)

    Na dureza dos versos, a crueza da vida. Abraços felizes, amigos piauienses, por um ano de conheceres transcendentais!

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  3. Parabéns aos amigos! Tocaram corações e mentes! Agora, Pazello, o homem da "Agirança". E Ernst Bloch e seu Pricípio Esperança? A esperança enquanto princípio motor subjetivo de uma utopia concreta?!

    Abração
    Moisés

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  4. Sem muito a acrescentar ao belíssimo relato de sentimentos feito por Nayara e à lembrança de Andreia, só posso dizer que aqueles foram dias revoluvionários, dentro da perspectiva mais política e ao mesmo tempo mais sentimental que se pode ter!

    Juliana de Andrade.

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  5. A partir da sensível reflexão piauiense, Moisés nos dirige a um dos mais instigantes debates dentro do marxismo: a utopia. Na mosca, Moisés! Uma vez mais, aliás!

    Apenas a título de inquietação minha, já que tenho rumado a ela nos últimos tempos, gostaria de dizer algo. A utopia concreta e o princípio esperança de Bloch dialogam profusamente com o resgate da subjetividade revolucionária do marxismo construído na periferia. Na América Latina, as obras de revolucionários como Mariátegui e Guevara são efusivos exemplos. Trata-se de todo um caminho a se percorrer.

    Quanto ao pricípio esperança, em específico, é preciso fazer alguma ressalva antes e apontar para o fato de que conflui para a noção de "agirança" que defendi no comentário anterior. Apesar de longe de ser filólogo, eu diria que é bastante útil lembrar que nas principais línguas européias colonizadoras, apenas as ibéricas mantêm unida a expressão esperar em uma única palavra. Explico-me: pegando o alemão, o inglês, o francês e o italiano, veremos com alguma facilidade a distinção entre "warten" e "hoffen" (em alemão); "wait" e "hope" (em inglês); "espérer" e "attendre" (em francês); "aspettare" e "sperare" (em italiano); ou seja, entre esperar (aguardar) e esperar (ter esperança).

    Creio que esta distinção aponta para o que chamei de agirança. E, em boa medida, está contemplada pelo princípio esperança ("Prinzip Hoffnung"), de Bloch. Para este, a esperança tem a ver com a concretude das necessidades humanas (com ênfase na fome e nos sonhos), logo a produção e reprodução da vida humana concreta. É impossível, assim, falar em esperança e aceitar esperar. Tal passividade não se coaduna com o princípio blochiano. Ele é antes de tudo um móvel (movimento, mobilização) que ativa a ação humana, dentro das estruturas da realidade. Não há que negar a importância dessa construção teórica dentro do materialismo histórico, mesmo que abertamente resgatando a tradição humanista de Marx, uma polêmica dentro deste legado interpretativo. Ainda que feita em alemão, essa reflexão não perde seu quinhão de universalidade, projetado na vida concreta, tanto no âmbito da economia como no da cultura. Totalidade, portanto.

    Agradeço ao Moisés, por suscitar a discussão, e poder expor o que penso sobre isso.

    Gostaria, por fim, de mais uma vez agradecer às amigas Naiara, Andréia e Juliana. Palavras que dão corpo a esta agirança, por conta da singela atuação que o Luiz e eu tivemos em Teresina. Certamente, fizemos pouco. Vocês estão na imcuimbência de multiplicar este pouco que fizemos. Grande abraço!

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  6. Andréia, minha amiga sensível e corajosa... Ju, querida! Realmente é complicado tentar explicar determinadas experiências, determinados encontros. Enfim... Talvez não seja para ser explicado, mesmo. Provavelmente o melhor a ser feito, a melhor "explicação" seja o que Pazello nos cobra e que eu acredito que seja uma conseqüência natural ( tratando das pessoas envolvidas...): "agirança". Mas isso de um modo muito nosso, por ora- temos que levar em conta as diferenças de temperatura e pressão. Contudo, os resultados começarão a aparecer, é certo (se é que já não começaram a dar as caras por aqui). Disto eu não ousaria duvidar.

    Moisés, obrigada pela defesa da esperança. Pazello precisa dessas cutucadas de vez em quando...

    :)

    Grande xeru em tod@s!

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  7. Mas que beleza de homenagem, Nayara!
    Aqueles intensos dias na UESPI ainda vão ficar muito tempo ressoando por aqui, não é mesmo?

    Espero que possamos transformar em experiência política todas aquelas idéias que tivemos a felicidade de debater, graças ao "Corajoso" convite dos piauienses em convidar dois barbudos para atravessar o país.

    Foi uma oportunidade incrível para colocar algumas idéias no lugar, e esquecer outras. Enfim, só o que a experiência do movimento estudantil pode proporcionar!

    Aproveito para agradecer aos amigos Macell e o Lucas, todo pessoal do CORAJE, do CAJUÍNA, e outros estudantes que participaram do minicurso: pelos diálogos, pela organização da atividade, pela linda paisagem do encontro das águas, e por acreditarem na viabilidade da atividade.

    Ainda não esquecemos de nossa dívida, que é reproduzir esta experiência em outros lugares, assim como sistematizar um texto completo para ser divulgado por aqui.

    Abraços

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  8. Olha só...

    Essa idéia de "repetir" a experiência é algo que eu pensava muito mesmo. Outras assessorias, Brasil adentro recebendo vocês, a troca de experiências, novas reflexões... Muito boa idéia!

    Estou na torcida desta empreitada!

    Bjão!

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