sexta-feira, 25 de abril de 2014

Sugestão de oficina para o LUTAS Londrina


Luiz Otávio Ribas


Nunca esquecer que é fundamental contar com as próprias forças”.
A consciência histórica trata de nossa responsabilidade diante de nossa realidade, apoiado no estudo de nosso próprio passado, da herança cultural formadora do presente.
Leopoldo Zea

Minha sugestão é que vocês criem espaços de diálogo com o pretexto de discussão da grade curricular. Uma possibilidade são os círculos de cultura, com dinâmicas de grupo e a arte.
Uma experiência legal no NAJUP Luiza Mahin foi uma oficina de cartazes com o questionamento “Para que serve seu conhecimento?”
O grupo do SAJU-BA organizou uma instalação no hall da faculdade denunciando os casos de machismo vivenciados pelas mulheres.
Vocês podem ouvir relatos nas salas de aula e coletar frases que vocês considerem “pérolas” dos professores e alunos. Com base nestas frases vocês buscam sintetizar um tema que pode ser extraído. A frase é escolhida porque abrange um número grande das outras falas, porque demonstra uma dificuldade de compreensão da realidade, porque expressa uma visão de mundo fatalista e porque representa uma opinião opressora.
Numa conversa em grupo vocês pensam frases que seriam a negação desta, até chegar em apenas uma frase, que seja afirmativa e que contenha a visão de mundo de vocês, seus antivalores e uma possibilidade de ação para libertação.
Com base nestas frases (tema e contratema) vocês pensam perguntas. Trata-se da problematização. Tanto perguntas que fariam para as pessoas que falaram ou que expressem dúvidas de vocês sobre o assunto (perguntas exploratórias), quanto perguntas que encaminhem ações transformadoras (perguntas problematizadoras da ação).
Agora segue um estudo de aprofundamento teórico sobre as perguntas levantadas. Com base neste estudo podem ser pensados temas para serem abordados em uma oficina (conteúdo programático).
No fim, é só planejar a ação cultural. Quanto tempo vai durar, onde vai ser, qual o material didático necessário, os recursos audiovisuais etc.
Na prática pedagógica vocês podem aproveitar para anotar novas frases e recomeçar o trabalho. Ou podem ser usados temas que ficaram de lado na escolha do tema na primeira vez.
No círculo de cultura todos falam, se quiserem. Os educadores-educandos proporcionam a reflexão, com perguntas planejadas e outras improvisadas. O objetivo é planejar e executar uma ação. Toda prática pedagógica precisa ser também formadora para que possa ser reproduzida por quem participa.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ditadura e incontinência

Ricardo Prestes Pazello,
professor da Faculdade de Direito da UFPR


1º de abril é o dia da mentira, como todos sabem. Alguns, porém, dissimulam não saber que é o dia do golpe que implementou a ditadura civil-militar de 1964 no Brasil. Os que mais deveriam estar alfabetizados neste singelo conhecimento são os juristas. É ainda possível um douto bacharel em direito, com anel e gravata, além de título de doutor, desconhecer o razoável? Pode um jurista dar-se ao respeito e colocar-se ao lado da ditadura?*

Pois é. Ao que parece, o imponderável parece ainda ter vez. É o que se pode concluir da pretensa aula do professor Eduardo Lobo Botelho Gualazzi**. Dentre as muitas qualidades deste professor – quase todas elas relatadas no verbete dedicado a seu nome no projeto Wikipédia*** – está a de escrever suas aulas, para lê-las, tal e qual faziam os velhos “lentes” das faculdades de direito, diante da estudantada, “sequiosa” por seu conhecimento.

No dia 1º de abril (dia de 48 horas, pelas "confusões" no calendário dos militares) de 2014, data que comemora o dia da mentira e rememora os 50 anos do golpe militar de 1964, Botelho Gualazzi dá a conhecer a seus alunos a aula intitulada “Continência a 1964”. O título causa espanto. 50 anos depois do golpe e 29 anos depois da queda do regime ditatorial, o lente e causídico continua se orgulhando de bater continência ao escrofuloso evento cinqüentenário. Mais espantosa é a rubrica que serve de subtítulo à assim chamada aula: “aula proferida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no 50º aniversário da Revolução de 31 de março de 1964”.

Incontinenti, o preletor arregimenta seus argumentos e, mesmo diante do ponderável espírito que toma a sociedade brasileira ao rechaçar qualquer tipo de desmemória ou falsa memória sobre o golpe de 1964, escreve uma “lição” sobre como se forma uma personalidade hostil à democratização e às transformações sociais. Sem tirar nem pôr, o muitíssimo respeitoso professor refere-se a si mesmo quando tinha 17 anos de idade e apoiou o golpe de 1º de abril em “silêncio firme”: cultivava “a) aristocratismo; b) burguesismo; c) capitalismo; d) direitismo; e) euro-brasilianismo; f) família; g) individualismo; h) liberalismo; i) música erudita; j) pan-americanismo; l) propriedade privada; m) tradição judaico-cristã”. A ordem alfabética alude a alguma ironia, logo precipitada numa avalancha de insensatez e desrespeito pela história.

O principal argumento do didata é a guerra fria. Em face dos horrores de Stálin, diz-nos o mestre, não poderíamos deixar “apoderar-se” o Brasil por uma “minoria secreta de brasileiros/as, com alma vermelha” e implementar uma ditadura! A solução do insigne explicador: uma ditadura de direita! As razões do nobre prelecionador não deixam de ter um quê de verdade: “a Revolução de 31 de março de 1964 consistiu na preservação [sublinhado no original] da consolidação histórica do perfil brasileiro, assentado em nosso país desde 1500 (Descobrimento do Brasil)”. Infelizmente, todavia, o ilustre professor não percebeu estar usando inadequadamente uma figura de linguagem para arrazoar seu entendimento. Toma a si mesmo como o “perfil brasileiro” por excelência (aristocratista, direitista, individualista...) e vê, no 1º de abril de 1964, a salvaguarda dessas imodestas características humanas, ou seja, toma a parte pelo todo. O quê de verdade na aludida metonímia, no entanto, reside no fato de que desde 1500 assentou-se no Brasil uma minoritária mas poderosa parcela de “euro-brasileiros” que, é verdade, são especialistas em, sem reocupações com ordens alfabéticas, genocídio, etnocídio, escravismo, ditadura, tortura, corrupção, patriarcalismo e... bacharelismo.

No curso de sua conferência, Botelho Gualazzi revela ser “janista” (cultor da figura de Jânio Quadros), ao utilizar a frase: “o século XX foi o forno crematório das ideologias”. A seu ver, em 2014, já houve um “apaziguamento de ideologias”. Partindo de um antimarxismo vulgar, o ilustríssimo lente considera “ideologias políticas” apenas aquelas contra as quais se coloca. De memória curta (em todos os sentidos), esquece que acabara de caracterizar-se por um perfil burguesista, capitalista, direitista, liberalista, pan-americanista... Mas sua conclusão é “insofismável”: “o Capitalismo e o Liberalismo não [sublinhado] são ideologias”. Uma grande explicação para razões tão grandes quanto.

Seu antimarxismo vulgar vai mais longe: calcula o PIB do Brasil de 1964 e de 2014, e percebe que ele mais que triplicou neste período.**** Portanto, “os líderes civis e militares da Revolução de 1964 sabiamente consolidaram, ao longo de vinte e um anos (1964-1985), infra-estrutura e superestrutura” que imunizaram o país da subversão e do radicalismo ideológico. Uma vez mais, o ponto cego: a subversão dos ditadores e radicalismo “direitista” não refletem no espelho; por outro lado, uma vez mais o ponto vidente: a ditadura foi feita não só por militares, mas também por civis. Por fim, um ponto de trapezista: o milagre econômico multiplicou nossa economia, fazendo do Brasil um país “propício” a expurgos, chacinas e torturas, ou seja, para uma infraestrutura baseada na concentração de renda (mesmo que multiplicada), uma superestrutura represssiva, burocrática, corrupta e antidemocrática.

Além de “janista”, o livre-docente é “confederacionista” e profeta. O futuro do mundo – em 2064 – vai ser marcado por sucessivas confederações (nacionais, continentais, mundial – e, provavelmente, intergaláctica, como nos filmes enlatados “euro-americanistas”). O Brasil, por sua vez, terá eliminado a “peste rubra” dos inofensivos comunistas de hoje. Para o nobilíssimo doutor, o General Tempo “conduzirá tal minoria ao cemitério, a curto, médio e longo prazo”. É claro, o exército “temporal” de referido general tem seu estado-maior: no passado, Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo – e como freqüentaram os campos-santos (ainda que tornados valas-comuns) estes senhores!***** No presente, cerram fileiras no exército do General Tempo, para trucidar os pestilentos vermelhos, o Poder Judiciário,****** a Mídia, os Pluripartidos, a Constituição.

As mãos sujas dos que prenderam ilegalmente, torturaram, assassinaram e, para completar, ocultaram cadáveres não se limpam com queimas de arquivo nem tampouco com reconhecimento de firma (Gualazzi reconhece firma de sua aula escrita). Não há mais espaço, em nossa sociedade, para estes furibundos argumentos e ações. Nesta aula, ministrada nas Arcadas do São Francisco, só houve ensinamentos da juventude,******* que relembraram as sevícias cometidas pelo regime de exceção e adentraram na sala do senhor Botelho Gualazzi cantando a “Opinião” de Zé Kétti: “podem me prender, botem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”. No dia 1º de abril, um professor dá aula de mentira, e causa incontinência em toda a comunidade jurídica brasileira, mas os estudantes, como documentado no vídeo abaixo, retomam a verdade, a memória e a justiça!


Vídeo, na íntegra, do início da aula de Gualazzi e do ato político dos estudantes da USP
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*Dois episódios são ilustrativos das polarizações que tiveram vez entre estudantes, em geral, e estudantes de direito, em particular, acerca do golpe de 1964: a 6 de abril de 1964, 120 estudantes da Faculdade de Direito da UFSC assinam um manifesto em apoio ao dia da mentira; em 1967, 400 estudantes se refugiam da prisão, no prédio da Faculdade de Direito da UFMG, e deles há um registro fotográfico histórico.

**Disponibilizamos, aqui, a íntegra da aula ministrada por Botelho Gualazzi, no dia 1º de abril.

***Vale a pena conferir o verbete de Wikipédia dedicado ao professor Botelho Gualazzi e conhecer melhor de quem se trata.

****Um excelente contraponto a tais interpretações, é a aula inaugural da Faculdade de Direito da USP, feita por seu docente, o professor Gilberto Bercovici, sobre “Reformas de base e superação do subdesenvolvimento

*****Interessante conferir alguns pronunciamentos sobre os números (oficiais e não oficiais) referentes aos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar, bem como alguns relatos que saíram nos meios de comunicação nesta semana sobre a questão camponesa e indígena.

******Significativo é o depoimento do ministro do STF, Marco Aurélio, dizendo que o golpe de 1964 foi um “mal necessário”.

*******A juventude, desde 2012, vem ensinando a justiçar os responsáveis por assassinatos e torturas do regime militar, pela prática de escrachos. Neste 1º de abril, houve o escracho do ex-militar e delegado Aparecido L. Calandra, em São Paulo, e do ex-coronel Pedro Ivo dos Santos Vasconcelos, em Belo Horizonte.