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terça-feira, 1 de abril de 2014

Ditadura e incontinência

Ricardo Prestes Pazello,
professor da Faculdade de Direito da UFPR


1º de abril é o dia da mentira, como todos sabem. Alguns, porém, dissimulam não saber que é o dia do golpe que implementou a ditadura civil-militar de 1964 no Brasil. Os que mais deveriam estar alfabetizados neste singelo conhecimento são os juristas. É ainda possível um douto bacharel em direito, com anel e gravata, além de título de doutor, desconhecer o razoável? Pode um jurista dar-se ao respeito e colocar-se ao lado da ditadura?*

Pois é. Ao que parece, o imponderável parece ainda ter vez. É o que se pode concluir da pretensa aula do professor Eduardo Lobo Botelho Gualazzi**. Dentre as muitas qualidades deste professor – quase todas elas relatadas no verbete dedicado a seu nome no projeto Wikipédia*** – está a de escrever suas aulas, para lê-las, tal e qual faziam os velhos “lentes” das faculdades de direito, diante da estudantada, “sequiosa” por seu conhecimento.

No dia 1º de abril (dia de 48 horas, pelas "confusões" no calendário dos militares) de 2014, data que comemora o dia da mentira e rememora os 50 anos do golpe militar de 1964, Botelho Gualazzi dá a conhecer a seus alunos a aula intitulada “Continência a 1964”. O título causa espanto. 50 anos depois do golpe e 29 anos depois da queda do regime ditatorial, o lente e causídico continua se orgulhando de bater continência ao escrofuloso evento cinqüentenário. Mais espantosa é a rubrica que serve de subtítulo à assim chamada aula: “aula proferida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no 50º aniversário da Revolução de 31 de março de 1964”.

Incontinenti, o preletor arregimenta seus argumentos e, mesmo diante do ponderável espírito que toma a sociedade brasileira ao rechaçar qualquer tipo de desmemória ou falsa memória sobre o golpe de 1964, escreve uma “lição” sobre como se forma uma personalidade hostil à democratização e às transformações sociais. Sem tirar nem pôr, o muitíssimo respeitoso professor refere-se a si mesmo quando tinha 17 anos de idade e apoiou o golpe de 1º de abril em “silêncio firme”: cultivava “a) aristocratismo; b) burguesismo; c) capitalismo; d) direitismo; e) euro-brasilianismo; f) família; g) individualismo; h) liberalismo; i) música erudita; j) pan-americanismo; l) propriedade privada; m) tradição judaico-cristã”. A ordem alfabética alude a alguma ironia, logo precipitada numa avalancha de insensatez e desrespeito pela história.

O principal argumento do didata é a guerra fria. Em face dos horrores de Stálin, diz-nos o mestre, não poderíamos deixar “apoderar-se” o Brasil por uma “minoria secreta de brasileiros/as, com alma vermelha” e implementar uma ditadura! A solução do insigne explicador: uma ditadura de direita! As razões do nobre prelecionador não deixam de ter um quê de verdade: “a Revolução de 31 de março de 1964 consistiu na preservação [sublinhado no original] da consolidação histórica do perfil brasileiro, assentado em nosso país desde 1500 (Descobrimento do Brasil)”. Infelizmente, todavia, o ilustre professor não percebeu estar usando inadequadamente uma figura de linguagem para arrazoar seu entendimento. Toma a si mesmo como o “perfil brasileiro” por excelência (aristocratista, direitista, individualista...) e vê, no 1º de abril de 1964, a salvaguarda dessas imodestas características humanas, ou seja, toma a parte pelo todo. O quê de verdade na aludida metonímia, no entanto, reside no fato de que desde 1500 assentou-se no Brasil uma minoritária mas poderosa parcela de “euro-brasileiros” que, é verdade, são especialistas em, sem reocupações com ordens alfabéticas, genocídio, etnocídio, escravismo, ditadura, tortura, corrupção, patriarcalismo e... bacharelismo.

No curso de sua conferência, Botelho Gualazzi revela ser “janista” (cultor da figura de Jânio Quadros), ao utilizar a frase: “o século XX foi o forno crematório das ideologias”. A seu ver, em 2014, já houve um “apaziguamento de ideologias”. Partindo de um antimarxismo vulgar, o ilustríssimo lente considera “ideologias políticas” apenas aquelas contra as quais se coloca. De memória curta (em todos os sentidos), esquece que acabara de caracterizar-se por um perfil burguesista, capitalista, direitista, liberalista, pan-americanista... Mas sua conclusão é “insofismável”: “o Capitalismo e o Liberalismo não [sublinhado] são ideologias”. Uma grande explicação para razões tão grandes quanto.

Seu antimarxismo vulgar vai mais longe: calcula o PIB do Brasil de 1964 e de 2014, e percebe que ele mais que triplicou neste período.**** Portanto, “os líderes civis e militares da Revolução de 1964 sabiamente consolidaram, ao longo de vinte e um anos (1964-1985), infra-estrutura e superestrutura” que imunizaram o país da subversão e do radicalismo ideológico. Uma vez mais, o ponto cego: a subversão dos ditadores e radicalismo “direitista” não refletem no espelho; por outro lado, uma vez mais o ponto vidente: a ditadura foi feita não só por militares, mas também por civis. Por fim, um ponto de trapezista: o milagre econômico multiplicou nossa economia, fazendo do Brasil um país “propício” a expurgos, chacinas e torturas, ou seja, para uma infraestrutura baseada na concentração de renda (mesmo que multiplicada), uma superestrutura represssiva, burocrática, corrupta e antidemocrática.

Além de “janista”, o livre-docente é “confederacionista” e profeta. O futuro do mundo – em 2064 – vai ser marcado por sucessivas confederações (nacionais, continentais, mundial – e, provavelmente, intergaláctica, como nos filmes enlatados “euro-americanistas”). O Brasil, por sua vez, terá eliminado a “peste rubra” dos inofensivos comunistas de hoje. Para o nobilíssimo doutor, o General Tempo “conduzirá tal minoria ao cemitério, a curto, médio e longo prazo”. É claro, o exército “temporal” de referido general tem seu estado-maior: no passado, Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo – e como freqüentaram os campos-santos (ainda que tornados valas-comuns) estes senhores!***** No presente, cerram fileiras no exército do General Tempo, para trucidar os pestilentos vermelhos, o Poder Judiciário,****** a Mídia, os Pluripartidos, a Constituição.

As mãos sujas dos que prenderam ilegalmente, torturaram, assassinaram e, para completar, ocultaram cadáveres não se limpam com queimas de arquivo nem tampouco com reconhecimento de firma (Gualazzi reconhece firma de sua aula escrita). Não há mais espaço, em nossa sociedade, para estes furibundos argumentos e ações. Nesta aula, ministrada nas Arcadas do São Francisco, só houve ensinamentos da juventude,******* que relembraram as sevícias cometidas pelo regime de exceção e adentraram na sala do senhor Botelho Gualazzi cantando a “Opinião” de Zé Kétti: “podem me prender, botem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”. No dia 1º de abril, um professor dá aula de mentira, e causa incontinência em toda a comunidade jurídica brasileira, mas os estudantes, como documentado no vídeo abaixo, retomam a verdade, a memória e a justiça!


Vídeo, na íntegra, do início da aula de Gualazzi e do ato político dos estudantes da USP
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*Dois episódios são ilustrativos das polarizações que tiveram vez entre estudantes, em geral, e estudantes de direito, em particular, acerca do golpe de 1964: a 6 de abril de 1964, 120 estudantes da Faculdade de Direito da UFSC assinam um manifesto em apoio ao dia da mentira; em 1967, 400 estudantes se refugiam da prisão, no prédio da Faculdade de Direito da UFMG, e deles há um registro fotográfico histórico.

**Disponibilizamos, aqui, a íntegra da aula ministrada por Botelho Gualazzi, no dia 1º de abril.

***Vale a pena conferir o verbete de Wikipédia dedicado ao professor Botelho Gualazzi e conhecer melhor de quem se trata.

****Um excelente contraponto a tais interpretações, é a aula inaugural da Faculdade de Direito da USP, feita por seu docente, o professor Gilberto Bercovici, sobre “Reformas de base e superação do subdesenvolvimento

*****Interessante conferir alguns pronunciamentos sobre os números (oficiais e não oficiais) referentes aos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar, bem como alguns relatos que saíram nos meios de comunicação nesta semana sobre a questão camponesa e indígena.

******Significativo é o depoimento do ministro do STF, Marco Aurélio, dizendo que o golpe de 1964 foi um “mal necessário”.

*******A juventude, desde 2012, vem ensinando a justiçar os responsáveis por assassinatos e torturas do regime militar, pela prática de escrachos. Neste 1º de abril, houve o escracho do ex-militar e delegado Aparecido L. Calandra, em São Paulo, e do ex-coronel Pedro Ivo dos Santos Vasconcelos, em Belo Horizonte.

segunda-feira, 31 de março de 2014

A advocacia política e os 50 anos da ditadura: estudos e personagens

Para relembrar os 50 anos do golpe de 1º de abril, o blogue Assessoria Jurídica Popular reúne um conjunto de indicações bibliográficas que trataram do tema da advocacia durante a ditadura civil-militar. A figura do advogado de presos políticos é uma espécie de antecessora da do advogado popular consciente de sua tarefa militante. É certo que antes de 1964 a advocacia já havia flertado com a organização popular e portanto com a AJP. A mítica figura de Luiz Gama, no século XIX, nos remete a isso. Mas também a dos advogados de associações operárias, partidos de esquerda (em especial, o PC), sindicatos de trabalhadores e dos primeiros movimentos sociais mais próximos dos que temos hoje, como as Ligas Camponesas. Assim, afora Luiz Gama, igualmente ganham projeção Sobral Pinto, Francisco Julião, Miguel Pressburger... (sobre este último, continua não superada a dissertação de Luiz Otávio Ribas).

homenageamos, em nosso portal, alguns advogados assassinados pela repressão, direta ou indiretamente vitimados pela ditadura, como Eugênio Lyra, Agenor Martins de Carvalho, Joaquim das Neves Norte e Paulo Fonteles.

Também, participamos do projeto #desarquivandoBR, sobre o 1º de abril no Paraná, em 2012, e, na última semana, divulgamos a essencial série documental de Silvio Tendler, "Os advogados contra a ditadura".


Muitos estudos e memórias já foram e continuam sendo publicados para lembrar este importante momento, "página infeliz de nossa história, passagem desbotada da memória das nossas novas gerações" (para usar os versos da canção de Chico Buarque).

Citamos como exemplos, dentre os vários possíveis:

Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil (2010) - organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins




Relatos: um advogado na ditadura (2012) - Antônio Carlos Barandier





Edésio Passos: 50 anos de advocacia (2012) - Patrícia Meyer







Também, é importante registrar alguns estudos sobre a justiça de transição no Brasil, como por exemplo:


Verdade, memória e justiça: um debate necessário (2012) - organizado por Rogério Gesta Leal





Justiça de transição: contornos do conceito (2013) - Renan Honório Quinalha




Além desses, também gostaríamos de ressaltar a existência de pelo menos mais dois estudos, disponíveis na internet, que destacam a militância política e jurídica de defensores de direitos humanos durante a ditadura. São eles:


Retrato da repressão política no campo: Brasil, 1962-1985 (2011) - Ana Carneiro e Marta Cioccari (ver o item que finaliza o livro: "Advogados vítimas de repressão", com informações livremente extraídas de nosso blogue)





Advocacia em tempos difíceis (2014) - coordenado por Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz





Em sede da relação entre advocacia e ditadura, ainda há muita história a ser contada. Seja porque a história da intelectualidade brasileira de esquerda, de extração universitária, está vincada nos cursos jurídicos (só para exemplificar, bacharelaram-se em direito desde Caio Prado Júnior até Milton Santos, passando por Celso Furtado e Paulo Freire), seja porque todo preso político, desaparecido ou não, deparou-se com a estrutura de estado e, de alguma forma, recebeu algum tipo de contato com advogados, no mínimo, dativos. Mesmo no caso de camponeses e indígenas mortos e/ou chacinados pela ditadura, há toda uma investigação a se trilhar, nesse sentido.

Muitos nomes precisam ainda ser conhecidos e restabelecidos em sua grandeza, de luta (ou às vezes de simples oposição) contra o regime de força que se instaurou em nosso sombrio "medievo". Réstias - amplas e expansivas - das sombras da escravidão e da repressão ditatorial se lançam sobre nós ainda hoje, a cada tortura em presídio ou delegacia, a cada invasão e violência nas periferias, a cada morte ou desaparecimento no campo ou na cidade.


São histórias de contraditórias e reais personagens que, exercendo a advocacia, acabaram por enfrentar, como quixotes, as estruturas, tendo por arma suas utopias. Daí que a desconhecida história de um Henrique Cintra Ferreira de Ornellas, advogado "suicidado" no interior do Paraná, preso junto a seus filhos - de 15 e 17 anos -, no ano de 1973, deve ser resgatada e explicada. 

Ornellas, presente! Advogados contra a ditadura, de ontem e de hoje, presente!

***

Ver mais em:

quarta-feira, 26 de março de 2014

Advocacia tem a ver com capacidade de indignação

Resenha do primeiro episódio do programa “Os advogados contra a Ditadura”, de Silvio Tendler

Luiz Otávio Ribas

Silvio Tendler nos presenteia com uma colcha de retalhos de depoimentos de protagonistas e de pessoas próximas dos principais fatos envolvendo a atuação dos advogados contra a Ditadura.
A escolha do título do programa não poderia ser mais acertada. Omar Ferri reforça que a profissão do advogado é “espaço de luta contra a ditadura militar e o terrorismo de Estado que se instalou no Brasil em 1964. Mola inspiradora da atividade política e de protesto contra a Ditadura”. Mário Simas defende que “a posição do advogado já é uma posição política. A opção que ele faz como advogado para este tipo de advocacia ou para este tipo de especialização já é uma opção política”.

(Assista aqui o primeiro episódio)

domingo, 1 de abril de 2012

No dia da mentira, anistiaram a verdade... #desarquivandoBR


31 de março/1º de abril

ontem foi hoje?
ou hoje é que é ontem?

("Dúvida revolucionária", de José Paulo Paes, no livro "Calendário perplexo") 

A semana que passou e a que começa carregam em suas datas o peso de uma história ainda exilada; mais, ainda aprisionada. A história-exílio permanece degredada nos documentos políticos desterrados pelo medo de velhas e novas gerações de responsáveis pelo financiamento e prática da violência ditatorial dos anos de 1964 a 1980. A história-prisão continua acorrentada na inconsciência da perpetuação comezinha da tortura, da violência e da desumanização do cárcere e da fábrica, para dizer o mínimo. Uma semana se encerrou no dia 31 de março; a outra inicia no 1º de abril. É esta a semana que devemos desarquivar, fazendo lembrar o grande historiador Miguel León-Portilla que, em seu “A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos astecas”, traz como primeira manchete de seu livro a seguinte frase: “e tudo isso se passou conosco...”

Brasil, uma semana de ações e reações

Pelo Brasil afora, desde segunda-feira, dia 26 de março de 2012, várias mobilizações ganharam destaque nacional, em especial por efetuarem denúncias públicas daqueles que foram responsáveis pela ditadura civil-militar que assolou o país nas décadas de 1960, 70 e 80.

Inspirados em atos de justiça popular, como as “funas” das nações irmãs da América Latina, algumas mobilizações brasileiras trouxeram à tona o “escracho” de bons velhinhos de hoje, vilões moçoilos de nosso passado recente. Em pichações e rebuliços em frente às casas dos torturadores, se recria entre nós a consciência de nosso passado e ação de nosso presente. A mídia virtual foi abundante ao noticiar essas ações (como registramos na postagem Juventude se levanta contra a tortura, no Brasil), mas também foram abundantes os atos de CENSURA que se perpetuam nos veículos de comunicação hegemônicos, mesmo os que circulam sob a mão invisível da internet.

Por isso, sempre bom será relembrar o vídeo com o Nome dos torturadores escrachados, assim como emocionante é resgatar a justiça para com o chileno Victor Jara, no documentário Funa al asesino de Victor Jara.

Nesta mesma semana, casos como o da Guerrilha do Araguaia ou nomes como os de Vladimir Herzog, Carlos Mariguela e Rubens Paiva voltaram ao noticiário e ao imaginário das esquerdas, certamente órfãs de seus lutadores mas, ao mesmo tempo, prenhes de história, porque a história jamais chegou ao seu fim.

E, talvez, o mais brutalmente importante: aos trancos e barrancos a sociedade de veias abertas consegue recolocar em pauta a ditadura civil-militar no plano da institucionalidade do estado brasileiro. O judiciário terá de enfrentar, sem pressupor a passividade popular, o problema da constitucionalidade da lei da anistia, assim como o executivo terá de nomear a Comissão da Verdade, percebendo que uma comissão que concilie ditadores e guerrilheiros é impossível. Obviamente, que a reação sempre aparece nesse momento, com manifestos e comemorações amputadas – mas, assim, ao menos os lados mostram seus dentes, afiam suas garras e têm de pagar com as conseqüências de seus atos.

Paraná, uma história que não cabe em uma semana

Mesmo nos mais desavisados cantos do Brasil, a questão da verdade sobre a ditadura, que se re-memora neste 31 de março e 1º de abril, veio à tona. Um exemplo é o estado natal deste que escreve – o Paraná.

De uma forma ou de outra, sempre esteve presente em minha vida a história da ditadura. Não só pelo fato de cedo me interessar por música popular, mas também por muito cedo conviver com essas histórias de sevícias, medo e autoritarismo. A mais exemplar delas é de um professor de um famoso colégio estadual da capital curitibana que, nos intervalos e finais de aula, contava aos ouvidos atentos e rebeldes a história do desaparecimento de seus companheiros de luta política e sua epopéia pelo cárcere, notadamente o pau-dee-arara.

As artes paranaenses também dão um representativo sinal ad convivência com este difícil passado. A música de Daniel Faria e os poemas de seu irmão, Hamilton. O livro exilado de Manoel de Andrade, que só foi repatriado em 2009 – os “Poemas para a liberdade”; os romances pitorescos de um professor de filosofia cassado em seus direitos políticos relatando os anos de repressão, nos antológicos “Alegres memórias de um cadáver” e “Antes que o teto desabe”; ou ainda as “Memórias torturadas (e alegres) de um preso político” que estão sendo encenadas no Festival de Teatro de Curitiba.

Tudo isso nos coloca diante de uma verdade que virou história-exílio.

Hamilton Faria recorre à imagética liberdade (como muitos outros por aqui a ela recorreram) e descreve a aporia de se querer o que não se conhece:

Liberdade Me perguntas o que é?Sei pouco, pois pouco vi.É água correndo,rio que não acaba nunca,terra sem fronteiras,gesto, espirro, nuvens,é o corpo, o corpo na gramaos cabelos molhados. É o sertão, a praia, o deserto,sorriso de vento e areiado pescador junto ao mar. Sei lá,o pouco me espanta. É pássaro de ousadiaferindo as asas no ar.

Manoel de Andrade, já no exílio, escreve um discurso de agradecimento aos estudantes peruanos, por terem concedido asilo a seus versos. O ano era 1970:

“Saúdo-vos com minha esperança ardente de poeta e, sobretudo, com minha fé imperecível de revolucionário, vislumbrando a minha, a nossa América, libertada e reconstruída para os nossos filhos e para aqueles que serão os herdeiros dos nossos sonhos. Saúdo-vos, irmãos, porque sei que se hoje estamos dispostos a cair é para que amanhã eles possam nascer já erguidos para a vida”.

Roberto Gomes inventa uma história real, no reencontro de perseguidos políticos num aeroporto do “novo” Brasil – o livro é “Antes que o teto desabe”:

“Conferem datas, nomes, pessoas, antigas manias, lugares, bebedeiras, badernas, olham-se com prazer, desconfiança, não examinam o rosto que aparece, mas o que sabem oculto por anos de fugas, desencontros, heroísmos juvenis, mortes gratuitas, gestos grandiosos, covardias, abraçam-se, não acreditam, afastam-se ligeiramente, medem-se de cima a baixo, dizem: mas não é possível!, voltam aos nomes, fatos, generais, esperanças, golpes, revoluções encenadas nas madrugadas de suas fantasias, tu estás com a mesma cara!, e a pesada sensação de que mentem, dizem a verdade, não sabem, descobrem, se perdem num mosaico eletrônico disperso durante tantos anos e agora faiscando em suas mentes, ficam alegras, riem, sentem um nó na garganta...”

E Ildeu Manso Vieira relata a desgraça de seu sepulcro em vida:

“Descobrimos aos poucos que a prisão era um processo genial que a reação encontrava para liquidar os revolucionários. Ela transformava-se em cemitério de heróis. Nem o cantar dos passarinhos nas alamedas vizinhas, nem as bolsas coloridas das Lojas Unidas com frutas saborosas e confeitos dos mais apetitosos, liberados pela PM serviam para acalmar a ira do velho guerreiro, que prometia sair da cadeia e tomar o poder”.

O hoje-ontem

Os chocantes "Voluntários da Pátria" e os nomes dos torturadores, na rua central de Curitiba
Mas tudo isso é a verdade que querem anistiar. Por isso a nova semana deve se sublevar a si mesma: começa como dia da mentira, mas tem de se transformar o quanto antes em dias de verdade!

Os atos na Boca Maldita – tradicional lugar das manifestações públicas e políticas, mas também da proliferação do conservantismo paranaense – vêm, entre nós, a dizer algo a respeito dessa história toda, história-prisão que custa a se revelar ao povo brasileiro. Na segunda-feira, a juventude faz a sua parte por aqui (ver o vídeo Curitiba – Manifesto Levante Popular da Juventude); na quinta-feira, novos incômodos à cidade que completa seus 319 anos, mas que faz avistar à rua Voluntários da Pátria os torturados voluntariosos dos verdadeiros patriotas.

O Paraná que viu a Operação Marumbi e o Massacre de Medianeira, várias prisões, desaparecimentos e mortes, também participa desta aviltante página da história nacional. Muitos livros de história podem ser citados, mas fiquemos com apenas um que elabora um cruel ainda que importante “mapa da tortura”. No livro “Ex-presos políticos e a memória social da tortura no Paraná (1964-1978)”, Silvia Calciolari percebe o aumento do número de técnicas, seguindo o aperfeiçoamento da “franquia da tortura”, convalidando a tese da tecnologia ianque que fundamentava a doutrina da segurança nacional na América Latina.



Por tudo isso e muito mais que temos de nos dedicar a compreender nós mesmos a partir de nossa história exilada e aprisionada. Permitir a volta do exílio de nossa história depende, em muito, da abertura dos arquivos sobre o período e a séria investigação sobre as responsabilidades deles decorrentes. Desagrilhoar esta mesma história vai para além disso, imprescindindo da mudança do modo de produzir a nossa vida em sociedade, ou seja, imprescindindo de nossa libertação.

Infelizmente, exílio e prisão ainda marcam significativamente nossa história. Por isso é que lembramos esse “calendário perplexo”, do hoje que é ontem e do ontem que é hoje.

No dia da mentira, anistiaram a verdade... anistiaram a verdade de ser verdadeira, tornando a realidade um simulacro. Mas, ainda assim, tudo isso se passou conosco...

Esta postagem faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #desarquivandoBR

quarta-feira, 28 de março de 2012

Juventude se levanta contra a tortura, no Brasil

Memória e cultura são modernos conceitos que se aproximam muito. E, no Brasil, isto poder ser visto a partir das últimas mobilizações. Memória e cultura não apenas palavras; mas, ainda que mais que palavras, não são apenas expressões do espírito e da mente; mais, são realizações materiais; são, enfim, luta do povo! 

É por isso que divulgamos o Manifesto do Levante Popular da Juventude contra Tortura e os atos que tomaram o Brasil esta semana, lembrando a ditadura civil-militar de 1964-1985 e cultivando sua crítica a ela.






Mas ninguém se rendeu ao sono.
Todos sabem (e isso nos deixa vivos):
a noite que abriga os carrascos,
abriga também os rebelados.
Em algum lugar, não sei onde,
numa casa de subúrbios,
no porão de alguma fábrica
se traçam planos de revolta”.
Pedro Tierra

Saímos às ruas hoje para resgatar a história do nosso povo e do nosso país. Lembramos da parte talvez mais sombria da história do Brasil, e que parece ser propositadamente esquecida: a Ditadura Militar. Um período onde jovens como nós, mulheres, homens, trabalhadores, estudantes, foram proibidos de lutar por uma vida melhor, foram proibidos de sonhar. Foram esmagados por uma ditadura que cruelmente perseguiu, prendeu, torturou e exterminou toda uma geração que ousou se levantar.
Não deixaremos que a história seja omitida, apaziguada ou relativizada por quem  quer que seja. A história dos que foram assassinados e torturados porque acreditavam ser possível construir uma sociedade mais justa é também a nossa história. Nós somos seu  povo. A mesma força que matou e torturou durante a ditadura hoje mata e tortura a juventude negra e pobre. Não aceitamos que nos torturem, que nos silenciem, nem que enterrem nossa memória. Não esqueceremos de toda a barbárie cometida.
Temos a disposição de contar a história dos que caíram e é necessário expor e julgar aqueles que torturaram e assassinaram nosso povo e nossos sonhos. Torturadores e apoiadores da ditadura militar: vocês não foram absolvidos! Não podemos aceitar que vocês vivam suas vidas como se nada tivesse acontecido enquanto, do nosso lado, o que resta são silêncio, saudades e a loucura provocada pela tortura. Nós acreditamos na justiça e não temos medo de denunciar os verdadeiros responsáveis por tanta dor e sofrimento.

Convidamos a juventude e toda a sociedade para se posicionar em defesa da Comissão Nacional da Verdade e contra os torturadores, que hoje denunciamos e que vivem escondidos e impunes e seguem ameaçando a liberdade do povo. Até que todos os torturadores sejam julgados, não esqueceremos, nem descansaremos.


Pela memória, verdade e justiça!
Levante Popular da Juventude




***

Informativo – Repercussões na mídia do Escracho Nacional – Levante Popular da Juventude


O Levante Popular da Juventude realizou nesta segunda-feira (26/03) atividades em defesa da Comissão Nacional da Verdade em seis capitais brasileiras. Os atos, conhecidos como “escrachos” ou “esculachos”, são ações diretas de denúncia de torturadores da ditadura militar, que ainda continuam impunes e levam suas vidas sem que nem mesmo os seus vizinhos ou colegas de trabalho tenham conhecimentos sobre seus crimes.

Segue abaixo a repercussão na mídia sobre essas ações:

8. Jovens protestam contra torturadores (O Estado de S. Paulo)
22. Seisestados protestam contra torturadores (Diário de São Paulo)
26. “Esculacho”: Pela primeira vez publicamente denunciadostorturadores no Brasil (KoBra - Rede de direitos humanos, articulação Brasil/Alemanha)

Reações dos Milicos:

1. Hienas do Kremlinpreparam juventude (A Verdade Sufocada)


A juventude brasileira não compactua com a mentira!