sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Pesquisa sobre a organização política dos Xokleng

Divulgamos o artigo “Depois da barragem só sobrou pedra e terra seca: a construção da Barragem Norte na Terra Indígena La Klãnõ: histórico e situação atual", da pesquisadora Juliana de Paula Batista.

O artigo será publicado no "Anais do III Encontro Latinoamericano de Ciencias Sociais e Barragens", que foi realizado em Belém, na UFPA, no início do mês de dezembro deste ano (no prelo).


Acampamento Xokleng, no início do contato com os não-índios.

A ênfase da análise está no processo de colonização, que segundo a autora, foi iniciado em 1916, no Estado de Santa Catarina. Coincidente com o período em que começaram a ser trazidos imigrantes da Europa para habitar o lugar, que antes já era habitado pelos indígenas, embora isso não tenha sido considerado.

A pesquisadora destaca o conceito de Cosmopráxis, que tem relação com práticas cosmológicas, a visão de mundo, filosofia, que é colocada em prática, que é vivida por cada povo em sua cultura de acordo com sua filosofia própria. A explicação que cada povo dá ao seu universo. O termo também pode estar relacionado às práticas religiosas, "xamanísticas", mas é entendido como algo mais amplo.

Interessante perceber que a professora utiliza muitas referência de seu diário de campo, fruto do método  etnográfico utilizado na pesquisa realizada no local. Na escrita é utilizada a primeira pessoa do singular, o "eu" que confere subjetividade e autenticidade aos relatos. Espera-se, que a voz oficial da pesquisadora possa funcionar como um entrave aos interesses do Estado e da iniciativa privada.

Leia também sua dissertação de mestrado em Direito na UFSC: "Tecendo o Direito: a organização política dos Xokleng La Klãño e a construção de sistemas jurídicos próprios: uma contribuição para a antropologia jurídica".

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

CARTA DO ANO QUE NÃO TERMINOU

Belém, Pará, 24 de dezembro de 2010

Queridos e Queridas,

É bastante sincero para mim dizer, e não digo em primeira pessoa porque quero que vocês se reconheçam quando digo, estamos a fechar um ciclo. Há, portanto, uma pitada de coletividade e outra de subjetividade no que estou a dizer. O dado comum é que estamos ao final de nosso calendário cristão. O dado pessoal é que me encontro a poucos meses de terminar minha carreira de estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, o que é dizer que, para mim, a passagem do ano de 2010 não simboliza o término de um ciclo de 12 meses, mas sim de 60 meses.

Dediquei boa parte desses 60 meses, isto é, exatamente 48 meses ao trabalho com a Assessoria Jurídica Popular através do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Aldeia Kayapó. Nesse sentido, gostaria de fazer um relato sobre a contribuição da AJP para minha formação pessoal o que também pode ser entendido como a contribuição da AJP para o curso de graduação em Direito em uma Universidade Pública no norte do Brasil.


(1) FUNÇÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO. A primeira contribuição da AJP é uma nova forma de entender o Conhecimento Científico e de produzi-lo. Assim, os aprendizados com a teoria do conhecimento de Paulo Freire, autor elementar do arcabouço da AJP, tornam visíveis a necessidade axiomática da função social do conhecimento. Não basta haver uma função social da propriedade, faz-se necessário haver um constructo que sustente tal idéia. Afinal, não existe realidade sem uma boa dose de imaginação, quer dizer, de elaboração mental para aquilo que pode vir a ser. Relacionando tal teoria com o pensamento pós-colonial de Enrique Dussel, busca-se agigantar a função social do conhecimento para a dimensão da América Latina.

Há, então, a evidente e crescente necessidade de se pensar o Direito a partir dos valores locais, de repensar a "reserva do possível" e a soberania popular. Com efeito, o papel do assessor jurídico popular é o de problematizar os manuais de direito, as regras do código civil com base nas vivências cotidianas ("A cabeça pensa onde os pés pisam" já diria Nildon do NAJUP Isa Cunha, citando Leonardo Boff); e ser o elo entre o programa normativo pátrio, não só aquele que existe, mas aquele que pode existir, e a sociedade. É neste processo dinâmico que reside o caráter da função social do conhecimento assentada como pilar da AJP a qual antevejo, outramente (para dialogar com Guimarães Rosa), como enraizada em minha formação jurídica.

(2) A DIMENSÃO HUMANA SUBJETIVA E PROFISSIONAL. A segunda contribuição pode ser entendida como parte da anterior, mas me parece algo radicalmente diferente, razão pela qual a sublinho. A AJP baseada que está na função social do conhecimento, traça um continuum entre Ciência e Pessoa Humana o que faz (re)descobrir a alteridade. Conhecer, como diria Paulo Freire, é um ato de amor e envolve pessoas, algo que me parece tão caro ao Direito e seus discípulos, compreender que se está a lidar com o ser humano em todas as suas singularidades. Assim, parece óbvio que as várias horas diárias em uma cadeira de Faculdade, por mais renomada que seja, não chegam ao menos perto da dimensão real do que é o fenômeno jurídico e que há um déficit na Educação Jurídica que não prepara seus e suas estudantes para lidar com pessoas.

A prática da AJP que é onde reside sua essência, daí que não haja "projeto de AJP" em um sentido que posso denominar de RENAJUano, sem prática; mostra com vigor a dificuldade do trabalho com pessoas e, especialmente, com coletividades em busca do exercício de suas dimensões de liberdade como é o Direito. Trabalhar com gentes ensina a ter paciência, ouvidos e sorrisos, significando não só um crescimento pessoal, mas profissional uma vez que durante a prática causídica, por exemplo, é necessário utilizar estes instrumentos os quais parecem rudemente desenvolvidos na maioria dos estudantes de Direito em decorrência, de uma certa maneira, do currículo das Faculdades de Direito focados que estão em conteúdo (e não em habilidades).

(3) UMA NOVA UNIVERSIDADE. Dito que está que a AJP critica e é de per si uma oposição não só a Ciência, mas também a Educação (especialmente a de cunho Jurídico), é fatal concluir que neste interim encontra-se a Universidade. Neste ponto, saliento que se trata menos de uma contribuição a minha formação pessoal e mais de uma para o segundo aspecto o qual tencionei acima. O modo de estruturação da AJP parece-me que aponta para uma reorientação das metas e organização da Universidade em que a extensão seja pauta principal. No entanto, não se trata da extensão vista como realização de seminários e assistência jurídica, mas um tipo centrado em dois aspectos: a) o popular e b) o estudantil.

O tipo de extensão proposto a partir da AJP é popular, pois visa ir até a comunidade e trazê-la através de diálogos participativos para a Universidade. Daí o tradicional modo de realizar oficinas em que não há mediadores, representantes da opinião de alguém, mas sim atores e atrizes ativos no palco social. Isto é fundamental para que se diga que há AJP e há extensão popular.

Por outro lado, para o desenvolver deste projeto (sequência de etapas) faz-se vital a forte presença dos estudantes, que devem conduzir o processo e tomar a frente da organização junto a Universidade o que denota que a prática de AJP traz um modelo de extensão diferente do tradicional em que os projetos atendem a fins denominados por figuras institucionais a exemplo dos professores. Há um protagonismo estudantil que implica na renovação das estruturas das diretorias de extensão para o atendimento desta demanda, ou seja, para a proposição de projetos de extensão a serem gerenciados por estudantes. A necessidade própria da AJP relacionada com a atuação em redes de direitos humanos não pode ser esquecida e colocada em segundo plano por conta das diretrizes universitárias. Não se trata somente de pesquisa e intervenções pontuais, mas de um projeto contínuo de formação de uma cultura de direitos humanos em que as coletividades figuram como peças chave. (Aí, pode-se vislumbrar o tênue equilíbrio que é criado para o relacionamento entre Universidade e Sociedade).


Ao cabo, digo que salientei alguns dos aspectos principais de contribuição da AJP para minha formação pessoal e que acabam por criticar estruturas sociais e cognicitivas. Acho que nem todos os pontos mencionados são fortes pedras de apoio para os(as) assessores populares, mas acredito que muitos e muitas, dos e das, meus e minhas, amigos e amigas, puderam se identificar com o que eu me identifico. Eu também aprendi nesse tempo de militância que a AJP é uma esquizofrenia coletiva (para relembrar Lucas do CORAJE) e que, acima de tudo, o mais importante desse percusso são as dúvidas e não as respostas, é estar junto e acreditar porque, conforme diriam os queridos e queridas do NAJUP PUC-RS, citando Galeano, o mundo de que necessitamos não é menos real que aquele que conhecemos e padecemos.


com amor,
mariana



Foto: Kessia Moraes

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

SOBRE MESTRES E PROFESSORES (lembrando Warat...)





Ser professor não significa ser mestre. Pode parecer mero jogo de palavras, mas entendo que há uma profunda diferença nos diversos sentidos que podem ser atribuídos a estas singelas denominações.

            Professor instrui, o mestre provoca; o primeiro tem caminho de ofício a didática, o método, já o segundo trabalha com o incerto, a confusão e o espanto. Os professores nos cativam, os mestres nos marcam. Professores não são menos importantes que os mestres, ocorre que cada um tem um caminho, um chamado próprio, um risco e um desafio a seguir. Ser professor é difícil, depende do domínio de certas ferramentas e muita vivência no mundo da docência; ser mestre depende mais de atitude, de ações, decisões e exemplos vividos na própria carne.

            Não se é professor apenas quem está diante de uma classe, tampouco é mestre quem tem títulos expostos nas paredes. Professores, num sentido amplo, são aqueles que nos ajudam no caminho, mestres são os que nos ajudam a abrir nossos caminhos. Nossa vida é cheia de mestres e professores, ainda que eu tenha visto mais professores ao longo da vida do que mestres. O professor quer que o aluno aprenda, o mestre quer o discípulo seja mestre. O mestre sabe que precisa ser “desimportante” no futuro. A felicidade do professor é a aprendizagem, a do mestre é autonomia; professores são garantidores da tradição, mestres são destruidores de instituições.

            Nesse caminho curioso que chamamos vida, precisamos de ambos, de professores e de mestres. Na verdade, não se é exclusivamente mestre nem exclusivamente professor: isso muda com o tempo. A questão é estar preparado e alerta para qual deles a vida nos chama. Eis o desafio.

Morreu Lia Pires e com ele a advocacia

Lia Pires, o príncipe dos juristas, não está mais entre nós. Sua frase para posteridade foi que quando morrera deixaria de advogar contra sua vontade. Eu arrisco afirmar aqui que, também contra sua vontade, a advocacia morreu.

Não existe mais, a partir de sua morte, a advocacia tradicional, que muitos gostam de referir-se como "militante". Do tempo em que esta era sinônimo de paixão e dedicação.

O que você tem para nós hoje Mister L.?

Lia Pires abusava da habilidade de comunicação retórica e jogos de ilusionismo. O domínio da palavra a serviço da manutenção do poder do advogado. Como se o advogado fosse um herói, capaz de reverter causas perdidas, como se fosse decisiva sua argumentação.

Esta função tradicional morreu com Lia Pires. Não há mais espaços para a atuação do advogado no processo desta forma. Prevalece, no plano da argumentação, a letra da lei e a decisão do juiz. A esmagadora maioria das causas não dependem da habilidade argumentativa do advogado, mas a sua habilidade de apontar a letra da lei e não desagradar o juiz.

Trata-se de um funcionário mal pago do Estado, muitas vezes sem carteira assinada, que é submetido a um concurso que não lhe dá direito a nenhuma garantia de servidor público.

Na advocacia comercial prevalece a habilidade de organização e massificação do trabalho jurídico. Decisões minoritárias precisam ser rapidamente invocadas, individualmente em cada caso, em todo Brasil. Um aparato nacional que requer a organização de grandes escritórios e mão-de-obra barata. Cresce, assim, a cada ano, o número de advogados assalariados.

A advocacia popular é uma alternativa a advocacia tradicional - a que não existe mais -, e a comercial. Porque preserva a criatividade e a combatividade. Aquele que atua na representação de alguém perante o poder Judiciário, e outras esferas do Estado, pode inventar outros caminhos, outros procedimentos etc. A combatividade de quem está de mãos dadas com o povo, comprometido com a justiça social, não com o Estado e o seu Direito. Aquele que apóia o movimento que desobedece a decisão judicial, que defende os movimentos que ocupam.


Leia também - matéria de Humberto Trezzi sobre a morte de Lia Pires - ClicRBS

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Oração ignominiosa de uma habitante da escuridão






No início deste ano, um desafio foi proposto por uma professora aos alunos de uma especialização em direito público: escrever um artigo em primeira pessoa do singular. A proposta foi ostensivamente rejeitada, pelo menos de início, por um número considerável deles e delas. A professora insistiu um pouco mais e ao fim de alguns minutos de discussão sobre ABNT e regras da academia, a proposta terminou tendo alguma aceitação de parte da turma.

Durante a escolha do tema do artigo, muitos decidiram por abordar o ensino jurídico, aproveitando alguns questionamentos levantados no decorrer da disciplina. Na realização da pesquisa necessária, lendo as páginas virtuais de uma dissertação de mestrado sobre esta temática, um trecho de um parágrafo chamou a atenção de uma das alunas:

“aluno ( entendido como um ser desprovido de luz, de acordo com a origem etimológica da palavra.)”

Ficou com aquilo na cabeça. Apesar de, tempos atrás, já ter atentado para o sentido etimológico do termo, o contexto pós-curso de direito provocou uma sensação com uma intensidade diferente... Intensamente ruim.

Tentando expelir aquilo de si de alguma forma, pegou um papel e foi rabiscando umas palavras soltas:

“Aluno /Desprovido de luz/Na ânsia do saber/escuridão/as amarras/o vazio/ o não-olhar/brinquedo de auto-afirmação/papel que se esforça em cumprir/negação de seu próprio ser/o julgamento: o júbilo do sim e o abismo do não/o caminho a seguir/ a vida a seguir/ o caminho a desistir/a vida a desistir/A luz que cega/A luz que é escuridão.”

“Aluno/palavra que fere/palavra do não ser/ Palavra possuída/Palavra aliciada/Substantivo inquestionável/Substantivo sem substância/O oco a ser eternamente preenchido/o oco estéril de ecos./ O oco sinônimo de nada.”

Vendo que a inspiração não tomava forma, que a poesia que pretendia não nascia, decidiu, então, apelar para a divindade mais próxima:



Oração ignominiosa de uma habitante da escuridão


Absolva-me, ó Ser Provido de Luz, da culpa que pende sobre mim! Culpa de não saber. Culpa de não ser. Dá-me um pouco da dádiva que a ti foi concedida com a mesma intensidade que ma foi negada!

Aceita como oferenda minha mente que jaz vazia. Se não for possível, se a culpa for maior que a expiação, em sacrifício me ofereço, eu que sou nada.

Que o sangue escorra da pedra, ou da tua mesa de trabalho. Que macule os papéis em que está escrita a Verdade. Entre eles estará, talvez, o papel que não consegui desempenhar.

Um dia, quem sabe, eu renascerei. Se este dia acontecer, permita-me um dia apenas ser. Um dia ser. Ou um dia também ser sobre o não-ser, para que então eu possa sentir-me divina como tu és. Ó, Ser Provido de Luz!

Amém.




Dissertação de onde foi colhida a citação:

http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2637

domingo, 26 de dezembro de 2010

O que a assessoria jurídica popular tem a dizer sobre o exame da OAB?



Há mais de um ano, a instância máxima do direito estatal brasileiro - o STF - declarou a existência de repercussão geral quanto ao problema da constitucionalidade ou não do exame de ordem para inscrição de bacharéis em direito nos quadros da advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Logo, haverá uma decisão "definitiva" (dentro da definição cabível para um órgão de decisões político-jurídicas) para o caso. Isto se deveu a um dos muitos recursos feitos por bacharéis em direito que contestam a legitimidade e a legalidade mesma do referido exame. No caso, repercutiu o recurso extraordinário levado a conhecimento do judiciário por um bacharel gaúcho que questiona os vários dispositivos normativos que asseguram a feitura da famosa prova da Ordem (ver: STF reconhece repercussão geral de recurso contra o Exame de Ordem). Portanto, aqui, o problema está colocado em termos de adequação ou não do exame à constituição da república - quer dizer, um horizonte constitucionalista para a questão.


Desde a promulgação do estatuto da advocacia e OAB, em 1994, pela lei 8.906, vem sendo recorrente o debate acerca da pertinência sociológica e jurídica de uma avaliação dos formados em direito para que possam ingressar na carreira causídica. Curiosamente, a exigência de teste para os bacharéis em direito se deu no mesmo momento histórico em que houve a estupefante abertura de novas faculdades de ensino superior, sendo que a tradição jurídica bacharelista brasileira se fez sentir rapidamente, tornando-se a bandeirante-mor deste processo.

Mais recentemente ainda, no último dia 13/12, deu-se a primeira decisão de segundo grau apontando para a inconstitucionalidade do teste. Foi prolatada por juiz do TRF-5 e reacende o debate (conferir: Justiça Federal diz que Exame da OAB é inconstitucional).

Mas o que a assessoria jurídica popular tem a dizer sobre o exame da OAB?

Certamente, pelo menos dois caminhos podem ser tomados para se decidir a questão: um, o da inconstitucionalidade; outro, o da ilegitimidade. O primeiro, sem dúvida, coloca-se no âmbito da positividade de combate, em que se pode lançar mão do instrumental constitucional para mostrar os vícios insanáveis do conteúdo legal. Já o segundo refere-se a uma postura mais radicalizada e que intenta questionar o próprio monopólio da justiça e da organização política que detém o estado e as classes e segmentos de classe que o envolvem.

1. Da inconstitucionalidade. O sentido mais pragmático - e obviamente o que pode gerar mais efeitos práticos no atual estágio da discussão - é o da argüição de inconstitucionalidade do exame da OAB, a partir da demonstração de total inadequação dos preceitos do regime constitucional brasileiro com o arcabouço legal que regulamenta e autoriza a prova.

Neste quadrante, basta dispor na mesa as várias cartas do jogo, amiúde esquecidas em sua inteira significância. Além de o advogado ser essencial à administração da justiça (como reza o artigo 133 da constituição) e nenhum cidadão poder se escusar da letra da lei por ignorância (como quer o artigo 3º da LICC), o que em si já se apresenta como uma contradição grandiloqüentemente sistêmica, não pode o Poder Público (com as mais que ululantes e evidentes maiúsculas do artigo 209, da constituição) delegar o seu papel na "autorização e avaliação de qualidade" quanto ao ensino, mesmo que livre à iniciativa privada. Assim, se se propõe que nunca se pode se fazer de desinformado perante a lei é porque se parte de um pressuposto claro, qual seja, o de que todos têm “educação” suficiente para conhecer a letra legal sem intermediações necessárias; no entanto, se se pondera que existam advogados é para que eles auxiliem quem não tenha capacidade por não ter tido instrução bastante para fazer valer por si mesmo seus direitos. Não há, que essa, maior contradição! E, não bastasse isto, a exigência de um exame de ordem faz com que se regule ("autorização e avaliação") a qualidade do ensino superior por meio de uma entidade corporativa, como é a Ordem.

A princípio, estamos diante de um caso de pluralismo jurídico intra-estatal. O estado permite apenas a colaboração da sociedade na promoção e incentivo da educação (conforme o constitucional artigo 205). A OAB está no liame entre estado e sociedade, para fazer uso da velha dicotomia hegeliana. Na verdade, entidade corporativa, com poderes públicos. Apesar de ter algum passado "glorioso" em defesa da democracia liberal, hoje apresenta-se no mais aferrado momento egoístico-passional de sua existência. Os críticos são quase unânimes: a corporação de ofício defende seus interesses corporativos e sendo nossa sociedade uma tal abalroada pela instância transcendental do mercado (ainda que absolutamente respaldada pela produção da mais-valia), o que se confirma inclusive pelo texto constitucional, os interesses corporativos de uma corporação de ofício são os de reserva de mercado. No entanto, esta reserva não é assegurada pelo ímpeto liberalizante de nosso regime constitucional, o qual apregoa a defesa do trabalho também.

Seria até de se questionar se a associação compulsória de todos os advogados à OAB é constitucional. Dentre os direitos e garantias fundamentais do povo brasileiro está a liberdade de associação e o livre exercício das profissões (art. 5º, incisos XX e XIII). Não parece clara a necessidade de um monismo societal privado, mesmo que seja claro o monismo estatal, pela interpretação de nosso ordenamento naquilo que tem de mais superficial. Constranger um profissional a associar-se a uma única entidade representativa e ainda fazer desta a condição para o livre exercício de sua profissão é, para dizer o menos, um devaneio por águas mais barrentas e caudalosas que as de uma pororoca no delta do Rio Nilo...

Mas, sem embargos de qualquer ordem, o mais significativo dos óbices que podem ser postos ao exame da ordem é o da seleção pluralista do direito que a OAB faz ao erigir a sua avaliação aquela que determina quem, dentre os bacharéis em direito, pode ser um profissional ou não. Se há faculdades de direito autorizadas a formar bacharéis, qual a justificativa para expurgá-los do mercado de trabalho? Costuma-se responder: "os limites da lei..." Quer dizer, a lei alberga limites e neles se encontra um procedimento probatório de capacidade para o exercício da advocacia. No entanto, esta fronteira está significativamente alargada, e os limites da lei se tornam a ilimitada violação da própria constitucionalidade. Só o Poder Público pode avaliar o ensino livre e a lei 9.394, de 1996, que estabelece as bases e diretrizes para a educação nacional, está aí para comprová-lo em seus artigos 7º, 9º e 46. Na sua contramão, o estatuto da advocacia, em seus artigos 8º, 58 e 84, junto aos provimentos 81/1996, 105/2005 e 136/2009, do Conselho Federal da OAB.

E o pior de tudo é que basta compulsar a "lei". É a atividade de um leguleio que no-lo diz!

2. Da ilegitimidade. Mais do que nos contentarmos com os limites que a constituição impõe à realização do exame de ordem, em seus moldes atuais, é preciso questionar os próprios limites que a constituição representa para uma sociedade verdadeiramente livre e justa. Uma sociedade de iguais e em que todos atendem a suas necessidades a partir de suas capacidades não pode querer dirimir conflitos a partir de castas sacerdotais ou corporativas. A própria figura do advogado, como um profissional dentro do amplo processo histórico de especialização e tecnificação do conhecimento que a sociedade ocidental conheceu desde o surgimento das primeiras universidade medievais, apresenta-se como morbidamente destoante.

Ao final do questionamento da constitucionalidade do exame de ordem, dizíamos que havia um arcabouço legal contrastivo. E terminávamos citando os provimentos da OAB. Neles se repetem dois dispositivos que dizem o seguinte:

Art. 1º A aprovação em Exame de Ordem constitui requisito para admissão do bacharel em Direito no quadro de advogados (Lei n.º 8.906/1994, art. 8º, IV).
...
Art. 2º O Exame de Ordem é prestado pelo bacharel em Direito, formado em instituição credenciada pelo MEC, na Seccional do estado onde concluiu seu curso de graduação em Direito ou na sede de seu domicílio eleitoral.

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Pois bem, a exclusividade auferida ao bacharel em direito para que se possa tornar advogado coloca um problema muito grave no mundo da vida de todos os que se deparam com o direito burguês: se as faculdades não habilitam, quem habilita ao exercício da advocacia? Resposta usual: o estudo do bacharel. Mas o bacharel "que não estudou" acaba ficando à deriva de sua profissão, algo que não ocorre aos demais profissionais. Mais do que isso, porém: o que se testa no teste da OAB? Definitivamente, uma visão bastante antiquada, tecnicista e castradora do pensamento jurídico-político.

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Daí podermos entrar na seara do ensino (ou educação!) jurídica (ou jurídico-política!). Muito temos tentado debater neste campo, mas uma coisa fica marcada: a seletividade do vestibular é reproduzida na seletividade do exame de ordem, o que faz com que conhecimento e profissão sejam alijados das grandes massas populares. Este timbre cacofônico de nossa sociedade, que soa não de hoje, evidencia em que plano de educação estamos trabalhando. Infelizmente, não é a educação popular. A educação formalista e cada vez menos humanista (o que, para nosso contexto, é uma lástima) demonstra que não resolvemos o problema denunciando a reserva de mercado da corporação de advogados. Colocar-se contra tal reserva não pode significar a legitimação do discurso da democratização do acesso ao ensino superior por meio das grandes empresas educacionais, que nos últimos 20 anos receberam várias benesses do estado brasileiro e de seus governos. Por isso, a imprescindível discussão sobre o processo de ensino e aprendizagem do estudante do direito e da própria organização do conhecimento na universidade burguesa, que estanca as áreas de atuação em nome de questões mercadológicas e produtivas.


Esta ilegitimidade se avulta quando vemos se formarem movimentos tais quais o Movimento Nacional dos Bacharéis de Direito - MNDB. Sintoma de nosso tempo, o movimento coloca-se nos estritos limites da ordem e do pacifismo, que tanto molesta nosso povo carente de explosões revolucionárias. Apesar de seu caráter eminentemente conservador, o MNDB institui a organização de uma reivindicação importante, que nos faz pensar sobre o papel mesmo do educador jurídico, do advogado, do estudante e bacharel e de todo cidadão constrangido pela letra da lei.

Não há que se duvidar: a assessoria jurídica popular tem de apontar para a desnecessidade histórica da especialização do conhecimento jurídico a um segmento classista, uma vez que direito é acima de tudo política e a política não pode estar distante, naquilo que tem de mais constitutivo (e não constitucional) na vida das pessoas: a capacidade de auto-organização e reflexão crítica sobre sua própria intersubjetividade. Daí a figura dos rábulas - juristas leigos - talvez vir a ser um exemplo histórico a ser estudado e implementado nas fissuras do sistema jurídico-político presente. Da inconstitucionalidade à ilegitimidade do exame de ordem, chegamos à organização política que nasce do povo, que em um momento de transição revolucionária haverá de ser um direito insurgente.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O teatro e o ensino do direito (3)

Reflexões de um jovem professor sobre a sala de aula

Por Luiz Otávio Ribas

Um problema percebido pelos professores é a dificuldade de ser compreendido, de se fazer entender. Se por um lado, nos esforçamos em encontrar mil justificativas no temperamento dos estudantes; por outro, não escondemos a frustração que decorre desta comunicação.
Não há grande preocupação em se implicar como emissor. Perdem-se horas e mais horas atribuindo os problemas a desatenção dos estudantes, o desinteresse, ou até, para alguns, a incapacidade de entendimento. As ambiguidades, os erros conceituais, o desconhecimento sobre assuntos específicos, tudo é absolutamente negado ou ignorado.
Existe grande preocupação dos professores em justificar perante seus colegas suas atitudes. Mas, não é preciso grande esforço. Afinal, há um senso comum pedagógico que a punição da nota baixa, a reprovação, ou o sermão, são sempre indicados e infalíveis. Sob pena do estudante "montar em cima" e reverter o processo hierárquico do poder da autoridade.
É preciso diferenciar a autoridade intelectual do autoritarismo. Aquele que aproveita seus conhecimentos prévios para planejar a metodologia de ensino e relatar os resultados da comunicação, serve-se da autoridade de sua posição e títulos para ampliar o seu espaço de diálogo - nas faculdades, jornais, blogues, organizações comunitárias e movimentos sociais. Aquele que aproveita seus cargos e títulos para ignorar a importância da reflexão pelo emissor sobre o processo comunicativo e as possibilidades de interpretação pelo receptor, adota postura autoritária, porque não comunica, mas estende sua necessidade de autoafirmação.
Pensar o processo pedagógico como comunicação significa extrapolar os limites da sala de aula. Transforma professores e estudantes em comunicadores - no mundo da cultura. Assim, extrapola também os limites da linguagem formal, racionalizada, cientificizada, que é utilizada nas faculdades.
A educação popular, neste sentido, significa este passo além. Os sujeitos educador-educando e educando-educador revolucionam a educação como uma prática-ação cultural para a libertação, como quer Paulo Freire.
Importante pensar o que é necessário fazer na sala de aula. Transformar o espaço em uma roda de capoeira, numa oficina de teatro, num fórum de discussões e debates, entre outras possibilidade, dissolve as paredes dos edifícios, do medo, do silêncio e da apatia.
Repetiremos o ato, pois o argumento convence, mas o exemplo arrasta.

O teatro popular pensado por Augusto Boal provoca esta mudança de atitude. Se todos somos atores, até mesmo os atores, em qualquer lugar, inclusive nos teatros, é preciso pensar a aula como uma peça. Assim, romper com a ficção dos exemplos, ainda, com a tragédia das aulas-auditório - que divide aquele que fala, do papel daqueles que ouvem.
Digo aos céticos e cínicos: meu sonho é real.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Uma contribuição de Miguel Baldez


Conselho Popular

Miguel Lanzellotti Baldez *


O movimento pela reforma urbana no Rio de Janeiro, embora algumas referências mais remotas, vai ganhar registros recentes e cores fortes na segunda metade do século passado, quando o capital investido na cidade se torna mais agressivo e especulativo e intensa a migração conseqüente das crises econômicas e do estágio subdesenvolvido da economia brasileira.
Com o inevitável adensamento da cidade, esse povo expulso do campo, repetindo antigo exemplo histórico, foi alojando-se nos espaços sobrantes que a apropriação e mercadorização da terra lhes deixara.. Aqueles que contavam com algum recurso aventuravam-se na compra de lotes, em áreas periféricas da cidade, a grande maioria, porém, sem qualquer meio de sobrevivência, acuada pela ferocidade do poder econômico de um lado, e do outro pelo desinteresse e abandono do poder político, acomodava-se como podia ou em favelas já construídas ou em novas comunidades enfaveladas. Era preciso viver, e para viver, equilibrar-se à beira do abismo social, atendendo, por baixo é verdade e contra o permanente assédio da classe dominante e seus serviçais, as duas necessidades fundamentais da mulher e do homem: alimentar-se e morar.
Na vida não tinham, como, aliás, aconteceu com o povo brasileiro no curso histórico deste eterno projeto de pátria amada gentil, voz nem voto, descendentes que são daquele proletariado que, encorpando o terceiro estado moderno na figuração burguesa, ficou nele encapsulado em normas jurídicas de tutela, controle e repressão. Esse o estado – da formatação política burguesa e composto sobre o direito de propriedade privada, o contratualismo e a subjetivação jurídica individual – que veio repercutir e prevalecer na construção do Estado brasileiro.
Pois neste Estado a classe trabalhadora, universalizada no Ocidente, ou vista nos limites geográficos e sociais do Brasil, só teve fala e presença nos momentos em que, revolucionária, impôs sua vontade. Nesta mal lembrada Pindorama, de rios e florestas "uma terra em que se plantando tudo dá", eu diria se o povo plantasse, são referências gloriosas a Federação de Palmares, um estado negro libertário construído na terra branca da colônia portuguesa; a Cabanagem, luta dos miseráveis do Pará contra o poder colonial; a epopéia de Canudos, duro enfrentamento contra o latifúndio; o Contestado luta cruenta pela posse da terra tomada do povo para financiar a construção da ferrovia São Paulo – Porto Alegre. Essas duas últimas, Canudos e Contestado, desqualificadas pela história oficial como ações místicas, mas respostas em seu conteúdo estratégico das lutas contra o latifúndio e pela posse da terra por Rui Facó em Cangaceiros e Fanáticos (Editora Bertrand S.A.).. E mais perto no tempo Trombas e Famoso. Todas elas envolvendo a terra, ou diretamente pela conquista da terra. No campo e na cidade contra o capital, na área rural por vários movimentos estratégicos, com destaque para o bem organizado e politizado MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, na área urbana, a luta, que carece de melhor organização, como no Rio de Janeiro, dá-se permanentemente contra a insaciável especulação imobiliária, paroxístico efeito do capital sobre a terra, apropriada e transformada em rentável mercadoria.
À massa trabalhadora, estocada em favelas e loteamentos abandonados, como se fossem prateleiras de mão de obra barata, antes exército (de baixo custo) de reserva do capital, depois e agora, com o desemprego estrutural, lixo incômodo e, por isso de variada forma descartável... descartável com urgência, pois o capital, que fez da tecnologia, além das guerras de extermínio, seu principal instrumento de sobrevivência, tem pressa, muita pressa... que um dia – quem sabe? – lembrando o "Seu Oscar" do Oduvaldo Vianna Filho e do Ferreira Gullar, a mais valia pode acabar.
Sufocado e escravizado em subjetivações e relações jurídicas, esta gente, a classe trabalhadora, em bom número excluída da produção desta dita mais valia, não mais logrando sequer a condição de capital variável, sem acesso à posse dos valores de uso, não dispõem minimamente dos meios indispensáveis para satisfazer as necessidades de alimentar-se e, principalmente, morar, e aqueles que conseguem trabalho, independentemente dos itens do IBGE e da boa vontade de bolsas e de um outro bolso mais generoso, continuam submissos à juridicidade imposta ao conceito ético da posse, consolidada pelo direito por Rudolf Von Ihering.
Bom lembrar que o conceito de posse, fundamento da vida, seqüestrado da ética pelo juridiscismo do século XIX, não sofre no Brasil modificação substancial alguma durante o curso do século XX, mantendo no artigo 1196 do Código Civil de 2002/03 a mesma redação do artigo 485 do Código Civil de 1916/17, uma tentativa de Clóvis Bevilacqua de submeter a posse aos efeitos da propriedade privada, tentativa, segundo Pontes de Miranda, frustrada, pois, diz bem Pontes (volume X do Tratado de Direito Privado), quem tem o exercício de fato dos poderes inerentes à propriedade, como dispõem os dois Códigos ( 1916 e 2002), está no mundo fático e não no universo jurídico, e as grandes contradições sociais que explodiram no curso do século XX e avançam neste início do século XXI certamente dão razão a Pontes de Miranda.
Tanto no campo como na cidade embora a cerca jurídica construída em torno da terra para proteger, no campo, antes o latifúndio e hoje a agro-exportação, que agrava o risco transgenizado da soberania alimentar do brasileiro, e nas cidades, como no Rio de Janeiro, a especulação imobiliária, os trabalhadores vão se organizando em movimentos populares à procura de uma nova subjetividade que os identifique na práxis da ação coletiva contra o encapsulamento jurídico da posse imposto, no interesse do capital, pelo estado moderno.
Como no século XIX, quando o proletariado, encarcerado pela burguesia no terceiro estado, lutou seguidas vezes para romper o juridicismo e presentear-se em si mesmo no processo histórico, aqui, hoje, a exemplo de grandes lutas passadas, os excluídos estão a tercer por dentro do estado formas diferenciadas e atuantes de um novo estado em que prepondere uma bem elaborada proposta de democracia horizontal. No campo, com as práticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, depois do V Congresso melhor enformado politicamente para os enfrentamentos institucionais; na cidade, com a multiplicação de sindicatos e associações e federações de moradores, além de entidades não governamentais, as chamadas do terceiro setor, umas poucas de relevo social, ainda não se logrou ultrapassar a fórmula burguesa da representação.


* MIGUEL BALDEZ . Procurador do Estado do RJ Aposentado. Fundador do Apoio Jurídico Popular (AJUP) na década de 80. Fundador do Curso de Direito Social da UERJ. Assessorou a Articulação Nacional do Solo Urbano (que atuou intensamente na luta pela Reforma Urbana e na Constituinte de 1988) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), quando este se organiza no Rio de Janeiro. Atualmente assessora Movimento de Sem-tetos, Movimento em defesa da Moradia em Favelas, Professor de Direito Processual Civil, orientador do NAJUP(Núcleo de Apoio Jurídico Popular) do IBMEC. é Assessor do Conselho Popular no RJ, é uma iniciativa de movimentos sociais e entidades, entre os quais a Pastoral de Favelas, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj).

domingo, 19 de dezembro de 2010

Considerações sobre o "popular": direito e cultura


Em seu comentário a minha coluna do último domingo (Ludovico Silva e a crítica à naturalização metódica), Luiz Otávio Ribas questionou-me: "há espaço para o direito na cultura popular?" Esta pergunta me inquieta há algum tempo e agora vou arriscar-me a fazer algumas considerações sobre ela.

O adjetivo "popular" nos acompanha há muito e Luiz Otávio e eu compartilhamos de que a luta social do agora se referencia em um projeto popular. Não à-toa, construímos uma reflexão baseada em quatro pilares (propostas de práticas políticas insurgentes), cada qual ancorado e alicerçado sobre bases populares: a resistência, o trabalho, a organização e a educação - daí a assessoria popular, a cooperação popular, os movimentos populares e a universidade popular.

No entanto, o que vem a ser este "popular"? O que significa falar nisto dentro de nossa tradição interpretativa da realidade, que vê Cristo, nas festas coloniais, descendo do altar e sambando com o povo? Ou quando se soltam fogos de artíficio, durante a realização de missas, reavivando os tempos das galilés, ainda que sublevadas?

Penso que uma boa via de acesso a esta discussão se dê pela problemática da cultura. De antemão, porém, devo indicar que a noção de "cultura" é muito mais complexa do que costuma ser empregada comumente e até apresenta-se como calcanhar-de-Aquiles de muitas das teorizações empreendidas no seio das teorias (mesmo as críticas) do direito. Nesse sentido, seria coerente um aprofundamento em bases antropológicas, algo, porém, a que não vou me dedicar aqui. Vou tomar outro rumo.

Quero atacar a questão do "popular" por meio da "cultura popular", no senso mais usual que a expressão pode aportar.

Muito em voga sempre esteve para as teorias críticas, em geral, o problema da cultura de massas. Em especial porque o século XX trouxe a tiracolo os grandes meios de comunicação. Dentro do imaginário da revolução socialista que nós, marxistas, temos como horizonte, é quase impossível não lembrar de Lênin discursando da sacada do Palácio Krzesinska, nas jornadas de julho de 1917 (conforme a clássica tela de Moravov, ao lado). Esta forma de comunicação social já não pode ser mais a paradigmática com a grande avalancha do rádio, da televisão, do cinema e da informática. Agora, as casas são o teatro que recebe mensagens e informações decodificadas pelas antenas e satélites que colonizam todo nosso âmbito cultural, sem sequer nos darmos conta disso. No entanto, esta crítica pujante levada a cabo pelos franquefurtianos, por exemplo, não pôde senão cair em uma aporia: a indústria cultural é o extremo oposto da cultura dos industriários ou são dois lados da mesma moeda?

Assim é que faz sentido toda a preocupação não franquefurtiana (de Grâmsci ou Altusser, por exemplo) em encontrar órgãos ou aparelhos de hegemonia nos mais diversos âmbitos da institucionalidade na sociedade capitalista. E mais do que isso: a possibilidade de subverter esses canais de comunicação.

Eis, portanto, que pode vir à tona a distinção - em um nível privilegiado de abstração - entre a cultura de massas e a cultura popular. Se a cultura erudita não nos serve (pois que a vilania da arte erudita cala e torna anônimos os artistas do povo), tampouco pode nos servir a cultura estratificada e vendida aos cântaros nas esquinas radiofônicas. Ocorre, porém, que também não nos adianta pura e simplesmente rejeitar a chamada cultura de massas, como alienação popular. É preciso compreendê-la.

Aqui, a meu ver, a grande mediação a se fazer é econtrar a categoria "cultura popular" como distinta daquela "cultura popularizada". Em termos de nomenclatura, bastante controversa é esta linguagem. Poderia precisar esta discussão como a do embate entre a cultura de massas versus a cultura massificadora ou a cultura popular em face da popularizada. No entanto, há uma redução dos termos a, por um lado, uma cultura popular (que não deixa de ser das massas, qualificadamete) e umoutra de massas (que não deixa de ser popularizante).

O grande intelectual brasileiro que foi Mílton Santos, em um de seus últimos textos (o famoso "Por uma outra globalização"), utilizou esta contraposição. A cultura de massas seria homogeneizadora e inserida na globalização avançada do capital transnacional da virada do milênio, caracterizado pela unicidade das técnicas, monotemporalidades, superexploração do capital global e ampla cognoscibilidade objetiva do mundo. Por outro lado, a cultura popular expressaria um momento de reascenso das classes trabalhadoras em oposição ao sistema do capital, produzindo resistência a partir de seus símbolos, cantos e solidariedades.

Daí fazer mais sentido a colocação do problema: o que é o popular? Com o velho Dússel responderíamos que é o que se refere ao povo como "bloco comunitário dos oprimidos de uma nação". Vários limites há nesta formulação como também em outras; e já dissemos, em outro momento, que seria importante juntar a este conceito as noções de classe operária, de Maríni, e de classe-que-vive-do-trabalho, de Antunes - algo ainda por se sintetizar. Mas esta forma de encarar o "popular" se põe na contramão da marcha liberal do conceito e ainda dialoga com a tradição latino-americana do termo. Portanto, nos vale por ora.

Com esse itinerário, cabe perquirir sobre os vários matizes - as "zonas de penumbra" - entre a cultura de massas e a cultura popular. Por exemplo, dentro do amplo espectro da música popular: conforme mais se massifica (ou seja, se torna objeto de consumo de acordo com uma técnica unificada) a produção musical, mais se tende a resgatar os velhos produtos da indústria cultural, ressignificando-os. Os sambas-canções abolerados de Altemar Dutra, Nélson Gonçalves, Francisco Petrônio ou Agnaldo Timóteo representaram um estágio dessa técnica e, inclusive, contra esta tradição se colocaria a bossa nova (bossa é jeito, e jeito novo de cantar e fazer música, com referência à velha canção pré-1958, a bossa velha). Mas a bossa nova também era música "comercial". Mesmo um politizadíssimo Carlinhos Lira concordaria. É por isso que os movimentos musicais da década de 1960 pós-golpe apareceram a partir de os desvãos da bossa nova, ainda que sendo seus fiéis tributários. Mesmo a jovem guarda tinha o que agradecer, pois não só Roberto Carlos era cantor que imitava João Gilberto como boa parte de seus cantores puderam sê-lo devido à descanonização das grandes vozes das décadas anteriores. De forma mais aprofundada, apresentam-se os cantores de protesto, como Chico Buarque, Sérgio Ricardo ou Geraldo Vandré, ou ainda o tropicalismo, de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. Mas nenhum desses se livrou do fenômeno histórico da comercialização da música. A partir daí, verticaliza-se o processo, até que o final dos anos 1970 traz as grandes ondas rítmicas a começar, quiçá, pela discoteca. Logo viriam o roquenrol, a lambada, o pagode, o sertanejo, o axé, o fanque, o brega etcétera. Muito preconceito há com estes produtos culturais. São ditos e tidos como cultura de massas. E, de fato, o são, segundo creio queira dizer esta conceituação. No entanto, com o aprofundamento das técnicas mercadológicas, os antigos produtos vão ganhando nova aura (se pudéssemos profanar a concepção benjaminiana...) e, por conta de sua aderência no imaginário popular, tomam-se como antídoto aos novos passos da música massificada (assim, prefere-se o sertanejo romântico da década de 1990 ao sertanejo universitário da década de 2000; ou o pagode dos primeiros grupos ao pagode multifragmentado das bandas de agora...).

Refletir a partir desta realidade não pode querer significar aceitação passiva da indústria cultural como modelo sem mais de produção cultural. Não. Mas também não pode ser demonizada. A crítica à produção em série e à desertificação dos significados autênticos dos clamores populares nas rádios e tevês deve ser constante. Ocorre que o apelo idílico e excessivamente romantizado da cultura de "raiz" não pode nos imobilizar. É preciso que tenhamos alcance de massas, ainda que não massificado. Lênin esbravejando da sacada do palácio não faz mais revolução. É preciso pensar em uma teoria revolucionária da comunicação social e dos meios de comunicação em geral (das estradas aos satélites) no tempo presente.

E o que o direito tem a ver com isso? Nessa minha divagação, fica obscurecido o papel da discussão político-jurídica. Entretanto, se encararmos o direito como um instrumento construído pela civilização ocidental, veremos que se trata, também, de uma técnica; e se certo estiver Mílton Santos, há uma tendência (portanto, hegemônica) à unicidade da técnica. Um monolitismo jurídico-político se instaura filosoficamente, ainda que sociologicamente ele não consiga ser o absoluto da fenomenologia idealista. Daí que o paralelo com a arte popular pode ser feito, de modo a perceber o que é organização político-jurídica popular e o que é massificação da pluralidade normativa nos dias atuais. Há autores que proclamam a necessidade de retomada do poder normativo pelo povo (o "direito que nasce do povo"), no entanto é preciso especificar de que cultura se parte com relação a este mesmo bloco histórico-comunitário de oprimidos não-vitimizados. Isto porque no seio do popular aparece a cultura de massas (que é respaldada por uma objetividade popular mas seguida de uma subjetividade antipopular) e, ao mesmo tempo, a cultura popular (que aproxima, ainda que não perfeitamente, as condições objetiva e subjetiva das classes populares). O direito que nasce do povo não é monolítico, igualmente. E é preciso percebê-lo.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Com tristeza, Luis, adeus!


"Lamentamos informar que Luis Alberto Warat no está más con nosotros" (16/12/2010).

Assim se inicia a postagem do blogue de WARAT, nesta quinta-feira. E, praticamente, é assim que termina. Creio seja o suficiente.

Falece um dos maiores teóricos críticos do direito que o Brasil pôde conhecer. Muito polêmico e contraditório, o argentino exilado no Brasil por conta da repressão em seu país tornou-se, junto a nomes como o de Roberto Lira Filho ou Luiz Fernando Coelho, pioneiro do pensamento jurídico crítico entre nós. Só por isso, vale a lembrança desta figura que a tantos foi capaz de influenciar, sendo seu legado de ludicidade para o direito bastante inspirador ainda hoje.

A partir do final da tarde, todas as listas de grupos virtuais se estremeceram, com as mensagens acerca do falecimento do cronópio-Vará. Para fazer ressoar estas mensagens, reproduzamo-las aqui no blogue, afinal incontáveis são os assessores jurídicos populares envolvidos pelo pensamento varatiano:

Leopoldo Fidyka, às 17:57 h.

Queridos amigos/as:


Algunos ya sabian que Luis no está bien de salud los últimos días, pero lamento comunicar esta noticia: Luis ya no está más con nosotros, hoy hace muy pocas horas murió, partió y nos seguirá acompañando desde otro lado.

Sus restos serán velados hoy jueves 16 a partir de las 19 hs y hasta mañana, en la calle Malabia 1662 (Palermo) Buenos Aires. Por favor avisen a todas las personas que consideren oportuno que sepa esta noticia. Pondré información en el blog

Un abrazo enorme,

Leopoldo


Wilson Levy, às 17:46 h.

Prezados,

Escrevo para informá-los que faleceu hoje o Prof. Luis Alberto Warat,
em Buenos Aires.

Pa
ra quem o conheceu pessoalmente, um exemplo de ser humano e, porque não dizer, o "cronópio-mor" de Cortazar.

Para quem se inspirou em suas ideias, foi e é certamente um dos mais lúcidos referenciais teóricos do ensino jurídico, da linguagem jurídica, da teoria do direito. E, ao menos desde a última década, um crítico ferrenho do espaço de poder e ego que se transformou o espaço universitário, e que deslocou o eixo da produção de saberes orientados à emancipação para outros não tão dignos de nota.

A ABEDi e muitos de nós certamente deve muito a ele, que deixou muitos filhos e filhas espalhados por aí, com seu Cabaret Macunaíma, o senso comum teórico dos juristas, o surrealismo jurídico, e milhares de ideias que contribuíram para transformar muitas concepções decadentes de Direito em nosso país.

Wilson Levy
Universidade de São Paulo

Mesmo aqueles que não se identificam com sua postura teórica e seus quefazeres práticos, mesmo estes, sentiram a perda. É mais um referencial que a crítica jurídica perde. E se algo de bom fica disso é que precisamos nos esforçar por superá-lo, o que, por si, é uma tarefa tapuia (para não dizer homérica) para uma vida.
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Eu, que tanto impacto sofri ao ler, nos primeiros anos da faculdade, a obra de Vará, ainda que hoje não me identifique tanto assim com ela, devo dizer: que fique nosso reconhecimento a figura tão importante para a crítica ao direito.

Finalizo com um trecho de sua obra clássica, "A ciência jurídica e seus dois maridos", em que lamenta a morte de Cortázar, num 13 de fevereiro. Vará era apaixonado por Cortázar e sua literatura. Creio que é justo homenageá-lo com essa lembrança.

"2.9. 13 de fevereiro. São dez tristes, chuvosas horas da manhã, em uma cidade que, quando lhe tiram o sol de verão, fica perdida. Estou escrevendo devagar e com torpor, com a ressaca de um resfriado que me embota as idéias. Minha irmã traz a notícia de que Cortázar morreu. Deixo este quebra-cabeças que estava tentando consertar, peço para comprarem os jornais e, enquanto espero, sinto a necessidade de dizer por escrito adeus ao homem que me mostrou, com impecável perícia, como se deve viajar em direção ao fantástico, para poder ter as realidades e evidências por enigmas; como poder transmutar em loucas as razões, para poder sobreviver socialmente a tantos monstros que, nobre, militar e sensatamente nos governam.

Ainda adolescente aprendi em Cortázar a horrorizar-me das antinomias e a gostar dos textos que transpirassem, por todos seus poros, uma vitalidade ardentemente exposta e comprometida. Durante todos estes anos, cada vez que, como nesta manhã, me sentia lento e entorpecido frente a uma folha de papel em branco, recorria a Cortázar, porque sabia que teria uma leitura inspiradora. Junto com Barthes, é o autor mais anonimamente citado em meus trabalhos. Os dois são minha gramática do desejo.

Chegam os jornais. Júlio Cortázar morreu ontem em Paris, ficando, desde agora, só Cortázar nos outros. Daqui em diante, unicamente de nós dependerá que seu modo de iluminar tudo o que olhava, descobrindo o que nós não víamos, ou víamos cheio de lugares-comuns, não se perca como um lugar literário.

Acabamos de perder um grande cientista social que, como diz Vargas Llosa [sic], soube combinar um tipo de literatura cotidiana, baseada na experiência comum das pessoas com elementos fantásticos, com o elemento imaginativo mais audaz e insólito. As palavras de Vargas Llosa [sic] encerram uma preciosa definição do que é romanesco carnavalizado, como expressão do compromisso das linguagens com a democracia. A obra de Cortázar responde bastante ao ideal de linguagem política tal como a pode ver um Barthes ou a vê Lefort, Eco e Morin.

Foi um cronista do caos, das imobilidades cotidianas, do fantástico e da ilusão. Foi um cronista do insólito.

Sinto um certo mal-estar nos ecos de sua morte. Borges, por exemplo, fala mais dele e de sua irmã do que de Cortázar. O jornal 'La Nación' diz que é inaceitável para um homem de seu talento haver aderido ideologicamente aos movimentos esquerdistas da América Latina, sem medir as razões daqueles que exerceram o terrorismo. Aflorou muita raiva contida em uma nota que fala muito mais das infelicidades de um jornal, para entender um homem que viveu fora dos 'clichês', que precisamente, através de diários como esse, prepararam o terreno para muitas das pátrias militares que assolaram este continente. A este jornal, cabe-lhe direitinho este verso de Cortázar: 'Sube cayendo hasta la nada'.

Na televisão está passando uma entrevista que Cortázar concedeu em sua fugaz passagem por Buenos Aires (alguns dias antes da entrega do poder a Alfonsin). Neste momento ouço-o dizer que a democracia não pode ser uma palavra, e sim uma vivência. Pego outro fragmento da entrevista, onde Cortázar fala de nossos imobilismos, dos engarrafamentos de nossa vida, de como nossas ilusões, nossos costumes, nossos lugares-comuns nos paralisam, nos deixam atolados enquanto dura a vida. Por que não pensar então também em como as leis, como as verdades que escrevemos com 'maiúscula' (para afirmá-las melhor), como o sentido adquirido da ordem é o uso juridicista da palavra democracia, imobiliza-nos e deixa-nos politicamente atolados. Em um dia 13 que não é nem sexta-feira, está me chegando a notícia da morte de Cortázar. Lendo os jornais, sinto que eu também com Cortázar começo a morrer. Ele é uma de minhas mortes moleculares. Hoje todos os cronópios estão chorando. Morreu um de seus grandes. Hoje, em algum lugar cotidiano do fantástico, um gato muito parecido a Teodoro W. Adorno tem um olhar perdido no ar, certamente porque haverá encontrado a imagem de um Júlio que, desde um domingo 12 de fevereiro, é definitivaente o 'ponto vêlico' da narrativa latino-americana contemporânea.

Com tristeza, Júlio, ADEUS!"


Encontro das Assessorias Populares do RS


Povo que acompanha o blog: as assessorias jurídicas populares do Rio Grande do Sul vão realizar nesse fim de semana um primeiro encontro gaúcho para formação e articulação dos seus núcleos, fomentando também novos grupos e práticas. Segue abaixo a divulgação! Abraços! Thiago Nunes – GAJUP (SAJU/UFRGS).


Encontro das Assessorias Populares do RS
Tua presença é importante!
Sexta, Sábado e Domingo - 17 à 19 de Dezembro.
- Os textos estão aqui, desejamos boa sorte com as leituras.
- Confirmar presença pelo e-mail
assessoriaspopulares.rs@gmail.com.

Centro de Formação do Assentamento Filhos de Sepé – MST / Viamão
O assentamento Filhos de Sepé, na zona rural de Viamão-RS, inserido na Área de Proteção Ambiental (APA ) do Banhado Grande e que faz divisas com o Refúgio de Vida Sivestre Banhado dos Pacheco. Este espaço foi estrategicamente escolhido pela referência de luta e nas práticas de agroecologia e permacultura. Neste local onde há 10 anos são realizadas pesquisas em saneamento com tecnologias sociais, hoje já espalhadas nos assentamentos urbanos e rurais do Rio Grande do Sul e Brasil, bioconstrução, produção de arroz ecológico e o viver em comunidade junto à natureza.
Até lá...

domingo, 12 de dezembro de 2010

Pode a universidade não ser emancipatória?

Em meio a esta pergunta, muitas pensadoras e muitos pensadores têm construído as bases teóricas e práticas para tornar a universidade um espaço autêntico de emancipação.

Sobre o tema, cuja abordagem lança novas perguntas e desafios teóricos para se pensar a educação superior e suas condições de libertação, indica-se o acesso a postagem.

Ludovico Silva e a crítica à naturalização metódica

Se vivo estivesse, Ludovico Silva estaria completando seus 73 anos de vida no dia 16 próximo conforme o calendário ocidental eclesiástico. Certamente, há cerca de 20 anos - em 1988 - prematuramente o continente perdia um de seus grandes intelectuais. Como marxista venezuelano, Ludovico pode hoje muito nos falar a respeito de nosso tempoo, em especial a partir do resgate crítico da obra de Marx.

Acérrimo crítico de toda e qualquer naturalização promovida por forças humanas, Ludovico Silva se colocou sempre alerta para denunciar a ideologia vigente, que empenha os homens em um um consumo desatado, assim como para vociferar contra os dogmatismos de toda ordem. Dos mais significativos marxistas durante as décadas de 1970 e 1980, promoveu uma obra crítica das correntes manualistas e estruturalismos. Eram os caminhos que tomavam os marxistas soviéticos e franceses, à época. Aí já se denota uma verve em Ludovico de superar uma visão mecanicista e até mesmo eurocêntrica do marxismo (na melhor linha, ainda que seja preciso cuidado para afirmá-lo, de José Aricó). Constatou, portanto, que era possível fazer uma crítica dentro dos marcos marxistas desde a Nossa América.



Uma de suas grandes contribuições, e a qual creio deve ser levada muito a sério no âmbito da discussão entre direito e marxismo, é o problema do método. Ludovico Silva, em seu clássico "Anti-manual para uso de marxistas, marxólogos e marxianos", apresenta sua posição de forma incisiva: fazer parte do movimento de práxis proposto por Marx não é rezar sermão e recitar ladainhas. Ainda que possamos discutir sobre os ritos metafísicos nos trópicos e subtrópicos de Ábia-Iala (mesmo que sem a ajuda de Ludovico Silva), um pensamento crítico marxista não resiste a este dogmatismo, apesar de seu apelo inextricável com relação ao rigor teórico e à coerência prática.

Assim sendo, não se pode reduzir a potencialidade do marxismo, inclusive e até em especial na periferia do capitalismo, a um sistema lógico. A lógica dialética - ainda que diferente da lógica formal - não deixa de ser lógica e por isso mesmo não é capaz de apreender a realidade em todas as suas especificidades. Daí que a aposta em uma fórmula dialética pode fazer recair em determinismos e, o pior, em naturalizações. "Tudo é dialética", diria o jargão das esquerdas. No entanto, tornar natural esta construção humana significa querer fazer da história uma válvula compressora, que esmaga e sublima o não-identificável, em prol daquilo que já se pode fazer e conceituar. Enfatizar uma suposta dialética da natureza é dar um atestado de óbito ao não-lugar-ainda das utopias latino-americanas (mas não só). Dessa maneira, a lógica dialética não deixa de ser forma cuja utilização fica adstrita a uma forma de exposição metódica do que a crítica histórica oferece realizar. O sistema filosófico de Marx é maior que seu método, caso contrário reduziríamos as cidades a suas vias de acesso ou os homens a seus telefones.

Nem por isso, todavia, o problema do método deve ser afastado. Tema sempre em voga, em especial com o ascenso crítico do pensamento marxista latino-americano, o método se expressa na tensão entre o captar a totalidade e o partir da exterioridade ético-crítica dos que sofrem com o modo de produzir a vida atual. E é só esta expressão que justifica os lances da escada metódica proposta por Marx, ao dirigir-se da mercadoria ao capital, em sua obra máxima. Mas o ponto de partida da exposição dialética não tem de ser o mesmo ponto de partida do método (totalidade-exterioridade). Daí que faz muito mais sentido se falar em materialismo histórico que em materialismo dialético, mesmo porque este último nunca existiu na produção intelectual de Marx (e é Ludovico quem nos avisa!).

Em termos de discussão sobre o campo do direito, este alerta é deveras importante. A imponência do método nunca poderá sujigar o ímpeto crítico e a perspectiva do todo. Desse jeito, o direito não nasce pura e simplesmente da mercadoria, já que a centralidade do modo de produção capitalista está nas relações sociais que o capital forja. O direito é uma destas relações, e os teóricos soviéticos apreciaram-no muito bem. Entre os críticos contemporânos, esta percepção se desfez em boa medida. Ainda assim, mesmo estes têm o que nos oferecer, em virtude da própria crítica ínsita e cultivada pela figura de Marx.

Se pudésses fazer um paralelo metódico entre a economia política e o direito, poderíamos esboçar uma crítica que vai da norma à relação jurídica imposta pelo capital assim como se caminha da mercadoria ao capital em sua abstração maior. No meio do caminho encontraríamos, porém e por exemplo, o intercâmbio e a forma dinheiro, para a economia política burguesa, da mesma forma que a decisão e o poder estatal, para o direito. O segredo - se é que se trata de segredo mesmo, já que aparenta se tratar muito mais de práxis crítica - está em encontrar as franjas da economia para achar o trabalho vivo (não alienado, portanto), assim como procurar pelo poder dual que a transição socialista permitirá à reflexão jurídica. Esta dualidade está latente, hoje. É preciso impulsionar a organização política popular que ultrapasse a forma jurídica das relações sociais capitalistas, criando um outro valor político-jurídico, à reboque da superação do valor das relações sociais hegemônicas.

Crítica às naturalizações, historicidade material do método - esta é sensivelmente a postura que Ludovico Silva nos oferece, em sua intervenção histórica entre a filosofia e a literatura, a partir do marxismo: uma nova crítica jurídica passa pelo reconhecimento do papel do método e sua submissão à realidade cultural.

Conferir também:

- "Anti-manual para uso de marxistas, marxólogos e marxianos. Ludovico Silva", na página de Hugo Chávez;
- "Ludovico Silva: o problema da alienação", também na página de Chávez;
- o texto escaneado "Marx, Engels e a idelolgia", de Ludovico Silva;
- trecho de documentário da TVenezuela sobre Ludovico Silva.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Poesitando a Guerra

Aqui, uma rápida poesia de crítica as múltiplas formas de guerra que assolam a humanidade e sustentam a economia das potência do mundo, sobretudo Estados Unidos e Israel. Sem qualquer outra tentativa de explicação, deixo a poesia ao cargo da imaginação de quem a leia...
Guerras e guerras e guerras...
E onde andará a Terra?

Gerações do meu Brasil varonil
Dialogando a dialética imbecil.

Cálices no esterco, provérbios intitulados
Enumerando senhas intimidadoras,

Aterrissando ao berço como fadas sedutoras;
Ditando os pedidos: feridas e lados.

Eu vi um cachorro sarnento
Amamentando vários e vários bezerros,
Eu vi um velho sargento,
Agourento, falando (baixinho) seus erros.



- Eu te amo! (sussurando)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Novidades da semana: para ler e comemorar

Esta semana foi de grandes conquistas e comunicações. Seguem alguns relatos destas novidades todas.

Tivemos a felicidade da primeira coluna de nosso companheiro Jacques Alfonsin na Agência Carta Maior e no blogue "RS Urgente". Vamos comemorar a aliança de nosso maior colunista com blogues e páginas do mais alto calibre da comunicação alternativa!
Jacques Alfonsin: nosso blogueiro de plantão em ação!

Em breve, teremos a contribuição de nosso mais novo colunista, Adriano Oliveira, militante do movimento Resistência Popular e do Movimento de Ocupação 28 de maio, do bairro Záchia, em Passo Fundo-RS.

Tivemos acesso a pesquisa da Carla Miranda, intitulada "Na práxis da Assessoria Jurídica Universitária Popular: extensão e produção de conhecimento", no mestrado em direito da Universidade Federal da Paraíba, de 2010.

Recebemos o trabalho da professora da UFTO, Shirley Silveira Andrade, sua dissertação de mestrado em direito na Universidade Federal de Pernambuco, intitulada "Movimento popular como sujeito criador de direitos", de 2003.

Ambas pesquisas já adicionadas em nossa Biblioteca Digital da Assessoria Jurídica Popular.

Concluí, neste domingo e segunda-feira, junto com o Ricardo Pazello, a segunda edição do minicurso "Crítica da crítica crítica: a sagrada família jurídica", com os companheiros do Fórum de Extensão da UFPR (SAJUP, PET Extensão e "Direito e Cidadania"), e com a participação especialíssima de estudantes da Unicuritiba, UFPI e USP. Houve, como no curso de formação em São Paulo, a contribuição da Luisa Paiva, facilitando o momento Teatro Fórum. Quero agradecer imensamente o convite e a participação de todas e todos! Em breve vamos relatar esta atividade por aqui.

Por fim, gostaria de convidar todas e todos para comporem o projeto de pesquisa-ação "Assessoria popular em Curitiba", que será iniciado em 2011. Convidar, especialmente, o coletivo de advogados populares, Fórum de extensão da UFPR e Terra de Direitos. O projeto é proposto também pelos professores Ricardo Pazello e Ivan Furmann.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A formação de uma casta

A formação de uma casta

(que ajuda na tantalização de um mundo)



Imagem do filme “Pink Floyd The wall” (1982- A. Parker).


O texto abaixo foi coletado sorrateiramente da cabeça de uma desconfiada participante de uma solenidade de entrega da carteira da ordem dos advogados, enquanto a moça recebia o documento quase mítico...

“A sacralização das vestes formais, a ostentação do anel, uma solene promessa. A afirmação das normas enquanto tais como ontologia do mundo. Atos que contribuem para manter a bacharela, recém- advogada, numa ilusão de pedestal, afastando-a - ou tentando afastá-la- dos contornos do mundo de cheiros, cores, sons e também de terra e suor que a cerca.

‘Estamos todos realmente acreditando nestes discursos proferidos do alto daquele púlpito? Justiça, igualdade. Acho que já ouvi isso antes...’

Hostes de bacharéis-zumbis para manter as veleidades do nosso sistema e não só o jurídico. Sistema imperfeito, porque humano. A consciência desta imperfeição, contudo, deveria ser um motor a nos impulsionar, a sempre buscar superar as falhas, as injustiças que percebemos. Mas como percebê-las, se estamos imersos num mundo de ritualizações (e trato do jurídico) que distanciam o ser-humano-bacharel, do ser humano que ele mesmo é, oferecendo-lhe uma imagem distorcida e homogeneizada de si mesmo? Isto termina por refletir na própria visão de mundo que aquele indivíduo tem, já que ele é o ponto de partida de tudo o que (indivíduo-mundo). Imensa contribuição ao solipsismo que parece inerente ao direito.

Claro que nem todos optam por utilizar a nova máscara institucional de modo acrítico- e ao longo da vida podemos utilizar várias delas, umas para esconder e outras, paradoxalmente, para revelar. Mas há aqueles que parecem ansiar anos para obtê-la sem, contudo, preocupar-se em manter viva a face que há por baixo dela. Parecem não notar (e eu gosto de pensar que é um tipo de cegueira momentânea da qual nenhum de nós livre está) que agindo deste modo, contribuem para a manutenção daquelas falhas e injustiças.

‘Como eu detesto estas vestes formais...’

Formalidade sem substância gera permanência do mesmo, numa teia de ilusões que num primeiro momento parece até beneficiar a um determinado grupo, mas que, de fato, destrói a todos com a imobilidade, com a apatia, com o conformismo. A própria morte do novo que nem sequer teve chance de ser cogitado.

Se é que ainda é para se querer o direito e, sim, nós “o temos” no aqui e agora, poderíamos pensar numa forma de ser do direito sem tantos rituais, ou ainda com eles, mas desmitificados, desnudados, com seus participantes mais próximos de tudo e todos. Um rito de aproximação e não de distanciamento como o que se vivencia nos anos de graduação, na formatura ou no recebimento da carteira da ordem dos advogados, como esta cerimônia de agora. E estes são apenas alguns dos incontáveis momentos da ritualização castradora que o direito insiste em impor.

‘Por que eu tive que me submeter a isto?’

Neste ponto é de se pensar na relevância da proposta do Luís Alberto Warat, ainda nos idos anos 1980, de carnavalizar o direito: trazendo elementos da informalidade e espontaneidade do social para os ritos do jurídico. Uma das muitas aplicações possíveis de sua deliciosa sugestão, a fim de “sublimar a parte maldita da cultura jurídica.” (A ciência jurídica e seus dois maridos). A carnavalização como instrumento de se evitar a tantalização do mundo praticada pela permanência do mesmo. Em vez de tantalização, concretização.

Como posso cogitar qualquer esboço de transformação se estou presa a tais rituais absurdos que aclamam o velho como novo, o mesmo como necessário, como inquestionável, como imutável, atando minha mente e entorpecendo-a para que eu não possa sequer notar as amarras que me prendem astuciosamente num emaranhado de padrões de comportamento e linguagem institucionalizada, que confirmam uma hierarquia sufocante e mantenedora de práticas deletérias?

‘Tudo passou como num longo filme ruim. A cerimônia está perto fim, mas o fluxo de pensamentos continua. Agora é hora de receber a carteira e posar para a foto ao lado da minha querida mãe e dos ‘famas*’ que me sorriem... Somos todos ‘famas’ ali? “

E foi isso que se conseguiu extrair da confusão que era mente daquela testemunha-participante do evento. Alguns pensamentos foram perdidos, isto é fato, e outra parte estava initeligível- marcada de sensações, não foi possível transcrevê-las. A mente humana realmente não é um livro para ser lido, pelo menos não linearmente... **


*Para saber sobre famas, cronópios e esperanças, ler o segundo capítulo d“A ciência jurídica e seus dois maridos”, Warat, capítulo que recebeu o nome de: ”Balada para um ‘cronópio’: o canto da sensibilidade”.

**E este texto montado numa sistemática um tanto esquizofrênica teve como norte a própria experiência da cerimônia jurídica pela autora, associada às lembranças da leitura do livro “Carnavais, malandros e heróis” do Roberto DaMatta e mais os escritos do Warat, especialmente “A Ciência Jurídica e Seus dois Maridos”. O subtítulo é uma homenagem ao poeta piauiense H. Dobal, que gostava muito desta incrível palavra: “tantalizar.”