Em tempos de encruzilhada, que sempre trazem à tona a refundação do sistema política, por via de reformas estruturantes, é fundamental conhecer a experiência de outros povos. Hoje, trazemos um texto, de Mauricio Wosniak Serenato, sobre o processo constituinte na Islândia, após a crise de 2008, que tem repercussões profundas no que diz respeito às possibilidades de mudarmos o tempo presente.
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Islândia: a insurgência da democracia
Mauricio Wosniaki Serenato
estudante do 5º ano em
Direito da UFPR,
membro do Núcleo de Pesquisa
Constitucionalismo e Democracia.
“Nós, o povo da Islândia, queremos
criar uma sociedade justa que ofereça as mesmas oportunidades a todos. Nossas
diferentes origens são uma riqueza comum e, juntos, somos responsáveis pela
herança de gerações”. Assim é o preâmbulo da nova Constituição da Islândia,
recentemente promulgada, após um momento de verdadeira catarse política. Essas
breves palavras encerram em si mesmas um novo paradigma de constitucionalismo e
democracia para o mundo, que se afasta do discurso de balanceamento entre esses
dois conceitos para, enfim, amalgamá-los por completo. Diferentemente da
Constituição brasileira, por exemplo, que inicia enfatizando em seu preâmbulo a
ação dos representantes eleitos, a Constituição islandesa, logo de início, dá
pista de como seu deu processo constituinte. Tomada por uma catastrófica crise
econômica – para usar os termos do próprio FMI – e por uma conseguinte crise
política, o povo islandês compreendeu que o novo país que se pretendia naquele
momento não caberia nas categorias tradicionais da representação e da política
institucional. Decidiu, portanto, tomar o leme de sua história.
A Islândia, seguindo a tradição
nórdica, figurava a lista de países de bem-estar social, com amplo acesso a
serviços básicos para toda população e uma economia fortemente atrelada ao
Estado. No início do século XXI, no entanto, mormente a partir de 2003, o país
instituiu uma política econômica extremamente liberalizante, privatizando suas
principais e empresas estatais e seus três bancos (Landsbankinn, Kaupthing e
Glitnir). Em um período de 5 anos, esses três bancos, que nunca tinham atuado
fora da Islândia, já haviam emprestado mais de 120 bilhões de dólares, isto é,
quase dez vezes o tamanho do PIB islandês. Não demorou muito para esse novo
sistema ruir. Em 15 de setembro de 2008 o banco Lehman Brothers quebrou, e com
ele entrou em colapso toda a economia mundial. A Islândia, acostumada com seus
bancos contraindo dívidas em dólar e euro e aplicando em moeda nacional, não resistiu:
seus três bancos entraram em bancarrota. Logo após o crash dos bancos islandeses, o desemprego no
país triplicou em questão de 6 meses. Os banqueiros da Islândia perderam cerca
de 100 bilhões de dólares e muitos islandeses perderam
suas poupanças da vida inteira. A dívida da Islândia passou a representar 900%
do PIB e a moeda nacional se desvalorizou 80% em relação ao euro. O país caiu
em uma profunda recessão, com uma diminuição do PIB em 11% em dois anos.
Marx uma vez disse: “a situação desesperadora da época na qual vivo me
enche de esperanças”. Talvez essa tenha sido a pulsão que tomou conta do povo
islandês frente à barbárie, pois a movimentação posterior ao crash foi muito além do que se poderia
imaginar. No final de 2008 tiveram início as massivas manifestações contra o
plano de austeridade proposto pelo FMI e contra o governo do primeiro-ministro
Geir Haarde, um dos responsáveis pela liberalização da economia. Em todo esse
evento político, talvez o momento mais significativo tenha sido a invasão da
delegacia para a libertação de um ativista preso. Haukur Hilmarsson era
ativista ambientalista e anarquista desde sua adolescência. No início das
manifestações ele escalou o prédio do Parlamento e lá içou uma bandeira
indicando que o país estava à venda. Duas semanas após a ação de Haukur no
Parlamento, estava ele novamente no local de sua subversão, acompanhando uma
excursão do colégio. Sabendo-se que no dia seguinte estava marcado novo
protesto, a polícia decidiu prendê-lo naquele momento (qualquer semelhança com
a atuação da polícia brasileira nos protestos contra o aumento da tarifa não é
mera coincidência). Esse foi o ponto de inflexão. No dia seguinte uma multidão
foi à delegacia, munida de paus e pedras. O objetivo: libertar Haukur. A reação
da polícia foi apagar as luzes da delegacia, como alguém que diz: “não tem
ninguém em casa”. Evidentemente não foi efetivo. Haukur foi libertado e a
multidão nesse momento teve certeza de sua força. A ação dos manifestantes foi
uma boa demonstração de política conforme a definição de Jacques Rancière, ou
seja, a ação que foge da política da polícia, atrealada ao status quo, rompendo com ela. Foi o momento do dissenso.
Não demorou muito para o governo cair. Elegeou-se um novo, agora da
Esquerda Verde, principal força opositora do ex-primeiro-ministro responsável
pela liberalização. Qual não foi a surpresa quando o novo primeiro-ministro,
Steingrímur, da esquerda, passou a operar com destreza o plano de austeridade
traçado pelo FMI. Não bastasse a decepção com o novo governo, o país entrou em
nova efervescência política, agora em função do caso Icesave. O Icesave era um
pequeno banco online gerenciado pelo Landsbanki, que tinha por objetivo captar
correntistas fora do país, principalmente Grã-Bretanha e Holanda. Quando houve
o crash em 2008, o Icesave foi
dividido em dois, um banco doméstico, que passou a ser administrado pelo Estado
e um estrangeiro, que seria liquidado. Por certo, Holanda e Grã-Bretanha não
ficaram contentes com a situação e prometeram barrar qualquer tipo de auxílio
financeiro à Islândia. O governo, então, propôs um acordo, passaria a saldar a
dívida do Icesave com os credores internacionais a partir de 2017. A lei foi
aprovada, faltando apenas a assinatura do Presidente da Islândia (cargo
simbólico, de modo que se considerava protocolar a assinatura do presidente
para qualquer projeto que viesse do Parlamento). A população islandesa se
reorganizou e foi às ruas novamente. Centenas de pessoas marcharam até a frente
da casa do Presidente e exigiram que a lei não fosse assinada. O presidente,
acuado, não teve outra opção. Automaticamente foi chamado um referendo popular
para promulgar ou não a lei. O resultado foi estarrecedor: o acordo proposto
pelo Parlamento foi rejeitado por 93% dos eleitores, sendo que apenas 2% foram
favoráveis ao pagamento dos credores internacionais. No início de 2011 o
Parlamento propôs novo acordo, alegando que já se sabia que o valor da massa
falida do banco era maior do que se pensava, de modo que pouco se sacrificaria
as reservas islandesas em prol dos credores. Ainda assim, em novo referendo,
mais de 60% dos eleitores foram contrários ao pagamento.
A Islândia rompeu com os modelos tradicionais de gestão de crise. Deixou
que seus bancos privados quebrassem, deu o calote nos credores internacionais,
perseguiu penalmente os responsáveis pela crise, reestatizou as empresas e
bancos anterioremnte privatizados, e hoje é um dos países qua apresenta as
melhorias mais significativas na economia e no campo social. O ímpeto
insurgente do povo islandês, no entanto, não se limitou a todo esse evento
político. O povo, já consciente de sua força, decidiu por perenizar os
aprendizados de sua insurreição. A crise de representação política,
principalmente após a decepção com o governo de esquerda, demosntrou que era
preciso garantir a participação efetiva do povo na política. Era preciso uma
nova Constituição e ela não se adaptaria aos modelos tradicionais do
Parlamento. Era necessário algo novo, inteiramente novo.
A população nas ruas, além de pressionar pela boicote aos credores
internacionais e contra o FMI, também queria uma nova Constituição para o país.
A Islândia tornou-se independente da Dinamarca em 1944 e basicamente copiou a
Constituição dinamarquesa. O povo queria uma Constituição nova, que se
amoldasse à nova conjuntura política do país e que desse resposta aos anseios
populares por maior participação política, mas sabia que a mudança que
pretendia não seria levada a cabo no Parlamento tradicionalista islandês. A
pressão fez com que o premiêr Steingrímur convocasse uma Assembleia Nacional
Constituinte. No entanto, quem decidiu os moldes da Constituinte foi o povo
islandês. Para tanto, 950 pessoas foram sorteadas entre todo o eleitorado do
país. Estes 950 traçaram as diretrizes políticas da nova Constituição e
definiram de que forma iria se dar o processo constituinte propriamente dito.
Definiu-se que seriam eleitos 25 constituintes, de um universo de 522
adultos não pertencentes a nenhum partido político, mas que tivessem sido
indicadas por, no mínimo, 30 pessoas. A idéia era trazer constituintes das mais
diversas origens, etnias e regiões do país, para garantir um máximo de
representatividade para aquele documento que iria nascer. Todas as reuniões dos
constituintes foram transmitidas on-line e
abriu-se espaço para que a população enviasse, via internet, sugestões para a
nova Constituição islandesa. Mais de 3500 sugestões foram enviadas, todas
apreciadas, e muitas incorporadas ao texto constitucional. Os rascunhos da nova
Constituição eram postados diariamente na internet para que a população
opinasse e revisasse a redação. Ao final, a Constituição Islandesa ainda passou
por referendo popular, tendo sido aprovada e promulgada. O resultado foi uma
Constituição que ampliou significativamente os mecanismos de participação
popular direta, aumentou a transparência e a independência dos três poderes,
introduziu mecanismos de controle social dos atos do Poder Público e assegurou
direitos humanos em todas as suas dimensões.
O caso islandês
inaugura um novo paradigma da temática do Poder Constituinte. Como bem aponta
Antonio Negri, no mais das vezes, “a idéia de poder constituinte é
juridicamente pré-formada quando se pretendia que ela formasse o direito, é
absorvida pela idéia de representação política quando se almejava que ela
legitimasse tal conceito”. A Constituinte da Islândia parece romper com essa
lógica, na medida em que o Poder Constituído é legitimado não com base na
representação política, mas na participação direta da população. Por certo, o
evento islandês é tomado de peculiaridades que não são passiveis de repetição.
No entanto, e aí está o seu grande mérito, ele ascende a esperança frente o
desespero e mostra que outros caminhos são possíveis, seja diante da crise
econômica, seja diante da crise política. A única certeza, contudo, é que para
se construir novas soluções e romper com o status
quo, o povo, todo ele, é imprescindível.
Olá, vejo que se interessa pelo assunto sobre Constituição Federal, então não deixe de ler esta matéria e criticá-la, pois a troca de conhecimento é sempre vantajosa. Obrigado pela atenção e boa leitura!
ResponderExcluirhttp://valdecyalves.blogspot.com.br/2015/10/a-constituicao-federal-completa-hoje.html
"Ao final, a Constituição Islandesa ainda passou por referendo popular, tendo sido aprovada e promulgada. O resultado foi uma Constituição..." Você pode me indicar onde encontrar o texto aprovado e quando foi aprovado pelo Parlamento? incrível mas não acho a informação, só até a parte em que empacou no Parlamento em outubro de 2012...
ResponderExcluirAmanda, quando da escrita desse artigo para o blog a informação que eu tinha era de que a Constituição havia, efetivamente, sido promulgada. No decorrer de minha pesquisa sobre o tema, contudo, cheguei à informação de que, nada obstante a Constituição tenha sido finalizada e colocada em referendo popular - tendo sido aprovada - em razão de um golpe parlamentar, não foi promulgada. De toda forma, segue o link para o texto da proposta de Constituição formulada: http://stjornlagarad.is/other_files/stjornlagarad/Frumvarp-enska.pdf
ExcluirSe me permitir, mando também o link de minha monografia, em que analiso de modo mais pormenorizado toda a situação islandesa, tratando, inclusive, do golpe parlamentar que impediu a promulgação da Constituição: http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/42206/36.pdf?sequence=1