por Ricardo Prestes Pazello
professor do curso de direito da Universidade Federal do Paraná
Duas
e quarenta e cinco. O povo estava na rua, era o soberano – ao menos, assim
parecia – do centro político do estado do Paraná, a praça Nossa Senhora de
Salete. Sempre que trabalhadores, empunhando seus estandartes, tomam este
espaço público, é sinal de que a vitalidade da organização popular não se
perdeu e é definitivamente importante parar para ouvir o que reivindicam. Em
solidariedade à classe trabalhadora, lá estávamos minha companheira e eu, assim
como tantas outras pessoas que se irmanaram pelo mesmo sentimento.
Vozes,
rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras de todos os matizes
embonitavam a praça. O Centro Cívico parecia honrar seu próprio nome, superando
inclusive o peso conservador que toda menção ao civismo costuma aportar. A
beleza do momento não apagava, porém, a tensão instaurada. Cada entidade sindical,
cada movimento social, cada coletivo político, cada grupo estudantil, cada
organização popular trazia suas palavras de ordem marcadas por críticas ao
governador do Paraná e sua proposta de austeridade previdenciária, aos
deputados estaduais que aceitavam votar e aprovar um projeto de lei para
desmantelar a previdência social do estado, ao chefe da segurança pública que
defendia cegamente a ardilosa estratégia político-militar de seu comandante-geral
e aos milhares de policiais que, como jagunços, guardavam o prédio da assim
chamada “Casa do Povo”. O conteúdo de todas as conversas não era diferente.
Lembro-me
bem de ter visto a marcha de um movimento por moradia que se despedia da
concentração dos professores. Estávamos chegando à praça e, enquanto íamos cumprimentando
vários amigos e companheiros de organização popular em frente ao portão de
entrada da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP), ao fundo, víamos
a polícia se perfilando, em especial o batalhão de choque, como se uma guerra
fosse iminente. A movimentação militaresca era imponente e em um dado momento
começou a causar espécie. Por que aquelas personagens fardadas, com roupas
camufladas, de capacetes e armamento vistoso se movimentavam tanto?
Entre
os manifestantes, a polvorosa também iniciou. A batucada e suas marchas-lutas davam passagem a uma
pequena teatralização em que cerca de vinte pessoas vestidas de preto e com
fitas coladas nos lábios arrancavam olhares de cumplicidade e, por vezes,
lágrimas dos presentes. Do caminhão de som, eram emitidas informações e
orientações. Às duas e quarenta e cinco foi anunciado que a sessão do
legislativo iniciaria normalmente. Isto queria dizer que todas as tentativas de
dissuadir os idólatras do governador foram frustradas. Ato contínuo, o som do
caminhão aumentou seu volume e todas as vozes individuais e coletivas falaram
mais alto: “Retira, retira, retira”! (secundariamente, uma disputa entre o
caminhão e o chão: “retira ou rejeita!” versus
“retira ou ocupa!”).
Bomba
e fumaça. Era tudo o que os sentidos podiam captar. Não me lembro exatamente,
mas de repente, já estava de costas para a Assembléia (e para os policiais), andando
apressadamente, na direção oposta à da Casa do Povo. Em poucos segundos, as
pessoas com as quais conversava desapareceram. À minha frente, apenas costas em
correria, pontas de bandeiras e um cenário embaçado. Ainda tive presença de
espírito – de não muita valia para o momento – e comecei a gritar: “devagar,
calma, vamos andar mais devagar!”. Isto porque o empurra-empurra já havia
começado. Eu já levara alguns encontrões e muitas pessoas gritavam e choravam.
Cair e ser pisoteado seria muito pior. Até consegui criar uma pequena zona de
influência mas logo a realidade veio com argumento mais forte: “Olha a bomba”,
me disse alguém. Eu vi a fumaça específica da bomba, mas continuei caminhando
normalmente, para dar o “exemplo” aos primeiros conhecidos que encontrei pelo
caminho. Já estava, porém, atrás do Palácio das Araucárias. No fosso do
palácio, alguns mais afoitos se lançavam para terem uma folga do gás
lacrimogêneo. Olhei para trás e uma senhora, provavelmente uma professora,
chorava muito, combinação de tristeza e gás. Tentei oferecer um copo de água mineral
que apanhei pelo caminho. Ela, de olhos fechados, não me viu e eu tentei falar,
mas o gás foi meu algoz e agora quem chorava era eu. Despreparado, me escondi
em minha própria camiseta e continuei andando até atravessar a rua e chegar a
um lugar seguro. Um estudante repentinamente me ofereceu pano embebido em vinagre
– “Professor, quer vinagre?”, aceitei para aliviar minha constrição mas logo
percebi que quem precisava era ele mesmo. Devolvi. Solidariedade.
A
partir daí, a preocupação foi reencontrar os meus. Depois de algumas
tentativas, consegui contato telefônico com minha companheira, a salvo desde o
começo, melhor posicionada que estava por ter gravado algumas entrevistas mais
afastadas do local do confronto, momentos antes da confusão. De minha parte, já
estava restabelecido, apesar de os olhos arderem e o ar não circular
normalmente, mas tinha certeza de que muita gente poderia estar passando por
momentos de dificuldades (as pessoas mais velhas ou as muito mais novas que eu
tinha visto, para não falar em portadores de necessidades ou ainda nos bravos
militantes que assumiam a ponta do enfrentamento com a polícia – até agora não
me saem da cabeça aquelas quatro ou cinco bandeiras que não pararam de tremular
na frente da manifestação mesmo nos momentos de maior ataque da tropa de choque).
Logo
encontrei jovens advogados populares, ex-alunos, que me informavam das prisões
de alguns manifestantes. Em tempos de guerra, sempre há os bodes expiatórios
para legitimar o ilegitimável. Depois, informações extraoficiais chegaram e já se
fala na prisão de pelo menos uma dezena de pessoas. Acusação: “black blocs”,
seja lá o que isso signifique...
Ao
contornar a praça e voltar para a rua que dá acesso à entrada principal da ALEP
encontrei um antigo professor do ensino médio. Rapidamente, me veio à memória
uma foto que vi nas redes sociais no dia anterior e que me revelava a presença
de três dos meus professores nas manifestações que haviam iniciado segunda e
terça. Viria ainda a encontrar outros dois. Uma verdadeira seleção de
educadores, na luta por seus direitos. Troquei breves palavras de indignação
com o mestre, joguei água no rosto e me dirigi para onde a concentração de pessoas
tinha se deslocado – a rotatória com o tigre esculpido por João Turin, ao lado
da prefeitura.
Nunca
me pareceu tão grande aquela rotatória. Depois de algumas voltas por ela,
começo a reencontrar as pessoas que se perderam. Estudantes, professores,
lideranças sindicais, de movimentos populares e partidos políticos, além de
trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas áreas, a esta altura convocados
para estarem presentes no exato momento em que a história vai se fazendo. Todos
assistindo aflitos ao avanço do tanque de guerra em direção à população, às
bombas lançadas não se sabe de onde (para muitos, dos helicópteros policiais
que sobrevoavam a praça ou do alto dos prédios de onde se avistavam homens
fardados mas também à paisana), às vias de acesso trancadas com velhos ônibus
que trouxeram a soldadesca, ao corre-corre de voluntários carregando feridos na
batalha e à ambulância presa no engarrafamento de manifestantes e policiais. À
margem de tudo mas no meio da confusa situação, muitos policiais militares,
meio atônitos, meio atentos, torcendo para ninguém hostilizá-los nem atear fogo
em suas já ultrapassadas viaturas.
Quatro
e dez. Durante quase uma hora e quinze minutos, o barulho das bombas explodindo
não parava de cessar. Eu estava com uma reunião marcada para as quatro horas,
mas não tinha coragem de deixar o campo de batalha. Comuniquei-me para adiar a
reunião e continuei por ali. Agora, o caminhão de som estava em frente ao
prédio da prefeitura que, a esta altura, já se tornara refúgio e enfermaria de
feridos e atribulados pelo gás. No mesmo local, uma ambulância estacionada
servia de posto de saúde de pronto atendimento. Os discursos ecoavam pelo
Centro Cívico mas, continuamente, as direções sindicais apresentavam sinais de
receio com as circunstâncias. Pediam que os policiais e os manifestantes
recuassem. Ninguém obedecia. Os policiais, porque têm seu chefe em outro
patamar – no da sandice da disciplina militar (aliás, os que se rebelaram,
recusando-se a seguir ordens insanas foram presos); os manifestantes, porque
não se conformavam com a situação e a cada pedido de recuo do caminhão de som,
mãos, bandeiras e vozes acenavam em contrariedade, pedindo para ninguém
esmorecer (de longe, era contínuo o tremular de quatro ou cinco bandeiras na
linha de frente...).
Bala de borracha, suvenir da batalha do Centro Cívico |
Avancei
com o avanço da maioria. Já estava em frente ao Tribunal de Justiça.
Encontrei-me com alguns professores da universidade, estudantes, advogados e
sindicalistas. Por entre as flâmulas, o avanço do tanque do batalhão de choque.
Alguns olhares preocupados, bombas lançadas cada vez mais próximas. Até que a
ponta de uma bala de borracha me acertou em cheio no peito. Minha sorte – e a
de tantos que estavam a meu lado – é que eu acabei sendo um alvo bastante
distante. O projétil sequer chegou a machucar, mas que assustou, assustou. Quando
fui atingido, percebi que era colorido. Comentei que algo colorido bateu em mim
e, segundos após, me entregavam um objeto amarelo, todo chamuscado, que
compreensivelmente guardei como condecoração de guerra. Depois, fiquei sabendo
que a mesma bala, pelo trajeto que fez, quase acertou o rosto de um amigo. Na
seqüência, tivemos de recuar ainda mais, as bombas de efeito moral (ou melhor, imoral)
não nos deixavam em paz.
Ainda
houve tempo para algum falatório de autoridades no caminhão de som. Momento
apoteótico foi quando um senador da república entrou no meio da concentração
com seu carro importado. Os manifestantes correram em direção ao automóvel como
que prontos a destruí-lo. Mas ligeiramente desceu o político que foi ovacionado
pela maioria dos presentes. Principal adversário político do governador, o
senador caminhou alguns metros, com alguma dificuldade, já que apupado e
abordado pelos eleitores, e subiu no caminhão. Seu discurso, eloqüente como de
costume, arrancou alguns aplausos e muitas risadas, porque em nada poupou o governador
eleito, apelidado de “piá de prédio” e outras coisas mais.
Enquanto
todos esses eventos se desenrolavam, incrivelmente a ALEP colocava em votação o
projeto de lei que gerou toda a mobilização de professores e funcionários
públicos estaduais. A proposta feita pelo governador e apoiada por sua bancada
retirava direitos previdenciários de todos, professores, policiais, batalhão de
choque, até mesmo deputados e o próprio governador. A noite começava a cair e
junto dela uma fina chuva de fim de festa. A dispersão parecia inevitável. Todo
o estresse expulsara a maioria das pessoas para suas casas. Até quando fiquei
na praça do Centro Cívico, não pude ter notícia do que se debatia entre os
deputados. Cheguei em casa, por volta das seis horas da tarde. Mais ou menos
neste mesmo horário, 31 votos a 20 aprovaram a lei contra a qual todas as vozes,
rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras se puseram durante estes três
últimos dias, bem como há coisa de dois meses, quando os professores do Paraná ocuparam
a Assembléia Legislativa e conseguiram adiar a votação do pacote de medidas de
austeridade que incluía o confisco da previdência pública estadual.
Os
dias 12 de fevereiro (dia da ocupação da ALEP) e 29 de abril (dia da batalha
pela previdência) de 2015 já ficaram marcados na história das lutas populares
do Paraná. Relembram os momentos heróicos do povo paranaense dos últimos trinta
anos que também se deram na praça Nossa Senhora de Salete, como o famoso 30 de agosto de 1988, em que o governador de plantão (aliás, do mesmo partido do
atual) mandou a cavalaria contra os também professores em greve; como o
truculento 27 de novembro de 1999, quando o governador do turno fez uma
violenta ação de despejo de oitocentos sem-terra acampados na mesma praça para
reivindicarem visibilidade, fim dos assassinatos de seus militantes e,
sobretudo, reforma agrária; e como a memorável semana de 14 a 20 de agosto de 2001,
em que a Companhia Paranaense de Energia – COPEL foi privatizada por um voto do
legislativo estadual, mas com a praça apinhada de pessoas se opondo à ação
criminosa da elite paranaense, a ponto de obter tamanha repercussão que a venda
foi suspensa (ver vídeo do PMDB requianista, por ser instrutivo).
Em
agosto de 2001, quando era estudante secundarista, eu estive na praça do povo
engrossando a campanha “A COPEL é nossa”. Agora, em abril de 2015, reencontrei
um colega de escola e daquelas jornadas. Ele me disse: “nós tínhamos de nos
reencontrar aqui”. Esta é a lição que nós aprendemos naquele tempo; esta é a
lição dos professores ainda hoje. Todo apoio à luta dos trabalhadores do estado
do Paraná, ontem, hoje e sempre!
Nada como um depoimento para refutar muitas das bobagens ditas nos noticiários de ontem a noite.
ResponderExcluirEstava acompanhando pela televisão e pela internet. Mais uma vez aconteceu o que parece que marcará o sepultamento do jornalismo televisivo, centenas de depoimentos, fotografias jorravam nas redes sociais contrariando as mesmas bobagens de sempre da TV.
Mas justiça seja feita, a Leilane, da Globonews, não se aguentou ao ler no teleprompter a notícia do "confronto entre manifestantes e policiais" e depois de ver ela mesma as imagens se entregou com os olhos arregalados dizendo "Gente!...". Momento que valeria um meme.
Por fim, impressão minha ou a linha do Jornal Nacional foi muito diferente da cobertura da Globonews? Seria um reflexo dos mares revoltos de nossos front virais? Oxalá!
Nossa geração está passando de expectador@s para ator@s, viva @s professor@s paranaenses! Viva a classe trabalhadora!
muito bom relato!
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