domingo, 12 de abril de 2015

Coluna O Direito Das Marias - Dos retornos de uma mãe solteira mestra...

Dos retornos de uma mãe solteira mestra... Ou do porquê não queremos ser “guerreiras”



Como algumas e alguns de vocês sabem, eu ando sumida de muitos espaços.
Passei os últimos dois anos matando uns três leões por dia.

No primeiro desses dois anos de afastamento eu ainda me fiz presente em alguns espaços, mas de forma bem mais reservada que a costumada efusividade de antes. Mas, bom, eu estive presente. Quem não lembra desses momentos?

Pesquisa de Campo - 2013

Seminario IPDMS 2013

Mística no I Encontro Nacional do MMC

Reunião Conselho de Seções IPDMS 2013


No segundo, eu me ausentei de verdade, mas ninguém sabe muito dessa ausência e desse silêncio.
As mulheres e os não ditos mais uma vez...
As mulheres e os espaços privados...
Aquele privado que não é...
político?
O que eu estava fazendo?
Alguns diriam que eu estava sendo mãe.
Eu digo que não.
Eu estava sendo mulher.

Deixa eu ver se eu desenho pra vocês entenderem:
É que eu estava sendo mulher nessa sociedade patriarcal e marcada pela divisão sexual do trabalho.
E...
Nessa sociedade em que as mães, casadas ou não, são as responsáveis principais e/ou exclusivas pelas crias.
Nessa sociedade em que políticas como creches não são grande preocupação de espaços como Universidades...
Ser mãe de criança pequena e tentar ser mestra é massacrante.
Você não passa por isso, quando passa.
Você sobrevive.

Nunca “fui” tão mulher, como nesse momento da minha vida.
Nunca fui tão colocada no “meu lugar” de mulher, como nesse momento da minha vida.
Antes eu tinha conseguido escapar de algumas amarras do patriarcado, mas depois que eu fui mãe, não deu mais pra escapar...
Nunca entendi tanto as ausências de muitas companheiras e a presença de muitos caras que, mesmo sendo pais de criança pequena, continuavam nos espaços de militância... que, mesmo sendo pais de criança pequena, acabavam monografias e se formavam nos períodos regulares sem qualquer necessidade de pedido de prorrogação...
Simples: eles não são os principais cuidadores ou mesmo não cuidam de jeito nenhum.
Por que?
Porque eles podem.

Mas o que me aconteceu mesmo?
Eu engravidei, de forma não planejada, no meu primeiro semestre de mestrado. Passei a minha pesquisa de campo inteira, ou com uma gravidez avançada, ou carregando um bebê. Cheguei a ter bolsa, mas tive que abrir mão dela, porque a Universidade não tinha creche e eu precisava sustentar a mim e ao meu filho. Me vi, no meio do processo, com trabalho, filho, mestrado e bicos tendo que gerenciar creche, babá (quando pude ter) e mesmo cuidar diretamente as noites e todos os finais de semana.

Isso quer dizer muito trabalho não remunerado na esfera de cuidados mesmo com babá e/ou creche.

Coisas que só alguém que é cuidadora sabe... médico, compras de alimentos frescos, cozinha, lavagem e passagem constante de roupas, vigília atenta do sono, vigília redobrada durante o período em que a criança (cada vez mais agitada) está acordada, compra de fraldas, remédios, cuidados especiais quando se está doente, noites em claro com febre...

Nessa rotina louca somos muito felizes em alguns momentos, mas ficamos bem desesperadas na maioria do tempo e acabamos nem conseguindo aproveitar com leveza todos os momentos gostosos.

E somos nós, as mães, as principais responsáveis... Exceções que se abrem quando outra mulher nos substitue na tarefa de forma um pouco melhor remunerada que antigamente.

Vamos lembrar que há bem pouco tempo se tinham “escravas domésticas”, mulheres, na sua maioria negras, que trabalhavam sem limitação de carga horária, sem pagamento de horas extras, sem qualquer compensação de horário, as vezes de domingo à domingo, com uma tarde ou dia “livres”.

Graças a PEC do trabalho doméstico, as mulheres de classe média e alta começaram a perceber que, na verdade, precisariam de três (ou mais) trabalhadoras caso quisessem ter apoio constante, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Digo as “mulheres”, primeiro, porque os homens ainda não perceberam isso, porque o trabalho antes não pago e executado pela “escrava” doméstica agora foi “repatriado” pela “sua” mulher.
Digo, também, as de “classe média e alta”, porque as de classe baixa, a grande maioria negra, sempre acumulou de forma gratuita esses serviços dentro de casa e, não a toa, não vemos tantas mulheres negras na Universidade, menos ainda sendo mestras, menos ainda doutoras...

O que nos leva ao seguinte quadro... nós, mulheres brancas ou negras, de classe média ou baixa, e universitárias, somos vistas como disponíveis 24 horas para a criança e a pergunta que fica: estamos em igualdade de condições com as outras mulheres não mães e com os homens, mesmo os que são pais? Claro que não.
Mesmo quando a babá ou a creche está cuidando, nós mulheres é que organizamos toda a infra estrutura para que a criança esteja com esses outros cuidadores o quer dizer um tempo considerável dos nossos dias.
Isso fora o tempo de cuidado direto que dispensamos e as noites veladas, porque essas quase ninguém coloca na conta.
Já ouvi a pergunta: ué, se você vai colocar na creche por que continuar com babá? O que responder? Por que eu preciso de apoio? Por que além da creche temos 16 horas de trabalho que esperam que eu faça de forma não remunerada? Por que esse trabalho precisa ser remunerado até que seja de responsabilidade de todas e TODOS? Por que, quem sabe, eu e outras mulheres também queiramos ter, eventualmente, vida social?
E... finalmente... por que eu tenho uma dissertação ou uma tese pra escrever?

Escreva uma dissertação com isso: criança doente, criança chorando querendo sua atenção, babá que falta ou que espera que você cuide da criança porque, oras, você está em casa “só” estudando, dívidas pra pagar porque você contratou mais cuidadores pra dar conta de escrever, trabalho formal e vários bicos porque você tem que dar conta de pagar toda essa estrutura...

E qual o apoio público que a gente recebe diante desses condicionamentos?
A capes dá só 6 meses de prorrogação da “rica” bolsa que você, até um tempo atrás não podia acumular com nenhum trabalho...
A maioria das universidades não tem creche.

Seja mestra assim! Seja doutora assim!

E isso porque eu consegui, em alguns momentos desses dois anos, ter acesso a creche e babá por conta da renda que eu conseguia com meu trabalho, bicos e com os vários empréstimos familiares ou bancários, que eu ainda hoje pago. E as mulheres que nem isso tem? Como ser mestras e doutoras com isso?

Muitas pessoas têm me chamado de guerreira e corajosa esses dias.
Olha, fui mesmo.
Não tenho nem idéia de como eu consegui fazer.
Mas eu digo com toda a certeza: eu não queria ter sido.
Eu não acho que isso é um mérito.
Eu acho que isso acaba caindo bem em uma das mentiras do próprio patriarcado em um nó com o capitalismo de que as mulheres são capazes de fazer essas múltiplas tarefas e os homens não conseguem.
Muitas de nós não conseguem mesmo e desistem dos seus sonhos no meio do caminho e acabam tendo que ficar na sombra financeira, emocional, política e social de homens.

É o seguinte: o machismo pode matar sonhos e pode dilacerar e massacrar as mulheres que ousam tentar sonhar, mesmo com barreiras e obstáculos materiais tão bem forjados.
Sou mestra, apesar de tanta coisa que quase me impediu de ser.
Me sinto vitoriosa, é verdade, mas além de estar aliviada e feliz, me vem um incômodo que precisa ser dito.
Acho que eu e outras mulheres não queremos ser guerreiras.
Queremos uma outra sociedade em que a divisão sexual do trabalho e os trabalhos ditos reprodutivos sejam de todas e todos e valorizados e valorados de igual forma.

Voltei, Marias.
Não sei ainda bem como será essa volta, mas uma coisa eu prometo, como sempre prometi:
Vamos incendiar esse país!

Um comentário:

  1. Lindo depoimento, Diana, fiquei emocionado! Obrigado por revelar uma parte do universo feminino das mães. Ao nos compreendermos mais oxalá possamos avançar na busca dessa sociedade que desejamos.

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