A coluna AJP na Universidade desta semana traz o irredento relato de uma
advogada popular de Rondônia, em seu incansável compromisso com os
trabalhadores que lutam pela reforma agrária. 3 anos após o assassinato de Renato Nathan
Gonçalves Pereira, liderança camponesa
rondoniense, Lenir Coelho relembra sua luta e sua trágica morte. Em memória de
Renato e de tantos que como ele tombaram, o blogue da AJP se solidariza com a
luta dos camponeses brasileiros pela terra. O texto foi produzido para a
disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da
Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás.
***
CORPO CAÍDO NÃO IMPEDE A LUTA
Lenir Correia Coelho
Advogada
popular em Rondônia, membro da RENAP,
estudante
da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária
(UFG)
Aquele poderia
ter sido um dia igual a qualquer outro em Jacinópolis/RO se não fossem as
dezenas de viaturas passando por aquela estrada da zona rural, se não houvesse
um corpo caído e esse corpo não fosse de uma liderança camponesa.
Foi assim no
dia 09 de abril de 2012, quando o corpo caído na estrada foi objeto da
negligência da Polícia Civil e Militar e houve desrespeito da ordem natural da
investigação – onde se exige, no mínimo, que a polícia isole a área, tire fotos
do local, faça a perícia, identifique o corpo e o libere para os familiares;
mas, não foi isso que aconteceu com esse corpo, tirado do local sem perícia,
identificado e em seguida sua casa invadida e seus bens espalhados, pisados e
recolhidos. Esse corpo era de um camponês, uma liderança local, um organizador
do povo e da luta pela terra.
Procurar o
assassino ou os assassinos do camponês, investigar, provar, é o que se espera
da polícia, mas não foi o que houve. Depois da invasão violenta na casa do “corpo”,
passou-se a um processo difamatório assombroso de exibição na imprensa de que o
corpo era guerrilheiro, bandido, invasor de terras e tudo mais. Como prova da
periculosidade do “corpo”: livros como a Arte da Guerra, Porecatu,
Médicos Sem Fronteiras, mapas, não havia sequer uma faca – faquinha ou
facão –, arma branca que se preste como prova. Saber ler e ler livros foi o
motivo que levou a polícia a considerar o “corpo” guerrilheiro. Num país onde
boa parte da população é analfabeta funcional, realmente, entender o que está
escrito deve ser muito revolucionário.
Os camponeses
que ousaram impor ao Estado uma derrota estrutural na região de Jacinópolis/RO –
ocupando a terra, cortando-a, distribuindo-a entre os camponeses, plantando,
garantindo a segurança das terras, fazendo estradas, construindo escolas,
promovendo o comércio, entre outras atividades sociais e econômicas sem a
interferência ou contribuição do Estado – sofrem as penalidades dessa ousadia.
(TSE TUNG, 1982).
A ousadia dos
camponeses teve como consequência a visibilidade do assassinato de sua
liderança, sem apuração do crime e com claro indício de que os assassinos foram
agentes do Estado, que se escondem atrás dos portes de armas e da inércia do
inquérito para não apurarem as responsabilidades de seus pares, somando-se a
isso o poder concentrado e excessivo que exercem na região fazendo com que os
camponeses não queiram ser testemunhas sob pena de caírem no chão sem vidas
(AGAMBEN, 2004).
O corpo caído
se confunde com o espaço social de conflito de disputa de terras, o Estado
pouco interfere, a não ser para reprimir os camponeses, impondo a estes as
forças dos órgãos da repressão: Polícia Militar, Polícia Civil, SEDAM, IBAMA,
entre outros, que impedem que o acesso à terra cumpra a sua função social, numa
clara demonstração de que predomina na região o Estado de Exceção, com forte
presença do Estado, porém, concentrada em uma única vertente, nesse caso,
somente a força repressiva é utilizada e isso, em tese, tem sido utilizado como
justificativa para se cometer todas as arbitrariedades em nome deste mesmo
Estado (AGAMBEN, 2004). Dentre tais arbitrariedades, a soma de muitos corpos de
camponeses tombados na região, mas, não um “corpo” como aquele. Aquele era
diferente, como diferente era sua sina, pois, caído ao chão, foi capaz de
mostrar que não acabou a luta pela terra.
Os familiares
pediram e a CPT/RO ingressou no inquérito, apontando as contradições,
enfatizando a falta de investigação, responsabilizando a polícia por ter
invadido desnecessariamente a casa do camponês, por ter retido indevidamente os
bens do camponês e, mais ainda, reafirmando que os elementos que envolvem o
assassinato e a investigação policial apontam para o fato de que agentes do
Estado é que cometeram o crime.
Não precisa
ter formação acadêmica jurídica para ver claramente que a falta de vontade de
investigar o assassinato está mais relacionada a uma decisão política do que a condições
materiais, pois, os delegados do inquérito continuam afirmando que o camponês é
guerrilheiro, sem sequer apresentarem uma prova concreta – fato que não faz a
menor diferença, já que a obrigação da polícia era investigar quem teria
cometido o assassinato. A impressão que se tem é que já se sabe quem cometeu o
crime, mas o criminoso está sendo protegido, tanto que sequer se fez exame
cadavérico adequado do “corpo”, sequer se periciou as projéteis retirados do “corpo”
– aliás, eles já se perderam na Delegacia de Polícia.
Não se espera
muito do Estado Burguês, porém, espera-se, no mínimo, uma
aparente boa vontade em apontar os verdadeiros assassinos ou assassino do “corpo”,
que o mesmo seja considerado pelos órgãos públicos como vítima e não como
criminoso, e que, como vítima, aos seus familiares seja garantido o direito de
saber quem ceifou a sua vida.
Enquanto o
inquérito se arrasta é importante manter viva a memória do “corpo” e de todos
os camponeses que tombam diariamente na luta por Reforma Agrária e Justiça
Social, portanto é necessário manter o acompanhamento do inquérito policial. Nesse
aspecto, várias intervenções foram construídas, entre elas realização de ato
público, realização de audiência pública, peticionamento para que MPE e MPF
interfiram no inquérito, enfim, pedido de intervenção Estatal Brasileira e, em não
sendo esta suficiente ou em sendo inerte, pedido de intervenção internacional,
pois a morte de um camponês implica o aumento da violência no campo, a
criminalização da luta pela terra e a desesperança de milhares de camponeses
que esperam e sonham com um lugar para plantar, colher e cuidar de sua família.
A ousadia da advocacia popular, ao acompanhar o inquérito, implica explicar,
paciente e pedagogicamente, para cada camponês e familiares o quanto o Estado é
inerte quando se trata de apurar a morte de uma liderança camponesa.
Ah! Esse “corpo”
tem nome e seu nome foi homenageado em duas ocupações de terras no estado de
Rondônia após seu assassinato, mostrando que se pode tirar o homem da terra,
mas não se pode tirar a luta do homem, principalmente se essa luta tiver uma
história regada a sangue, suor e compromisso social: RENATO NATHAN GONÇALVES
PEREIRA! Presente!
Referências
AGAMBEN, Giorgio.
Estado de Exceção. Trad. POLETI, Iraci D. São Paulo: Boitempo, 2004.
BARATTA,
Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. 3 ed., Rio
de Janeiro: Ed. Revan, 1999.
LABICA,
Georges. Democracia e Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
REVISTA DA
AATR. Movimentos sociais, democracia e Poder Judiciário. Ano 3, n.º 3,
Dezembro, 2005.
TSE TUNG, Mao.
A Carta Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Minas
Gerais: Terra Editora Gráfica, 2003.
_____ . Política.
São Paulo: Ática, 1982.
Depoimento de Renato Nathan no encontro estadual do PRONERA, em 2007, na Universidade Federal de Rondônia
***
Leia também:
Entre coronéis e pistoleiros: um ano sem Manoel Mattos, por Ana Lia Almeida
O latifúndio matou mais um trabalhador sem-terra no Pará, por Diego Diehl
Coluna Direitos das Marias - IV encontro de mulheres do MPA, por Lenir Correia Coelho
Uma aula sobre o direito que nasce do capital, entrevista com Darci Frigo
Nenhum comentário:
Postar um comentário