segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Revolução e direito: mais contradições


Enquanto vivemos momentos de folia no carnaval brasileiro, na Bolívia, país irmão, uma importante discussão institucional tem se dado.

Trata-se do fato de a nova constituição estabelecer, a partir de 2011, que todos os juízes dos tribunais superiores serão eleitos por voto universal dos bolivianos.
Conforme a letra constitucional:

Artículo 182


I. Las Magistradas y los Magistrados del Tribunal Supremo de Justicia serán elegidas y elegidos mediante sufragio universal.

...

III. Las y los postulantes o persona alguna, no podrán realizar campaña electoral a favor de sus candidaturas, bajo sanción de inhabilitación. El Órgano Electoral será el único responsable de difundir los méritos de las candidatas y los candidatos.


Ou seja, estamos diante de uma grande inovação institucional, a qual costuma ser desdenhada pelos costumes jurídicos mais enraizados no direito ocidental. O caso boliviano se mostrará paradigmático por ser corolário de uma verdadeira revolução institucional. De acordo com o vice-presidente boliviano, Álvaro Garcia Linera,

“a Constituição Política do Estado (CPE) estabelece uma revolução do sistema judicial na qual os cargos da administração jurídica em diversos níveis hierárquicos serão escolhidos com o voto do povo pela primeira vez na Bolívia e no mundo” (ver notícia no sítio Xinhuanet).

Ainda assim, porém, este processo não está livre de sérias contradições.

O governo boliviano acabou de aprovar a chamada "Ley Corta" que autoriza o presidente Evo Morales a nomear membros dos órgãos superiores de justiça, reavivando a velha institucionalidade até o final de 2010. Quem o denuncia é Carlos Lara Ugarte que, em Rebelión, escreveu o artigo "Restaurar o dejar morir la vieja institucionalidad". Segundo sua reflexão,

"lo que se encuentra en la 'Ley Corta' son razones para revivir dos viejas instituciones liberales y reaccionarias que ya están constitucionalmente muertas. Se debe ser conciente que el Tribunal Constitucional y la Corte Suprema de Justicia fueron inactivadas por el proceso revolucionario y de cambio estructural del Estado, pero curiosamente la Asamblea Legislativa Plurinacional se esfuerza por revivirla y revitalizarla".


Mais do que questionar um suposto despotismo de Evo, como tem se dedicado a grande mídia brasileira, temos de nos questionar sobre o papel das velhas estruturas jurídicas em um processo que se pretende revolucionário. Talvez para o carnavalesco contexto brasileiro seja pouco palpável pensar nestes termos, mais creio que temos de possuir uma dimensão latino-americana em nosso esforço teórico e o caso boliviano é privilegiada fonte de debate.

De fato, pouco sabemos sobre o poder político-jurídico em Cuba pós-1959 ou na Nicarágua pós-1979. Pouco sabemos, também, sobre o funcionamento político-jurídico do Chile de 1970 a 1973. Continuamos a saber pouco sobre o papel do direito nos conflitos pluriétnicos mexicano, colombiano ou guatemalteca. Continuaremos a nos escusar a olhar para a realidade do "novo constitucionalismo latino-americano"? Até que ponto as constituições venezuelana, equatoriana e boliviana nos dizem menos que o neoconstitucionalismo (de origens críticas, sem dúvidas, mas com descaminhos patentes) italiano ou espanhol? O ianque Duôrquin e sua hermenêutica ou o teutônico Aléxi e sua argumentação podem nos ensinar mais que o processo político vivido sob nossas barbas?

Sem dúvida, não podemos desprezar o que o além-mar tem produzido, mesmo porque precisamos criticá-los e erigir o enfrentamento teórico inclusive com eles. Mas pura e simplesmente deixar de encarar nossa realidade a partir da realidade de nossos vizinhos é desleixo por demais.

Enfim, para mim remanesce e mesmo se acentua a tensão do fenômeno jurídico (entre a necessidade de um direito e a precisão de um não-direito) na lei de transição de Evo, na Bolívia, reativando a velha institucionalidade política dos tribunais superiores, quase que em uma composição conciliatória em prol da governabilidade. E nós, carnavalizadores brasileiros, sabemos bem quão perversa pode ser a defesa de dita governabilidade. Os chilenos e os nicaragüenses, também...

7 comentários:

  1. Realmente Pazello,

    Quando de trata de direito comparado, por que sempre olhamos além-mar?Ou se voltamos nossos olhos para nosso continente, nos detemos unicamente nos EUAAS (Estados Unidos da América Anglo-Saxã)?

    Confesso que saberia até dizer do que tratam Dworkin (Duôrquin) e Alexy (Alèxi)- superficialmente-, enquanto a realidade jurídica dos nossos vizinhos (nossa América Latina) me permanecem envoltas em uma densa neblina...

    E essa experiência da escolha de magistrados por voto popular, em nossos arredores, é importante de ser observada porque, apesar de não-inédita, ocorre em um país latino-americano, uma realidade muito mais próxima desta nossa terrinha aqui (olha só...Somos latino-americanos, também) que aquela apresentada nos países que costumamos tomar como norte.

    Xeru!

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  2. Sim, Pazello

    É Sempre importante ressaltar que, para pensarmos nossa realidade, devemos ter em mente a formação histórica da América-Latina, e criar condições para libertação dos povos oprimidos latino-americanos. Agir com tempo e lugar bem definidos.

    Quanto à essa nova configuração na Bolívia, vejo isso com bons olhos, visto o fato de o Judiciário ser o "poder" mais distante do povo. Não só em relação ao seu acesso, mas dentro mesmo de sua estrutura, com poder decisório, e que possa ter repercussão/legitimidade tanto institucional quanto social.

    Já o fato de Evo "apresentar" essa Lei Corta, supostamente recriando ou legitimando velha instituiçoes jurídicas, fico com o argumento de garantia das mudanças implementadas pelo Evo (ou como queira, governabilidade).

    Não se trata de aceitar tudo, em nome da governabilidade, mas sim por justamente enteder essas transformações como parte de um processo - que, como dito, se pretentede revolucionário -, é que se vem em mente o papel da Elite/burguesia dentro desse processo. Corre-se o risco de retrocessos dentro desse processo, visto que a Direita nunca ficará parada, e nem fará concessões para o Governo, talves seja, então, preciso que se garanta e se legitime certas instituições com identificações com o goverrno revolucionário.

    Mas, claro, que tudo ainda é um grande questionamente, e faço coro com os que - infelizmente - não estão tão a par da realidade da América Latina como deveria, embora ela esteja aí, com suas veias abertas.

    Remeto-me à Lukács que, no seu História e consciência de classes, vai colocar que a questão da legalidade e ilegaligade (termos que ele utiliza, e que eu interpreto como a forma de se utilizar do Direito) é uma questão de conveniênia, de tática, e não se poderia indicar diretrizes gerais, e nessa posição, rejeitar-se-ia a validade da ordem jurídica burguesa, tendo esta consciência de que é o momento histórico que vai guiar essas posições.

    Estavámos discutindo justamente isso dentro do CORAJE, ao debater o texto - indicado, inclusive, pelo Ribas, ao tempo do minicurso - "sistema jurídico e socialismo" em que o então Ministro da Justiça do Chile no governo de Allende, Vieira Gallo, faz uma defesa das táticas utilizadas dentro das esferas Jurídicas. Vieira Gallo tinha consciência dos limites do direito positivo burguês, entretanto para aquele momento, seria tático utilizar-se do ordenamento jurídico vigente, ao invés de uma ruptura, que pudesse gerar uma arbitrariedade maior dentro daquele momento histórico, e tem em mente que é peculiar daquele momento no Chile. Pressburguer fez interessantes críticas à posição do Vieira-Gallo, relembrando o instrumento de dominação que o Direito é, e da necessidade de se romper com um ordenamento jurídico-burguês.

    Mas enfim são grandes dúvidas minhas e que quis compartilhar ao ler o texto. Por fim, fica não só a dica, mas a tarefa, que foi colocada no poste "temos de possuir uma dimensão latino-americana em nosso esforço teórico" e, consequentemente, no nosso agir político.

    Abraços.

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  3. Pazello e Lucas,

    Como eu preciso desses singelos puxões de orelha...

    Xero nos dois!

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  4. Olá

    Esta decisão política do governo boliviano sinaliza para uma alteração significativa dos poderes do Estado, em especial, o Judiciário.
    Como bem lembrou o Lucas, o processo revolucionário, de maneira tática, envolve transformações no ordenamento jurídico burguês que o facilitem - trata-se de miná-lo pela sua resignificação.
    Achei esta medida bastante inteligente, pois a priori, os juízes eleitos serão aqueles alinhados com o processo revolucionário. Assim, mexe-se em peças que não foram mexidas em outros exemplos históricos. Como o Chile de Allende e Vieira-Gallo.
    Conforme criticado pelo Pressburger, foi justamente a permanência do poder judiciário como instrumento da burguesia que atravancou grande parte das mudanças pretendidas por Allende.
    Se trata de tática portanto, esta contradição do direito insurgente, que afirma o novo por si, e também a partir do instituído hoje.
    Acredito que seja um grande passo para a consolidação de um Estado pluriétnico, um regime de pluralismo jurídico intraestatal e popular.
    Quem sabe um dia seja socialista de fato, abrindo caminho para um pluralismo jurídico insurgente e libertador, como quer o Pazello.

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  5. Oi gente

    Ricardo, Lucas e Luiz, acho que divido um pouco dessa "preocupação"expressada nos textos de vocês. Realmente o processo boliviano é inovador se pensado como formas de organização popular podem influenciar dentro do Estado, e aqui não me refiro ao MAS, que ainda tem traços de um partido de concertação, mas aos muitos movimentos sociais que afloram na Bolívia e que passam por um "redescobrimento" da sua identidade histórica como a "outra cara da modernidade"conforme definições de Dussel.
    Porém, no texto do Ricardo, existe algo que é também uma inquietação dos próprios movimentos, que não chega até aqui, nem pela nossa esquerda que me parece às vezes um tanto eufórica, muito menos pela direita segregadora do nosso país.Falo do próprio pluralismo étnico proclamado na Constituição Boliviana, mas que encontra fortes resistências para sua efetiva implementação no país. Alguns autores latino americanos , como Zavalla Mercado, alertam para as dificuldades que esse processo revolucíonário vem enfrentando, pois na Bolívia, o cambio é também uma descontrução da própria noção de nacionalidade imposta na formação do país.
    Um claro exemplo de quão essa resistência é forte e pode frear os avanços para a efetividade do pluralismo étnico e jurídico, foi a reação da extrema direita ao texto constitucional em 2008, com o Massacre de Pando na meia lua boliviana (região mais rica e oligárquica,devido às reservas de gás)em 11 de setembro daquele ano, que colocou em evidência um movimento separatista dentro do país , que acabou conseguindo algumas "vantagens" no texto constitucional aprovado em janeiro de 2009.
    Acho que a discussão sobre as realidades 'dos processos políticos e jurídicos dos outros países latino- amerianos é necessária, para que possamos ter contato também com o pensamento político, sociólogico e filosófico que vem florescendo nos países vizinhos.

    Grande abraço!

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  6. Os constitucionalistas europeus e estadunidenses são referenciais teóricos porque, até hoje, praticamente todas as constituições na América Latina foram inspiradas em cartas de países do Norte, na exata medida em que esses países influenciam as classes dominantes na América Latina.

    Na medida em que os povos e as classes dominadas da nossa "pátria grande" tomam a direção política da história e transformam (e não reformam, não há aqui uma "reforminha qualquer") de A a Z as instituições do velho Estado colonial-colonizado, as referências deixam de estar nos dominadores do atual sistema-mundo para se fixar nos próprios povos.

    Quero dizer com isso que a ausência de debate e de conhecimento sobre esse "novo constitucionalismo latino-americano" não é apenas produto da situação ideológica dos juristas, mas também do fato de essas experiências serem bastante recentes, e poucos são os que se arriscam a analisar o caráter político dessas transformações.

    Agora, não tenhamos dúvidas de quem poderá levantar essa discussão no campo do Direito. Com certeza não serão estes que só se interessam pela filosofia eurocêntrica e pelos teóricos eurocêntricos da moda...

    Este é outro debate importantíssimo que temos de fazer! Acho que desse mato sai (outro) cachorro (já estamos aumentando a criação!!)!

    Abraço!

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  7. Companheiros,

    Fico muito feliz com o debate e verdadeiramente lisonjeado pelo seu alto nível.

    O que posso acrescentar a discussão é o fato de que concordo com a Naiara, a Roberta e com o Diego. Certamente, temos um mundo objetivamente colonial. Nosso sistema jurídico é, sem dúvida, fruto do direito ocidental moderno europeu continental (ufa...). Mas creio também que já angariamos uma complexidade histórica impossível de ser reduzida ao mero reprodutivismo de idéias alienígenas. Tanto assim é que há teóricos do direito do quilate de um Mário Losano (dileto discípulo de Bóbio) que abriu um capítulo inteiro em sua obra "Os grandes sistemas jurídicos" (no estilo do clássico do Renê Davi)para a família jurídica da América do Sul (ao lado dos direitos continental europeu, russo/soviético, consuetudinário da COMMON LAW, islâmico, indiano e da Ásia oriental). Portanto, trata-se de uma situação histórica que deve ser estudada sim (inclusive dogmaticamente) e que abrirá caminhos para que possamos comparará-la a outras similares (como a eleição de juízes na URSS).

    Quanto ao problema levantado pelo Lucas e pelo Luiz, devo dizer que sem dúvida precisamos assumir uma postura tática quanto ao direito positivo (que não se confunde com toda e qualquer regulação social possível e imaginável). Mas sempre cripticamente, afinal de contas, como diria Zizec, nós ajudamos mais as experiências históricas transformadoras criticando-as do que ingenuamente elogiando-as (e Zizec faz expressa menção a Hugo Chávez em sua conferência "O que significa ser revolucionário hoje?" - ver em: http://www.scribd.com/doc/25942733/Zizek-o-que-significa-ser-revolucionario-hoje). E no que se refere ao texto de Vieira-Galo, é preciso perceber que há limites para se pensar o direito como mero instrumento, neutro, que pode ser usado para o bem ou para mal (é um pouco a postura de outro chileno, o Novoa Monreal, que acabou questionando o fato de o direito ser um obstáculo à transformação social, após a experiência finda em 1973). É preciso que tenhamos em mente que há algo mais do que o entendimento de direito-como-instrumento, afinal de contas é uma linguagem frente a qual adquirimos resistência, não por vencermos com ela, mas por perdermos a partir dela. E que fique o alerta final, nas entrelinhas da frase de Salvador Alende, antes do golpe militar de Pinochê, em 11 de setembro de 1973: "Por minha parte declaro, senhores membros do Congresso Nacional, que como esta instituição está baseada no voto popular, nada em sua própria natureza impede que ela se renove para se transformar de fato no Parlamento do Povo. E afirmo que as Forças Armadas chilenas e o Corpo de Carabineros, guardando fidelidade ao seu dever e à sua tradição de não interferir no processo político, serão o respaldo de uma ordenação social que corresponda à vontade popular expressa nos termos estabelecidos pela Constituição. Uma ordenação mais justa, mais humana e mais generosa para todos, mas essencialmente para os trabalhadores, que até hoje deram tanto sem receber quase nada" (discurso "La vía chilena hacia el socialismo", de 21/05/1971).

    Talvez fosse o caso de se pensar com mais acuidade a via guevarista para o socialismo, pois, para Che Guevara, falar em tática revolucionária não era falar em discurso constitucional, já que “parlamento, legalidade, greve econômica legal, reivindicações por aumento salarial, constituição burguesa, libertação de algum herói popular” não passam de "pequenas colinas dominadas pelo fogo cerrado da artilharia inimiga" ("Táctica y estrategia de la revolución latinoamericana", de 1962). É claro, não podemos jogar a água da bacia junto com o bebê dentro. Talvez não tenhamos as condições para deixar de apostar na "via chilena", mas sem dúvida não há guerra de posição que sobreviva sem guerra de movimento.

    Polêmica feita, termino por aqui com um grande abraço a todos os que acompanham nossas discussões neste fértil blogue!

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