Cheguei hoje (01.02.2010) de Santarém, região oeste do Pará, onde estive reunido, durante três dias, com membros e lideranças oriundas de seis etnias indígenas da região do rio Tapajós. As oficinas realizadas durante o evento, com temáticas que perpassavam desde as narrativas históricas e míticas dos povos, até a situação social atual, fizeram-me refletir sobre a seguinte questão: é possível o trabalho de Assessoria Jurídica Popular (AJP) e/ou Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP) com povos indígenas?
A questão não é tão simples de ser respondida. Existem no território brasileiro mais de 220 povos indígenas, totalizando, segundo o Censo 2000 do IBGE, aproximadamente 730.000 pessoas, com crescimento populacional quase quatro vezes maior do que a média nacional. Mas há outras questões em jogo, pois os povos indígenas possuem constituições sociocosmológicas e identitárias específicas que, durante séculos, e ainda hoje, foram discriminadas e dizimadas por práticas coloniais que utilizaram das múltiplas formas de violência para vulnerabilizá-los, ao ponto de excluí-los de espaços sociais e de tutelar o modo como poderiam gerir suas vidas.
Sem dúvida, estes recortes demográfico, cultural, histórico e político se articulam, e podem ser traduzidos, pela linguagem dos direitos, no sentido de representar a construção de conjunturas e percursos que sinalizam as possibilidades de “luta pela” e de “violação da” vida sociocultural das coletividades indígenas em termos de reconhecimento identitário, redistribuição econômica, inclusão social e livre-determinação político-territorial. E é aqui, penso, que a AJP/AJUP pode encontrar maneiras de realizar o assessoramento às aldeias, associações, movimentos e lideranças indígenas, de promover tanto a educação popular em direitos humanos quanto a advocacia popular.
O trabalho da AJP/AJUP com povos indígenas exigiria (e exige) a constatação de que a vulnerabilidade que os assola é conseqüência de relações de poder assimétricas que trazem, na essência, o tratamento da diferença pela lógica da desigualdade, e o desrespeito generalizado, em tempos de Constituição Federal de 1988 e Convênio 169 da OIT, dos direitos coletivos constitucionais e internacionais dos povos indígenas.
O processo de organização política dos povos indígenas, iniciado em meados da década de 70 do século XX, ainda hoje sofre com o descaso do poder público, e do Judiciário especialmente, para com a oferta de políticas públicas e decisões judiciais que concretizem os direitos coletivos, algo diretamente relacionado com a escassez de advogados engajados na tarefa de defesa judicial e os entraves que a assistência do Ministério Público Federal acarreta em muitas regiões do país.
Por outro lado, o trabalho de educação popular em direitos humanos com povos indígenas representaria espaço de mútua aprendizagem, pois o trabalho com povos étnico-culturalmente diferenciados significa o desafio da tradução intercultural dos direitos humanos ante a presença de conceitos e definições que nós, ocidentais, assumimos como normais, desde as noções de pessoa, terra, trabalho e saúde/doença, até as definições de direito e justiça, pois, é preciso lembrar, as coletividades indígenas possuem sistemas jurídicos diferenciados com legitimidade e aplicabilidade local que, devido o processo de colonização, sofreram represálias do monismo jurídico estatal que as tornou ilegais ou clandestinas, dando origem à criminalização das práticas judiciais indígenas.
Este estranhamento das normalidades conceituais ocidentais pelo dialogo intercultural resignifica a própria condição de se pensar e agir (n)o direito, em termos de dogmática e ciência jurídica, mas também aponta para o desafio de potencializar os direitos humanos dos povos indígenas por meio de mobilização que transforme o espaço da educação popular numa possibilidade de ação política centrada no empoderamento dos participantes.
No entanto, seja no âmbito da AJP ou da AJUP, o trabalho interdisciplinar, principalmente com a Antropologia e a Lingüística, seria fundamental, pois o controle dos valores etnocêntricos é algo penoso para quem desde pequeno aprendeu que indígena é aquele que vive harmoniosamente com a natureza ou que possui modos primitivos de vida. A isto se soma a tarefa de buscar auxílio junto aos estudantes universitários indígenas e aos profissionais indígenas.
Penso que o campo de atuação da AJP/AJUP junto a povos indígenas é extremamente promissor, mas ainda pouco difundido. Cada vez mais a mobilização política das instancias organizacionais dos povos indígenas está atrelada a crescente mobilização jurídica, cujo espaço aberto permite múltiplas possibilidades de engajamento das entidades de AJP/AJUP, o que traria contribuição para todos os envolvidos e para (quem sabe?) a transformação do Estado e da sociedade brasileira com relação ao tratamento da diversidade cultural.
Olá, Assis!
ResponderExcluirMuito legal essa sua experiência. Penso que decidir trabalhar com povos de diferentes etnias deve realmente exigir um trabalho de extremo zelo em termos de respeito a toda uma rede de significados próprios que aquela comunidade singular apresenta. Ainda mais quando carregamos, já entranhados em nosso córtex cerebral, conceitos jurídicos dotados de "pureza científica" aparente.
Deve ser uma experiência muito rica!
Espero que renda bons frutos para o assessor e os grupos étnicos dos quais ele pretende se aproximar.
Grande abraço!
Olá Assis e leitor@s
ResponderExcluirPois é, este ainda é um tema pouco trabalhado pelas assessorias estudantis. Por outro lado, existem uma série de advogad@s que tem trabalhado com índios, é uma questão de nos aproximarmos deste pessoal todo.
Fiquei pensando na preparação necessária para desenvolver um diálogo com indígenas/índios/povos tradicionais/povos originários... São tantas identidades, e eu desconheço a discussão sobre qual o termo que os povos tem reivindicado.
Sei que cada povo quer ser chamado pela sua autodenominação, como os Xokleng em Santa Catarina. Mas precisamos de um termo para nomear o conjunto deles, uma tarefa sempre difícil.
Este é um bom começo para a conversa, como que eles querem ser chamados?
O termo "povos tradicionais", pelo que me consta, surgem no mesmo período histórico e pela mesma tradição intelectual do termo "novos movimentos sociais". É progressista quanto à preocupação com uma série de sujeitos atacados das mais diversas formas pelo avanço do capital e da cultura hegemônica no atual sistema-mundo, mas materialmente tem uma série de problemas seja de análise social, seja de auto-reconhecimento por parte dos sujeitos taxados com tal "rótulo".
ResponderExcluirÉ por isso que, de fato, os povos indígenas preferem ser denominados a partir de sua auto-denominação, o que acho que é importante por uma questão de respeito à sua cultura. Se há a necessidade de criar uma categoria que dê conta de todos estes grupos, acho dificil empreendermos nós essa tarefa, e não eles (ou sem eles). Apenas um pitaco quanto a isso.
Considero esse tema importante, especialmente no que se refere à preocupação com os sujeitos com os quais o advogado popular deve atuar. Na medida em que representam uma parte dos "condenados da terra" pela sociedade capitalista-imperialista vigente, os indígenas fazem parte do povo em vias de libertar-se (penso aqui nas categorias propostas pela filosofia da libertação de Dussel).
A questão é saber como o advogado e o educador popular na AJP/AJUP deve atuar de forma consequente com base nas peculiaridades levantadas pelo Assis. Uma das maiores dificuldades, a meu ver, é superar as tentativas de "converter" os indígenas a aceitar passivamente os fundamentos da sociedade do branco (do capitalista, afinal de contas!) a partir do discurso dos DDHH. Sabemos que a ideologia dominante também utiliza os DDHH sob um certo viés para defender seus próprios interesses, e desarmar essa bomba é uma baita tarefa! Dessa forma, temos de estar política e teoricamente preparados para dialogar com os grupos, mostrando como funciona a sociedade capitalista e como se movimentam os potenciais inimigos dos movimentos indígenas (transnacionais, latifundiários, agentes estatais, até mesmo certas ONGs picaretas etc etc). Nessa tarefa certamente também aprenderemos muito com eles!
Tem mais questões aí pra discutir (pluralismo e monismo jurídico; com quem se aliar na AJP/AJUP com povos indígenas; características da ação do advogado popular na defesa dos povos indígenas etc etc), mas fica pra outro dia!
Galera,
ResponderExcluirQue beleza de debate este. Fico feliz pelo interesse demonstrado pelo tema.
De fato, Ribas, a auto-designação destes povos originários varia de acordo com a conjuntura política. É consenso, na maioria dos países latino-americanos, que a designação povos indígenas contempla-os, pois trata-se de mudar o termo índio - aquele termo errado do colonizador que traduz habitante das Índias - por indígena - que em latim significa nativo. Esta designação ganhou força a partir da década de 70, com o surgimento do movimento indígena e do pan-indigenismo, e foi utilizada para articular, viabilizar e reforçar as etnias de fato, aglutinando-as em torno de pautas políticas estrategicamente unificadas.
No entanto, em muitos países, sobretudo no caso da Bolívia e do Equador, que possuem as constituições mais avançadas na atualidade em termos de reconhecimentos da diversidade cultural, o termo utilizado já é nações indígenas, o que traduz a necessidade de pensar os povos indígenas enquanto nacionalidades em igualdade de condições com a nacionalidade boliviana e/ou equatoriana, e tornar o Estado um espaço político onde co-existem multiplas nacionalidades e, portanto, cidadanias.
Acho que Diehl abordam bem a questão das populações tradicionais, um termo que procura unificar todas os grupos sociais vulnerabilizados que lutam, de alguma forma, pelo direito à terra, como componeses, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, ciganos, etc. Mas que não é consenso entre os teóricos e para utilização do público-alvo.
Acho que esta questão que o Diehl aborda é ainda mais profunda do que a discussão sobre a sociedade capitalista, porque mesmo as revoluções socialistas do século XX não acabaram, nem ao menos tentaram acabar, com o machismo, a homofobia, o etnocentrismo colonial e o racismo, por exemplo, o que exige pautar a discussão sobre a sociedade capitalista (e contra o capital, se assim podemos resumir) como um dos pontos de enfrentamento, mas não o único, pois o racismo é algo anterior ao capitalismo e estará presente mesmo depois de seu fim, se não soubermos reconhecer que nestas problemáticas os oprimidos também são produtores de opressões e as relações entre opressores e oprimidos é algo bem mais fluido e complexo, pois até nós, ativistas dos direitos humanos, também cometemos muitas opressões (mesmo quando nos controlamos para não cometê-las) contra aqueles que tentamos ajudar e colaborar, porque nossa segunda pele, a cultura, muitas vezes nos cega para as relações de poder que se desenvolvem nos gestos mais simples.
Enfim, continuemos pensando estas questões abertas...
Assis,
ResponderExcluirConcordo plenamente com suas últimas afirmações sobre a consciência da potencial universalidade da opressão, inclusive da que parte de nós mesmos.
Obrigada!