Ricardo Prestes Pazello,
professor da Faculdade de Direito da UFPR
1º de abril é o dia da mentira, como
todos sabem. Alguns, porém, dissimulam não saber que é o dia do golpe que
implementou a ditadura civil-militar de 1964 no Brasil. Os que mais deveriam estar
alfabetizados neste singelo conhecimento são os juristas. É ainda possível um
douto bacharel em direito, com anel e gravata, além de título de doutor,
desconhecer o razoável? Pode um jurista dar-se ao respeito e colocar-se ao lado
da ditadura?*
Pois é. Ao que parece, o imponderável
parece ainda ter vez. É o que se pode concluir da pretensa aula do professor
Eduardo Lobo Botelho Gualazzi**. Dentre as muitas qualidades deste professor –
quase todas elas relatadas no verbete dedicado a seu nome no projeto Wikipédia*** – está a de escrever suas aulas, para lê-las, tal e qual faziam os velhos “lentes”
das faculdades de direito, diante da estudantada, “sequiosa” por seu conhecimento.
No dia 1º de abril (dia de 48 horas, pelas "confusões" no calendário dos militares) de 2014, data que
comemora o dia da mentira e rememora os 50 anos do golpe militar de 1964,
Botelho Gualazzi dá a conhecer a seus alunos a aula intitulada “Continência a
1964”. O título causa espanto. 50 anos depois do golpe e 29 anos depois da
queda do regime ditatorial, o lente e causídico continua se orgulhando de bater
continência ao escrofuloso evento cinqüentenário. Mais espantosa é a rubrica que
serve de subtítulo à assim chamada aula: “aula proferida na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, no 50º aniversário da Revolução de 31 de
março de 1964”.
Incontinenti, o preletor arregimenta
seus argumentos e, mesmo diante do ponderável espírito que toma a sociedade
brasileira ao rechaçar qualquer tipo de desmemória ou falsa memória sobre o
golpe de 1964, escreve uma “lição” sobre como se forma uma personalidade hostil
à democratização e às transformações sociais. Sem tirar nem pôr, o muitíssimo
respeitoso professor refere-se a si mesmo quando tinha 17 anos de idade e
apoiou o golpe de 1º de abril em “silêncio firme”: cultivava “a)
aristocratismo; b) burguesismo; c) capitalismo; d) direitismo; e)
euro-brasilianismo; f) família; g) individualismo; h) liberalismo; i) música
erudita; j) pan-americanismo; l) propriedade privada; m) tradição
judaico-cristã”. A ordem alfabética alude a alguma ironia, logo precipitada
numa avalancha de insensatez e desrespeito pela história.
O principal argumento do didata é a
guerra fria. Em face dos horrores de Stálin, diz-nos o mestre, não poderíamos
deixar “apoderar-se” o Brasil por uma “minoria secreta de brasileiros/as, com
alma vermelha” e implementar uma ditadura! A solução do insigne explicador: uma
ditadura de direita! As razões do nobre prelecionador não deixam de ter um quê
de verdade: “a Revolução de 31 de março de 1964 consistiu na preservação
[sublinhado no original] da consolidação histórica do perfil brasileiro,
assentado em nosso país desde 1500 (Descobrimento do Brasil)”. Infelizmente,
todavia, o ilustre professor não percebeu estar usando inadequadamente uma
figura de linguagem para arrazoar seu entendimento. Toma a si mesmo como o “perfil
brasileiro” por excelência (aristocratista, direitista, individualista...) e
vê, no 1º de abril de 1964, a salvaguarda dessas imodestas características
humanas, ou seja, toma a parte pelo todo. O quê de verdade na aludida metonímia,
no entanto, reside no fato de que desde 1500 assentou-se no Brasil uma
minoritária mas poderosa parcela de “euro-brasileiros” que, é verdade, são
especialistas em, sem reocupações com ordens alfabéticas, genocídio, etnocídio,
escravismo, ditadura, tortura, corrupção, patriarcalismo e... bacharelismo.
No curso de sua conferência, Botelho
Gualazzi revela ser “janista” (cultor da figura de Jânio Quadros), ao utilizar a
frase: “o século XX foi o forno crematório das ideologias”. A seu ver, em 2014,
já houve um “apaziguamento de ideologias”. Partindo de um antimarxismo vulgar,
o ilustríssimo lente considera “ideologias políticas” apenas aquelas contra as
quais se coloca. De memória curta (em todos os sentidos), esquece que acabara
de caracterizar-se por um perfil burguesista, capitalista, direitista,
liberalista, pan-americanista... Mas sua conclusão é “insofismável”: “o Capitalismo
e o Liberalismo não [sublinhado] são ideologias”. Uma grande explicação para razões
tão grandes quanto.
Seu antimarxismo vulgar vai mais longe:
calcula o PIB do Brasil de 1964 e de 2014, e percebe que ele mais que triplicou
neste período.**** Portanto, “os líderes civis e militares da Revolução de 1964
sabiamente consolidaram, ao longo de vinte e um anos (1964-1985),
infra-estrutura e superestrutura” que imunizaram o país da subversão e do
radicalismo ideológico. Uma vez mais, o ponto cego: a subversão dos ditadores e
radicalismo “direitista” não refletem no espelho; por outro lado, uma vez mais
o ponto vidente: a ditadura foi feita não só por militares, mas também por
civis. Por fim, um ponto de trapezista: o milagre econômico multiplicou nossa
economia, fazendo do Brasil um país “propício” a expurgos, chacinas e torturas,
ou seja, para uma infraestrutura baseada na concentração de renda (mesmo que
multiplicada), uma superestrutura represssiva, burocrática, corrupta e
antidemocrática.
Além de “janista”, o livre-docente é “confederacionista”
e profeta. O futuro do mundo – em 2064 – vai ser marcado por sucessivas confederações
(nacionais, continentais, mundial – e, provavelmente, intergaláctica, como nos
filmes enlatados “euro-americanistas”). O Brasil, por sua vez, terá eliminado a
“peste rubra” dos inofensivos comunistas de hoje. Para o nobilíssimo doutor, o
General Tempo “conduzirá tal minoria ao cemitério, a curto, médio e longo prazo”.
É claro, o exército “temporal” de referido general tem seu estado-maior: no
passado, Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo – e como
freqüentaram os campos-santos (ainda que tornados valas-comuns) estes senhores!***** No presente, cerram fileiras no exército do General Tempo, para trucidar os
pestilentos vermelhos, o Poder Judiciário,****** a Mídia, os Pluripartidos, a
Constituição.
As mãos sujas dos que prenderam
ilegalmente, torturaram, assassinaram e, para completar, ocultaram cadáveres
não se limpam com queimas de arquivo nem tampouco com reconhecimento de firma
(Gualazzi reconhece firma de sua aula escrita). Não há mais espaço, em nossa
sociedade, para estes furibundos argumentos e ações. Nesta aula, ministrada nas
Arcadas do São Francisco, só houve ensinamentos da juventude,******* que
relembraram as sevícias cometidas pelo regime de exceção e adentraram na sala
do senhor Botelho Gualazzi cantando a “Opinião” de Zé Kétti: “podem me prender,
botem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”. No
dia 1º de abril, um professor dá aula de mentira, e causa incontinência em toda
a comunidade jurídica brasileira, mas os estudantes, como documentado no vídeo
abaixo, retomam a verdade, a memória e a justiça!
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Vídeo, na íntegra, do início da aula de Gualazzi e do ato político dos estudantes da USP |
*Dois episódios são ilustrativos das
polarizações que tiveram vez entre estudantes, em geral, e estudantes de
direito, em particular, acerca do golpe de 1964: a 6 de abril de 1964, 120 estudantes da Faculdade de Direito da UFSC assinam um manifesto em apoio ao dia
da mentira; em 1967, 400 estudantes se refugiam da prisão, no prédio da Faculdade de
Direito da UFMG, e deles há um registro fotográfico histórico.
**Disponibilizamos, aqui, a íntegra da aula ministrada por Botelho Gualazzi, no dia 1º de abril.
***Vale a pena conferir o verbete de Wikipédia dedicado ao professor Botelho Gualazzi e conhecer melhor de quem se
trata.
****Um excelente contraponto a tais
interpretações, é a aula inaugural da Faculdade de Direito da USP, feita por
seu docente, o professor Gilberto Bercovici, sobre “Reformas de base e superação do subdesenvolvimento”
*****Interessante conferir alguns pronunciamentos
sobre os números (oficiais e não oficiais) referentes aos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar, bem como alguns relatos que saíram nos meios de comunicação nesta semana
sobre a questão camponesa e indígena.
******Significativo é o depoimento do ministro do STF, Marco Aurélio, dizendo que o golpe de 1964 foi um “mal
necessário”.
*******A juventude, desde 2012, vem
ensinando a justiçar os responsáveis por assassinatos e torturas do regime
militar, pela prática de escrachos. Neste 1º de abril, houve o escracho do
ex-militar e delegado Aparecido L. Calandra, em São Paulo, e do ex-coronel
Pedro Ivo dos Santos Vasconcelos, em Belo Horizonte.
Parabéns pelo texto, Pazello! A oitava série de asteriscos vai pro "Estadão" e seu editorial sobre o "movimento civil militar" de 1964.
ResponderExcluirpretty nice blog, following :)
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