quinta-feira, 30 de abril de 2015

Problematizando o direito, problematizando o ensino jurídico

Numa semana agitada pela continuidade da greves de professores no Paraná trazemos o texto de Marco Antonio Almeida sobre a educação. A contribuição de diferentes educador@s recheiam a análise do advogado Marco Antonio Almeida, de Goiás, na coluna AJP na Universidade, que traz contribuições de estudantes da disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás. 


***

Marco Antonio Almeida

A prática pedagógica, na relação entre educadores e educandos, se perfaz quando da criação das condições fundamentais de emancipação de seus sujeitos, se edificando mutuamente (FREIRE, 1996). Nesse sentido, a evolução do atual contexto social e antropológico pressupõe, necessariamente, a superação de uma cultura hegemonizante que nos é imposta, e sua conseguinte humanização.
Esse processo, por sua vez, se dá ao irromper a hierarquia de valores impregnada nas estruturas sobre as quais se alicerçam a sociedade, sob a forma de “poder”- disciplinante dos corpos e das matérias que dão azo à existência humana.
Portanto, resistir à massificação ideológica a que somos bombardeados cotidianamente requer, inexoravelmente, o questionamento dos índices normativos que regem o corpo social, dentre os quais o direito (SOUSA SANTOS, 2005).
Marco Antonio Almeida é egresso da Turma Especial Evandro Lins e Silva - UFG Goiás
Cabe a nós então sublinharmos a importância das correntes alternativas de interpretação “desse” direito, que vem reproduzindo e legitimando uma moral concebida e, desde então, esculpida tão somente pelo capital (CHAUÍ, 2003).
A fonte alternativa de exegese jurídico-legal, comumente referida como "direito achado na rua", pretende empoderar as classes subjugadas através do reestabelecimento das configurações sociais. Isto é, do operário em relação ao produto final de seu labor; do camponês ou trabalhador agrícola e a terra; de mulheres, negros e latinos, no que tange suas respectivas condicionantes formais, entre tantos outros segmentos sociais explorados e vitimados pelas relações de poder ensejadas pelo “direito do mais forte”.
Para tanto, subvertem as diretrizes que levam ao favorecimento da lógica de dominação técnico-instrumental dentro do direito positivado, em favor da utilização de procedimentos que preconizem as demandas populares (SOUSA SANTOS, 2005).
Sendo assim, para a imersão de um novo paradigma jurídico que venha a legitimar tais demandas, é salutar a desconstrução e, principalmente, a transvaloração do arcabouço sustentado pela lei. Esta que, dada a maneira como é aplicada- descontextualizada e genericamente- gera e intensifica as contradições sociais.
Tal transvaloração, por sua vez, apenas dar-se-á através de uma nova concepção do ensino jurídico, que culmine na revolução da prática legal, calcada na consciência de classes e na consequente identificação dos sujeitos opressores. E, principalmente, que se utilize das lacunas do direito para incidir na sociedade de modo mais justo e igualitário.


Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
__________. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
__________. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2005.

UNESCO. A universidade na encruzilhada. Seminário Universidade: por que e como reformar? Brasília, 6-7 ago. 2003. 

***
Leia também:

Relato em praça de guerra

por Ricardo Prestes Pazello 
professor do curso de direito da Universidade Federal do Paraná

Duas e quarenta e cinco. O povo estava na rua, era o soberano – ao menos, assim parecia – do centro político do estado do Paraná, a praça Nossa Senhora de Salete. Sempre que trabalhadores, empunhando seus estandartes, tomam este espaço público, é sinal de que a vitalidade da organização popular não se perdeu e é definitivamente importante parar para ouvir o que reivindicam. Em solidariedade à classe trabalhadora, lá estávamos minha companheira e eu, assim como tantas outras pessoas que se irmanaram pelo mesmo sentimento.


Vozes, rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras de todos os matizes embonitavam a praça. O Centro Cívico parecia honrar seu próprio nome, superando inclusive o peso conservador que toda menção ao civismo costuma aportar. A beleza do momento não apagava, porém, a tensão instaurada. Cada entidade sindical, cada movimento social, cada coletivo político, cada grupo estudantil, cada organização popular trazia suas palavras de ordem marcadas por críticas ao governador do Paraná e sua proposta de austeridade previdenciária, aos deputados estaduais que aceitavam votar e aprovar um projeto de lei para desmantelar a previdência social do estado, ao chefe da segurança pública que defendia cegamente a ardilosa estratégia político-militar de seu comandante-geral e aos milhares de policiais que, como jagunços, guardavam o prédio da assim chamada “Casa do Povo”. O conteúdo de todas as conversas não era diferente.

Lembro-me bem de ter visto a marcha de um movimento por moradia que se despedia da concentração dos professores. Estávamos chegando à praça e, enquanto íamos cumprimentando vários amigos e companheiros de organização popular em frente ao portão de entrada da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP), ao fundo, víamos a polícia se perfilando, em especial o batalhão de choque, como se uma guerra fosse iminente. A movimentação militaresca era imponente e em um dado momento começou a causar espécie. Por que aquelas personagens fardadas, com roupas camufladas, de capacetes e armamento vistoso se movimentavam tanto?

Entre os manifestantes, a polvorosa também iniciou. A batucada e suas marchas-lutas davam passagem a uma pequena teatralização em que cerca de vinte pessoas vestidas de preto e com fitas coladas nos lábios arrancavam olhares de cumplicidade e, por vezes, lágrimas dos presentes. Do caminhão de som, eram emitidas informações e orientações. Às duas e quarenta e cinco foi anunciado que a sessão do legislativo iniciaria normalmente. Isto queria dizer que todas as tentativas de dissuadir os idólatras do governador foram frustradas. Ato contínuo, o som do caminhão aumentou seu volume e todas as vozes individuais e coletivas falaram mais alto: “Retira, retira, retira”! (secundariamente, uma disputa entre o caminhão e o chão: “retira ou rejeita!” versus “retira ou ocupa!”).

Bomba e fumaça. Era tudo o que os sentidos podiam captar. Não me lembro exatamente, mas de repente, já estava de costas para a Assembléia (e para os policiais), andando apressadamente, na direção oposta à da Casa do Povo. Em poucos segundos, as pessoas com as quais conversava desapareceram. À minha frente, apenas costas em correria, pontas de bandeiras e um cenário embaçado. Ainda tive presença de espírito – de não muita valia para o momento – e comecei a gritar: “devagar, calma, vamos andar mais devagar!”. Isto porque o empurra-empurra já havia começado. Eu já levara alguns encontrões e muitas pessoas gritavam e choravam. Cair e ser pisoteado seria muito pior. Até consegui criar uma pequena zona de influência mas logo a realidade veio com argumento mais forte: “Olha a bomba”, me disse alguém. Eu vi a fumaça específica da bomba, mas continuei caminhando normalmente, para dar o “exemplo” aos primeiros conhecidos que encontrei pelo caminho. Já estava, porém, atrás do Palácio das Araucárias. No fosso do palácio, alguns mais afoitos se lançavam para terem uma folga do gás lacrimogêneo. Olhei para trás e uma senhora, provavelmente uma professora, chorava muito, combinação de tristeza e gás. Tentei oferecer um copo de água mineral que apanhei pelo caminho. Ela, de olhos fechados, não me viu e eu tentei falar, mas o gás foi meu algoz e agora quem chorava era eu. Despreparado, me escondi em minha própria camiseta e continuei andando até atravessar a rua e chegar a um lugar seguro. Um estudante repentinamente me ofereceu pano embebido em vinagre – “Professor, quer vinagre?”, aceitei para aliviar minha constrição mas logo percebi que quem precisava era ele mesmo. Devolvi. Solidariedade.


A partir daí, a preocupação foi reencontrar os meus. Depois de algumas tentativas, consegui contato telefônico com minha companheira, a salvo desde o começo, melhor posicionada que estava por ter gravado algumas entrevistas mais afastadas do local do confronto, momentos antes da confusão. De minha parte, já estava restabelecido, apesar de os olhos arderem e o ar não circular normalmente, mas tinha certeza de que muita gente poderia estar passando por momentos de dificuldades (as pessoas mais velhas ou as muito mais novas que eu tinha visto, para não falar em portadores de necessidades ou ainda nos bravos militantes que assumiam a ponta do enfrentamento com a polícia – até agora não me saem da cabeça aquelas quatro ou cinco bandeiras que não pararam de tremular na frente da manifestação mesmo nos momentos de maior ataque da tropa de choque).

Logo encontrei jovens advogados populares, ex-alunos, que me informavam das prisões de alguns manifestantes. Em tempos de guerra, sempre há os bodes expiatórios para legitimar o ilegitimável. Depois, informações extraoficiais chegaram e já se fala na prisão de pelo menos uma dezena de pessoas. Acusação: “black blocs”, seja lá o que isso signifique...

Ao contornar a praça e voltar para a rua que dá acesso à entrada principal da ALEP encontrei um antigo professor do ensino médio. Rapidamente, me veio à memória uma foto que vi nas redes sociais no dia anterior e que me revelava a presença de três dos meus professores nas manifestações que haviam iniciado segunda e terça. Viria ainda a encontrar outros dois. Uma verdadeira seleção de educadores, na luta por seus direitos. Troquei breves palavras de indignação com o mestre, joguei água no rosto e me dirigi para onde a concentração de pessoas tinha se deslocado – a rotatória com o tigre esculpido por João Turin, ao lado da prefeitura.

Nunca me pareceu tão grande aquela rotatória. Depois de algumas voltas por ela, começo a reencontrar as pessoas que se perderam. Estudantes, professores, lideranças sindicais, de movimentos populares e partidos políticos, além de trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas áreas, a esta altura convocados para estarem presentes no exato momento em que a história vai se fazendo. Todos assistindo aflitos ao avanço do tanque de guerra em direção à população, às bombas lançadas não se sabe de onde (para muitos, dos helicópteros policiais que sobrevoavam a praça ou do alto dos prédios de onde se avistavam homens fardados mas também à paisana), às vias de acesso trancadas com velhos ônibus que trouxeram a soldadesca, ao corre-corre de voluntários carregando feridos na batalha e à ambulância presa no engarrafamento de manifestantes e policiais. À margem de tudo mas no meio da confusa situação, muitos policiais militares, meio atônitos, meio atentos, torcendo para ninguém hostilizá-los nem atear fogo em suas já ultrapassadas viaturas.

Quatro e dez. Durante quase uma hora e quinze minutos, o barulho das bombas explodindo não parava de cessar. Eu estava com uma reunião marcada para as quatro horas, mas não tinha coragem de deixar o campo de batalha. Comuniquei-me para adiar a reunião e continuei por ali. Agora, o caminhão de som estava em frente ao prédio da prefeitura que, a esta altura, já se tornara refúgio e enfermaria de feridos e atribulados pelo gás. No mesmo local, uma ambulância estacionada servia de posto de saúde de pronto atendimento. Os discursos ecoavam pelo Centro Cívico mas, continuamente, as direções sindicais apresentavam sinais de receio com as circunstâncias. Pediam que os policiais e os manifestantes recuassem. Ninguém obedecia. Os policiais, porque têm seu chefe em outro patamar – no da sandice da disciplina militar (aliás, os que se rebelaram, recusando-se a seguir ordens insanas foram presos); os manifestantes, porque não se conformavam com a situação e a cada pedido de recuo do caminhão de som, mãos, bandeiras e vozes acenavam em contrariedade, pedindo para ninguém esmorecer (de longe, era contínuo o tremular de quatro ou cinco bandeiras na linha de frente...).

Bala de borracha, suvenir da batalha do Centro Cívico
Avancei com o avanço da maioria. Já estava em frente ao Tribunal de Justiça. Encontrei-me com alguns professores da universidade, estudantes, advogados e sindicalistas. Por entre as flâmulas, o avanço do tanque do batalhão de choque. Alguns olhares preocupados, bombas lançadas cada vez mais próximas. Até que a ponta de uma bala de borracha me acertou em cheio no peito. Minha sorte – e a de tantos que estavam a meu lado – é que eu acabei sendo um alvo bastante distante. O projétil sequer chegou a machucar, mas que assustou, assustou. Quando fui atingido, percebi que era colorido. Comentei que algo colorido bateu em mim e, segundos após, me entregavam um objeto amarelo, todo chamuscado, que compreensivelmente guardei como condecoração de guerra. Depois, fiquei sabendo que a mesma bala, pelo trajeto que fez, quase acertou o rosto de um amigo. Na seqüência, tivemos de recuar ainda mais, as bombas de efeito moral (ou melhor, imoral) não nos deixavam em paz.

Ainda houve tempo para algum falatório de autoridades no caminhão de som. Momento apoteótico foi quando um senador da república entrou no meio da concentração com seu carro importado. Os manifestantes correram em direção ao automóvel como que prontos a destruí-lo. Mas ligeiramente desceu o político que foi ovacionado pela maioria dos presentes. Principal adversário político do governador, o senador caminhou alguns metros, com alguma dificuldade, já que apupado e abordado pelos eleitores, e subiu no caminhão. Seu discurso, eloqüente como de costume, arrancou alguns aplausos e muitas risadas, porque em nada poupou o governador eleito, apelidado de “piá de prédio” e outras coisas mais.

Enquanto todos esses eventos se desenrolavam, incrivelmente a ALEP colocava em votação o projeto de lei que gerou toda a mobilização de professores e funcionários públicos estaduais. A proposta feita pelo governador e apoiada por sua bancada retirava direitos previdenciários de todos, professores, policiais, batalhão de choque, até mesmo deputados e o próprio governador. A noite começava a cair e junto dela uma fina chuva de fim de festa. A dispersão parecia inevitável. Todo o estresse expulsara a maioria das pessoas para suas casas. Até quando fiquei na praça do Centro Cívico, não pude ter notícia do que se debatia entre os deputados. Cheguei em casa, por volta das seis horas da tarde. Mais ou menos neste mesmo horário, 31 votos a 20 aprovaram a lei contra a qual todas as vozes, rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras se puseram durante estes três últimos dias, bem como há coisa de dois meses, quando os professores do Paraná ocuparam a Assembléia Legislativa e conseguiram adiar a votação do pacote de medidas de austeridade que incluía o confisco da previdência pública estadual.

Os dias 12 de fevereiro (dia da ocupação da ALEP) e 29 de abril (dia da batalha pela previdência) de 2015 já ficaram marcados na história das lutas populares do Paraná. Relembram os momentos heróicos do povo paranaense dos últimos trinta anos que também se deram na praça Nossa Senhora de Salete, como o famoso 30 de agosto de 1988, em que o governador de plantão (aliás, do mesmo partido do atual) mandou a cavalaria contra os também professores em greve; como o truculento 27 de novembro de 1999, quando o governador do turno fez uma violenta ação de despejo de oitocentos sem-terra acampados na mesma praça para reivindicarem visibilidade, fim dos assassinatos de seus militantes e, sobretudo, reforma agrária; e como a memorável semana de 14 a 20 de agosto de 2001, em que a Companhia Paranaense de Energia – COPEL foi privatizada por um voto do legislativo estadual, mas com a praça apinhada de pessoas se opondo à ação criminosa da elite paranaense, a ponto de obter tamanha repercussão que a venda foi suspensa (ver vídeo do PMDB requianista, por ser instrutivo).

Em agosto de 2001, quando era estudante secundarista, eu estive na praça do povo engrossando a campanha “A COPEL é nossa”. Agora, em abril de 2015, reencontrei um colega de escola e daquelas jornadas. Ele me disse: “nós tínhamos de nos reencontrar aqui”. Esta é a lição que nós aprendemos naquele tempo; esta é a lição dos professores ainda hoje. Todo apoio à luta dos trabalhadores do estado do Paraná, ontem, hoje e sempre!

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Estréia da coluna "À frente do front" de Vitor Dieter


Um mês que conta muito

Vitor Stegemann Dieter
Abolicionista, professor e advogado*


Os detalhes são importantes. Você sabe em que mês estamos? Abril, ele nos diz muitas coisas.
Ele revela que as relações de classe no Brasil e os interesses imediatos do Estado coincidem.
Como diria Florestan Fernandes em “A revolução burguesa no Brasil” o que ocorreu durante o período de passagem da formação escravista-colonial (nas palavras de Jacob Gorender) para a etapa de acumulação burguesa não foi um processo de substituição dos senhores de escravo por outros empreendedores. Em realidade foi o próprio convencimento desse setor escravista de que ou eles adaptavam a exploração e o comércio em termos burgueses, tornando propriedade burguesa os domínios de terra e livre a força-de-trabalho; ou eles seriam esmagados pelo comércio mundial. Eles perderiam o status de classe dominante e seriam substituídos por uma inevitável deterioração ou substituição por estrangeiros.

Para não dar os anéis nem os dedos eles tiveram que tomar rédeas do processo. A classe dos senhores de escravos foi forçada a realizar a revolução burguesa. Forçada a tornar a propriedade da terra um “título” que poderia ser negociável.
Mas, aprenderam muito bem com as outras classes aristocráticas na Europa. Associaram seu Capital à Renda.

Vitor Dieter em seus anos de SAJUP-PR, em 2011
A renda é um instituto jurídico maravilhoso para essa classe. Permite manter a riqueza da sua propriedade privada sem ter que trabalhar nela! Sem ter que botar a mão na massa. Que coisa! Como é bom lucrar de um dinheiro que vem do nada.
Só que não é bem assim. A classe rentista precisa de alguém que realize o trabalho na sua terra. Caso contrário a renda não é produzida. Ela é escrava do camponês ou do burguês agrário – aquele que vê a terra como um investimento que produz uma mercadoria que deve ser posteriormente realizada no mercado. Pois é, infelizmente a classe rentista depende dos capitalistas agrários. Isso não os faz, porém submissos a eles. Desde a fundação do Estado Brasileiro, no Império, na República, período Vargas até Redemocratização, os rentistas controlam as relações de classe – portanto também a medida do progresso das forças produtivas no país – de muito perto. Eles controlam tudo via Estado. No Brasil o grande “Capital” vive como uma amálgama com esses “Rentistas”. Essa burguesia capitalista teve por origem e existe somente por causa desse acordo formado, “a cavalo dado não se olham os dentes”.
A origem escravista do Brasil criou um país que na sua origem vive das grandes concentrações de terra. Um país incapaz de pensar a reforma agrária, porque ela, embora uma medida burguesa, prejudica o interesse dessa classe. Uma classe que vive e se reproduz de cima a baixo na estrutura do Estado Brasileiro, encontramos suas digitais desde – e principalmente – cartórios até as grandes licitações, entre controle dos juros até o tipo de armamento da guarda municipal, passando pelas suas relações diretas e imediatas com tribunais de contas, vereadores, ministros e assim por diante.
Existem interesses econômicos conflitantes entre essas classes, mas chegando a uma divisão “justa” entre os dois – e mantendo estáveis as condições de realização das mercadorias no mercado – tudo iria de vento em popa. Só faltava combinar com os russos.
Nisso, quem leva a pior daqui e de lá é um terceiro elemento, um elemento que nenhuma das classes gosta, e preferiria que não existissem: os trabalhadores rurais.

A questão agrária e o MST

O trabalhador rural, aquele sujeito cuja cara, mãos e postura são marcados pelo extenuante trabalho, que tem uma média de vida que é metade do trabalhador urbano, aquele que não raro vive em condições análogas a de escravos, aquele que é calejado, surrado e maltratado. Mas que das suas mãos sai a riqueza do país, de onde sai a soja, a cana, a carne, o couro e tudo que está no nosso café-da-manhã.
Não há espaço para os trabalhadores rurais nesse acordão – ou será nesse “acórdão”? –, nesse bom e velho “esquema” alla brasileira. E quando os trabalhadores descobrem que toda a riqueza dessas duas classes vem do seu trabalho... nessa hora, só falta organização.
O trabalhador rural brasileiro já sabe há muito tempo disso, o que os segura não é a falta de uma ideologia revolucionária, o que falta são os meios de organização. Algo que o MST começou a fazer por todo o Brasil, algo imperdoável.
É tão sensível que no dia 17 de abril de 1996, quando em torno de 1500 trabalhadores marchavam pacificamente protestando pela reforma agrária, a polícia militar, capangas, funcionários estatais e fazendeiros todos decidiram que era demais. Quase como uma repetição do golpe 1964, agiram antes com violência e truculência, e nesse ato covardemente ceifaram a vida de 19 trabalhadores rurais desarmados. Alguns foram mortos com facão, outros à tira roupa. Em um ato, centenas de momentos da nossa história vieram a tona: Canudos e Contestado; Candelária e Carandiru.
Fonte: MST-SC
E o Direito com isso? O Direito, aquele instrumento que garante a igualdade entre cidadãos, garantiu, mais uma vez, a desigualdade entre as classes. Nossos juízes, câmaras e afins sabem muito bem o que fazer. Centenas de anos de história tornou esse nosso Estado muito próximo dessas nossas classes, particularmente aquelas rentistas, proprietárias de terras. Aquilo que vale para o Direito burguês “entre direitos iguais vale a força”, no Brasil pode ser posto assim “entre forças desiguais não existe direito”.
Nossos magistrados, os mesmos que posam nas fotos anticorrupção, foram vendidos muito antes, não por dinheiro, mas por toda uma estrutura. Dos assassinos, dois oficiais pagam o pato. O fazendeiro que mandou matar, os altos burocratas do Estado, esses nunca sequer foram investigados pela polícia ou Ministério Público. Desses detalhes não podemos esquecer, eles falam muito do nosso país, infelizmente.

Detalhes importam, abril é vermelho.

* Mestre pela Università di Padova (UniPd) e Università di Bologna (UniBo), Itália em Criminologia e Segurança Pública, mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Direito Penal e especialista pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC).

***

Leia também:



terça-feira, 28 de abril de 2015

CRDH divulga relatório sobre atuação na Paraíba

Ludmila Cerqueira Correia
Coordenadora técnica do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB



O Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) configura-se como um mecanismo de extensão e pesquisa universitária em direitos humanos. Criado no ano de 2009, o CRDH/UFPB propõe uma interação participativa e crítica por parte da Universidade, da comunidade atendida e dos parceiros envolvidos no processo, compreendendo que a pesquisa e a extensão no curso de Direito (e para além dele) devem envolver as demandas da sociedade, com uma abordagem interdisciplinar e comprometida com a promoção dos direitos humanos.

Após quase cinco anos de atuação, o CRDH/UFPB lançou o seu primeiro livro, em setembro de 2014, o qual apresenta reflexões a partir de cada eixo temático desenvolvido no Centro, com o objetivo de compartilhar as suas ações e estudos, compreendendo a oportunidade do saber científico desenvolver-se de acordo com o saber criado e colocado em prática na dinâmica social.

Eixos de atuação do CRDH/UFPB:
1. Terra e Território
2. Direitos Humanos e Mediação de Conflitos
3. Saúde Mental e Direitos Humanos
4. Sistema Carcerário
5. Gênero e Saúde  


segunda-feira, 27 de abril de 2015

Será que os direitos humanos vão chegar até lá?

Entrevista com Eduardo Fernandes sobre o tribunal do júri do caso de assassinato do advogado popular Manuel Mattos, de 14 a 15 de abril de 2015

Priscylla Joca

Tribunal do juri. FOTO: Eduardo Fernandes-RENAP

O assistente de acusação no caso Manoel Mattos, Eduardo Fernandes, conversou com Priscylla Joca, para a fanpage da RENAP-CE, sobre a importância do caso Manoel Mattos, a situação dos defensores de DHs e como os Direitos Humanos tem se efetivado no Brasil.

O advogado é Professor de Direito da UFPB, assessor jurídico popular na Dignitatis, integrante da RENAP-PB, Coordenador do GT Povos e Comunidades Tradicionais, Questão Agrária e Conflitos Socioambientais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Segue entrevista na íntegra:

***

1) O advogado Manoel Mattos integrava a Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE e atuava, principalmente, contra grupos de extermínio, quando foi assassinado na Paraíba, em 2009. Recentemente, nesse ano de 2015, dois dos cinco acusados foram condenados pelo crime em júri popular (Recife-Pernambuco). Você poderia nos falar sobre os momentos mais importantes que transcorreram, entre 2009 e 2015, para a responsabilização dos acusados e para visibilização do caso?

A execução de Manoel Mattos, no dia 24 de janeiro de 2009, ficará marcada para sempre na memória dos familiares, amigas(os) e companheiras(os) de luta pelos direitos humanos, mas também junto a população mais vulnerável da região de Itambé (PE) e Pedra de Fogos (PB) que tinha em Manoel Mattos uma figura que simbolizava não apenas a advocacia tradicional, mas também o gosto pela política, militância social e participação partidária em várias instâncias, era uma pessoa que gostava de gente, reuniões e principalmente de denunciar os desmandos na administração pública , no sistema de justiça e nas opressões do dia-dia a partir da sua realidade.

Essa data é importante para entender a parte e o todo da questão Manoel Mattos, pois foi a partir dessa execução que encontramos uma síntese da fragilidade do programa de proteção aos (as) defensores (as) de direitos humanos. É importante lembrar que entre os anos de 2002 – 2003 a advogada Valdênia Paulino em São Paulo e o advogado Manoel Mattos em Pernambuco foram os primeiros defensores de direitos humanos com escolta da polícia federal e uma discussão mais densa sobre a criação, instalação e funcionamento deste programa se instaurou definitivamente na agenda dos direitos humanos.

A proteção no caso de Manoel Mattos se dava em face de uma cautelar na Organização dos Estados Americanos conseguida pela Justiça Global, Dignitatis e demais parceiros no final de 2002, que abarcava a Promotora Dra. Rosemary Souto Maior e um ex-pistoleiro (com seus familiares). Este ultimo se tornou um colaborador nas investigações após uma tentativa de queima de arquivo e foi incluído nas cautelares junto com a promotora responsável pelo caso. Nesse momento, a discussão sobre o programa proteção de defensores de direitos humanos mobilizou a sociedade civil, movimentos sociais e as realidades de vários Estados da federação, principalmente a Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Pará, Bahia e Paraná. Para que se tenha uma ideia, 300 execuções entre os Estados da Paraíba e Pernambuco identificadas entre 1994 – 2002 tinha sido registradas, denunciadas e/ou tabuladas por CPIs (04 grandes CPIs nos Estados de Pernambuco e Paraíba – Região Nordeste entre 1999 – 2002), segundo dados consolidados em Relatórios na OEA, ONU e CDDPH. Havia também inquéritos policiais parados, e a população de Pedras de Fogo chegou a destruir a delegacia da cidade em 2006 após a execução de uma criança por um membro de grupo de extermínio. Sendo que em 90% dos casos a autoria era desconhecida,  não havendo dados estatísticos confiáveis , principalmente do lado do Estado da Paraíba. Enfim, o breve contexto aqui relatado é para que se tenha uma dimensão final do problema. Apenas em 2002, foi realizado o primeiro concurso público após a Constituição de 1988 para polícia civil no Estado da Paraíba.

De toda forma, a partir dessa execução em 2009 e de circunstâncias, contextos e lutas similares em todo o Brasil, sob o prisma das criminalizações, perseguições, ameaças e assassinatos de defensores de direitos humanos  (Irmã Dorothy em 2005), a Justiça Global e a Dignitatis resolveram em acordo com Dona Nair (mãe de Manoel Mattos) e demais contatos abrir três frentes de atuação : 1 ) O monitoramento do caso na Justiça Estadual da Paraíba ; 2) Pedido de investigação pela Polícia Federal em face de crime cometido em fronteira e 3) Acionar a Procuradoria Geral da República para que o IDC fosse levado ao STJ, e, por fim, aplicado pela primeira vez na prática após a Emenda 45/04 (Reforma do Judiciário). 

Em relação ao 3º ponto, creio que o papel da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JUSDH), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal e Seccional Pernambuco), Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho Nacional de Direitos Humanos) e dos familiares de Manoel Mattos (Dona Nair principalmente) foram fundamentais, pois a cada dois meses um novo pedido para a PGR para federalização do caso era realizado, também ganhou corpo o interesse pelo tema nas Universidade, principalmente na UFPB e UnB – havendo realização de seminários – e também por outros apoios que se juntaram a questão da federalização, como os apoios de juristas, organizações de direitos humanos do Brasil e de fora do Brasil, toda essa movimentação em janeiro e julho de 2009, que levou, por fim, a PGR a ingressar com o pedido junto ao STJ, bem consistente do ponto de vista jurídico e também cercado de uma articulação política muito importante.

Cronologicamente destacaria:
·         24 de janeiro de 2009: execução de Manoel Mattos e horas antes de um assistido de Manoel Mattos.
·         28 de janeiro de 2009: Justiça Global e a Dignitatis solicitaram ao Ministro da Justiça a aplicação da Lei 10.446/2002
·         10 de fevereiro de 2009: Justiça Global e Dignitatis protocolam requerimento junto a PRG para que seja requerida junto ao STJ a federalização do caso.
·         Abril 2009: Criada a Comissão Especial Manoel Mattos (Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa Humana – Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República) 
·         23 de junho de 2009: PGR protocola o IDC n. 02 junto ao STJ
·         09 de julho de 2009: OEA amplia cautelares para familiares de Manoel Mattos e Deputados Federais Luiz Couto e Fernando
·         11 de janeiro de 2010 perseguição contra Dona Nair Ávila e familiares ao retornar de audiência na Justiça Estadual. 
·         11 de junho de 2010 Atentados, ameaças e novas circunstâncias de intimidação ligam situações em João Pessoa, Itambé e Pedras de Fogo.
·         15 de agosto 2010 – Seminário “Federalização dos crimes contra os Direitos Humanos: estudos e práticas em homenagem ao advogado Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, Justiça Global, Comissão de Direitos Humanos da UFPB, Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.
·         22 de agosto de 2010  pela primeira vez no STJ duas organizações de direitos humanos são admitidas enquanto amicus curiae para argumentar em defesa da federalização.
·         25 de agosto de 2010 começo do julgamento no STJ – suspenso.
·         07 de setembro de 2010  -Carta com apoio de 50 personalidades políticas e jurídicas do Brasil assinam manifesto pela federalização do caso Manoel Mattos, entre elas Frei Betto,  Flávia Piovesan, Dalmo de Abreu Dallari, Paulo de Tarso Vannuchi , Gilda Pereira de CarvalhoIvana Farina Navarrete , Roberto Caldas, Percílio Almeida,  Luciano Oliveira, Cecília Coimbra e outros (as). 
·         07 de setembro de 2010 – Seminário sobre Federalização de crimes contra os direitos humanos é realizado na Unb.
·         08 de setembro 2010 retomada do julgamento com sustentação oral pela Digntatis e Justiça Global, assim como pela PGR através da Dra. Deborah Duprat. Suspenso novamente o julgamento.
·         27 de outubro de 2010 continuação e deferimento do IDC 2.
·         24 de janeiro de 2011 mais uma série de ameaças, intimidações e circunstâncias nas cidades de João Pessoa, Itambé e Pedras de Fogo (Um tiro na sede da Dignitatis é desferido).
·         31 de janeiro de 2011 sede arrombada da Dignitatis – ameaças contra seus associados(as).
·         07 de fevereiro de 2011 atentando contra ex-funcionário de Manoel Mattos em Itambé
·         22 de novembro de 2011 II Seminário sobre “Federalização dos crimes contra os Direitos Humanos: estudos e práticas em homenagem ao advogado Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, Centro Acadêmico Manoel Mattos e CDDPH.
·         13 de novembro de 2013 III Seminário “Federalização dos crimes contra Direitos Humanos: o júri do caso Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, CDDPH e Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB.
·         18 de novembro de 2013 Instalação de Júri no Fórum da Justiça Federal da Paraíba foi adiado por insuficiência de jurados para composição do Conselho de Sentença. Nova data marcada para 05 de dezembro. 
·         04 de dezembro de 2013 Em decisão liminar, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região suspende o julgamento que iria ocorrer dia 05 de dezembro, o pedido de desaforamento pela assistência e MPF/PGR apontavam indícios de intimidação dos jurados.
·         16 de janeiro de 2014. Tribunal Regional Federal da 5ª Região mantém prisão preventiva do sargento reformado da Polícia Militar Flávio Inácio Pereira, apontado como um dos dois mandantes do assassinato do advogado Manoel Mattos.
·         06 de maio de 2014 Criação 36ª Vara Federal, especializada no processamento e julgamento das causas penais (Execução Penal e Crimes Dolosos contra a Vida).
·    * 08 de maio de 2014 A Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região defere, por unanimidade, o pedido de desaforamento.
     14 e 15 de maio de 2015 realização do Júri Popular na cidade de Recife. Condenação de um mandante e um executor.


2) Quais são os próximos passos após o julgamento?

Aguardar a apelação por parte das defesas daqueles que foram condenados, por certo também iremos apelar em face da absolvição de outros dois, aguardaremos a posição do Tribunal Regional Federal da 5 Região para que esse capítulo seja encerrado. De toda forma temos desafios pela frente, existem outros casos conexos que estão em trâmite nas instâncias e instituições competentes que devem seguir a decisão do STJ e as orientações do Conselho Nacional de Justiça, visto que o processo encontra-se abarcado pelo Programa Justiça Plena. Do ponto de vista dos familiares, amigas(os) e companheiros (as) de luta sabemos que a materialização do processo através do júri é um momento de emoções à flor da pele, mas que seja também um tempo de reflexão e compreensão de toda a luta que Manoel Mattos se envolveu e hoje empresta o seu nome para a história dos direitos humanos no Brasil. 


3) De acordo com pesquisa realizada pela ONG internacional Global Witness, o Brasil lidera ranking de violência no campo pelo 4º ano consecutivo, e as maiores vítimas são ativistas ambientais e agrários. Por sua vez, a campanha "Linha de Frente: Defensores de Direitos Humanos" busca visibilizar defensores de DHs no Brasil que vem sofrendo ou sofreram criminalização, ameaças e atentados, dentre estes, Manoel Mattos. Em que medida você percebe que o resultado do julgamento pode servir ao processo de busca pelo fim dessa violência contra defensores de direitos humanos, agrários e ambientais no Brasil?

Não haverá fim da violência contra defensores(as) de direitos humanos, agrários e ambientais, pelo simples fato de que, ao se colocarem em defesa desses direitos, povos, grupos, temas e/ou perspectivas de uma outra sociedade, de um outro modelo econômico, de uma outra perspectiva cultural, de novas/velhas narrativas dos direitos humanos, irão encontrar mais violências, sejam elas físicas, psicológicas, simbólicas e ou de natureza difusa complementar. O recado que o resultado do julgamento aponta na realidade são vários: 1)  Que a vida de Manoel Mattos, a dedicação dos familiares e a articulação da sociedade civil entre si pelo elo de solidariedade não foram e não serão em vão, nem nunca foram na história da humanidade quando se quer mudar algo; 2) Que o funcionamento das instituições do sistema de justiça e do sistema de segurança pública devam ser mais sincronizados com as questões postas pela sociedade civil, movimentos sociais, pesquisadores e institutos, são tantas conferências, seminários, congressos, livros, documentos, cartas e afins, está tudo lá faz tempo; 3 ) Que a sociedade como um todo, ali representada pelos jurados, não aceita mais conviver com a naturalização da violência e impunidade, precisamos de respostas mais práticas para questões relacionadas a federalização, sem dúvida, mas a questão central é que a mensagem sobre o papel de Manoel Mattos enquanto defensor de direitos humanos, ficou perceptível; 4) Que não é suportável mais que as autoridades públicas sejam omissas diante de tantos contextos e relatos de ameaças, abuso de poder, torturas e outros crimes que acontecem todos os dias contra vários “Manoeis” e “Manuelas”, “Marias”, “Carlos” e tantas outras pessoas que tem seus filhos e suas filhas executadas; 5) Que seja possível, para os familiares de Manoel Mattos e das outras 200-300 famílias que estavam representadas nesse caso, mais um conforto pessoal e a compreensão de que as lutas continuarão; 6) Que possamos ter efetivamente a garantia de funcionamento pleno e contínuo de programas de proteção aos(as) defensores(as) de direitos humanos no âmbito federal e nos estados, assim como de outros de programas de proteção à vida (PPCAM e PROVITA), e que estes tenham capacidade de diálogo entre si e para dentro do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo com alguma capilaridade.
 
Manuel Mattos
E, por fim, o mais importante desse júri é que possamos perceber o defensor de direitos humanos enquanto um ser humano em suas próprias circunstâncias, limites e possibilidades. Manoel Mattos foi além do que muitos e muitas podem ir ou poderão suportar, mas que sua ação, reação e luta pelos direitos humanos seja um exemplo para toda pessoa que se indigna com as violências que estão ao redor no nosso cotidiano e mais perto do que se imagina. Em perspectiva global, do que percebemos aparentemente, sempre lembro quando, após a visita em Itambé no ano de 2003 da Relatora da ONU para Execuções Sumárias e Extrajudiciais, Manoel e demais pessoas comentavam encostados no banco da praça enquanto o comboio das autoridades se retirava sob escolta - com uma boa dose ironia e esperança matuta nordestina - : “A ONU veio em Itambé, será que os direitos humanos vão vir também ?”, é esse o desafio, não basta o resultado do julgamento, o que em nossa avaliação é bastante significativo e importante, mas será que os direitos humanos vão chegar lá também ? Vão chegar lá em Goiás? Vão chegar no complexo do alemão no Rio de Janeiro? Em São Paulo nos casos das Mães de Maio? Vão chegar ao Ceará? Vão chegar no Pará e em todas as dimensões de conflitos ali existentes?  Enfim, sempre disse que as Cautelares na OEA e o IDC foi obra de Manoel Mattos, as assessorias, assistência e as instituições apenas emprestaram a forma, ligaram os pontos traçados, promoveram a articulação e consolidaram os elementos finais. Para quem vive uma situação de morte anunciada, a sistematização, organização e encaminhamento dado foi um legado. Gostaria muito que ele visse tudo o que aconteceu e saber que deu algum resultado o que ele apostou em vida, pois apontava que talvez ali em Itambé, Pedras de Fogo e na região “a coisa” não ia andar bem e ele sabia, mas tinha que ficar como repetiu diversas vezes, mas acreditava que os caminhos, as capacidades técnicas e o campo de articulação para que aquele grau de impunidade chegasse ao fim seria através dos mecanismos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos, que seus relatos fossem um alerta ao sistema de justiça, Manoel Mattos sabia que para superar as questões dos grupos de extermínio na divisa “do medo,” que ele gostaria que fosse a divisa dos direitos humanos, só era possível coletivamente, ele foi a ponte entre as vozes invisíveis e uma gama maior de estruturas em busca de justiça. Agora todos e todas se tornaram pontes dele e dos seus assistidos, familiares e desconhecidos. Manoel Mattos, enquanto advogado, trabalhou com uma organização de dados e acompanhamento de fatos que incomodou e ainda incomoda, e que esse seja um exemplo para quem pretende seguir de forma consequente na atuação da defesa dos direitos humanos e/ou da assessoria jurídica popular, a junção de técnica com obstinação, de utopia com organização. Manoel Mattos, presente!

***

Leia também:

Entre coronéis e pistoleiros: um ano sem Manoel Mattos, 31 mar 2010