É Zambi no açoite, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
É Zambi na noite, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
Chega de sofrer, ei!
Zambi gritou
Sangue a correr
É a mesma cor
É o mesmo adeus
É a mesma dor
É Zambi se armando, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
É Zambi lutando, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
Chega de viver, ê
Na escravidão
É o mesmo céu
O mesmo chão
O mesmo amor
Mesma paixão
Ganga-zumba, ei, ei, ei, vai fugir
Vai lutar, tui, tui, tui, tui, com Zambi
E Zambi, gritou ei, ei, meu irmão
Mesmo céu, tui, tui, tui, tui
Mesmo chão
Vem filho meu
Meu capitão
Ganga-zumba
Liberdade
Liberdade
Liberdade
Vem meu filho
É Zambi morrendo, ei, ei, é Zambi
É Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi
Ganga Zumba, ei, ei, ei, vem aí
Ganga Zumba, tui, tui, tui, é Zambi
(Zambi, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo)
Conhecer o Brasil é conhecer a história de suas resistências aliada ao seu quotidiano. E não há como passar ileso por elas, afinal exalam contradições até o último fio de barba em molho do crítico social. Basta conhecer um filho da tribo xavante, que hoje habita o Mato Grosso (mas que, passando por Goiás e Minas Gerais, já esteve no litoral), um agricultor que planta mandioca e butiá no litoral sul de Santa Catarina, um morador de ocupação anarquista do interior do Rio Grande do Sul, uma mulher da federação das favelas do Rio de Janeiro ou um acampado sem-terra dos planaltos do Paraná. É possível sentir algo similar, ainda que com sensíveis diferenças, com um intelectual que defende os direitos humanos na Paraíba ou um estudante universitário engajado nas lutas locais do Piauí.
A Coluna Prestes de hoje tem a missão de, reflexivamente, trazer à tona um testemunho de sua marcha possível pelo Brasil. De Passo Fundo a Teresina, de Imbituba a Uberaba, do Rio de Janeiro a João Pessoa, tudo mostra com uma crueza incrível o que nos faz Brasil. Um só Brasil, envolto em milhares de Brasis. Aliás, a mesma crueza que nos faz uma América Latina integrada. A luta de classes e a opressão do povo em cada monumento colonial de Buenos Aires, em cada banco de Montevidéo ou em cada supermercado de São Paulo. As marcas do capitalismo fazem jus a seu nome: marcam cada cidade, cada morador, cada história.
Em termos de Brasil, voltando a nosso país-continente, é sempre de tirar o fôlego ouvir falar de Palmares. O reino negro palmarino, lembrado na peça "Arena conta Zumbi", da década de 1960, pela pena de Guarniéri e Boal, pelos acordes de Edu Lobo e pelas caras e bocas de seus primeiros intérpretes, é uma marca muito grande para ser ofuscada por todas as demais que nos trouxe o capitalismo do século XX.
E que fôlego é este que falta ao se ouvir sobre Palmares? É exatamente o que decorre da ambigüidade de sua história quando contada nos dias de hoje: a briga de Ganga-Zumba com Zumbi, o suicídio de Zumbi ou a sua morte em plena resistência e, dentre outros, os direitos de Domingos Jorge Velho.
Lendo o livro "Piauhy: das origens à nova capital", de Cid de Castro Gomes, vem a perplexidade. Apesar das anotações sobre as atrocidades do bandeirante Domingos Jorge Velho, o autor abre um despretensioso e bastante contraditório subitem no capítulo dedicado ao pacificador de Palmares: "Domingos Jorge Velho luta por seus direitos". O bandeirante paulista ganha tanta importância para a história piauiense porque teria sido o seu primeiro colonizador não autóctone, junto a Domingos Mafrense.
Pois bem, Jorge Velho fora contratado para desbaratar Palmares e, juridicamente, seu contrato previa várias benesses caso resultasse exitosa sua expedição. Diz-nos o historiador moderno:
"nos seus últimos anos de vida, travou uma intensa batalha jurídica para fazer valer os termos do contrato assinado com o governo de Pernambuco, que lhe assegurava muitos títulos e patentes, quando terminada a guerra dos Palmares. Por sua forte personalidade, arranjara vários inimigos, incluisve a igreja e o próprio governador Melo Castro, com quem se desentendera. Outros governos se sucederam sem que fossem reconhecidos seus direitos. O velho bandeirante resolve apelar diretamente ao rei de Portugal".
O bandeirante (palavra que vem de bandeira e lembra bando, bandoleiro e bandido) pleiteava 1.060 léguas de terra para ele e para os seus oficiais, mas só viria a conseguir 400 delas, além de fundar uma vila. Trocando em miúdos: para assegurar o Brasil-continente de hoje, muito sangue resistente teve de rolar; e para os integradores nacionais, da mesma estirpe de um Duque de Caxias ou de um Raposo Tavares, sobraram-lhes honrarias de todo tipo, terras, cidades, riquezas e algumas pendências jurídicas, é claro (pois como já resgatamos o comentário da lavra do filósofo Vieira Pinto, o direito colonial, imperial e, por que não?, republicano, sempre serviu, por intermédio de seus bacharéis, para resolver os conflitos intestinos às classes dominantes). E o mais irônico: o futuro democrático lhes reservaria homenagens de todo o gênero, como patronato de forças armadas, nomes de rodovias nacionais e, no caso de Jorge Velho, até nome de escola. E é o óbvio: escola é escola e tem de exaltar os seus heróis; e herói é herói...
Para nossa discussão blogueira, o mais interessante continua sendo explorar a pergunta: o direito pode ser instrumento de emancipação? Mais importante do que responder a questão é aceitá-la ou não. Isto porque aceitar a "instrumentalidade" do direito é aceitar a tecnologização do convívio social: análoga à arma, o direito. Será realmente possível acolher, sem estranheza qualquer, este "universal" deontológico? Ainda que possa restar alguma reticência no fato de se estar colocando este pré-questionamento ("podemos/devemos fazer a questão 'o direito é instrumento?'?"), já que pragmaticamente seus desdobramentos são pouco palpáveis à primeira vista, tomar tal postura nos põe de sobreaviso. A tecnologia jurídica é a cibernética da sociabilidade. E quando assim é, despe-se-a da politicidade. Mas isto nos levaria a outros pagos de questionamentos: os instrumentos civilizacionais são políticos em si ou apenas seu uso o seria?
De todo modo, fica a questão, ilustrada aqui com os termos com que o Marquês de Montebelo contrata Domingos Jorge Velho para sua maior tarefa, heróica e escolar:
"Condições e Capítulos que o Governador João da Cunha Souto Maior concede ao Coronel Domingos Jorge Velho para conquistar, destruir e extinguir totalmente os negros dos Palmares [...]:
5 - Que depois de extinguidos os ditos negros se não poderão servir deles nestas Capitanias e será ele Domingos Jorge obrigado a mandar por nesta praça de Recife todas as presas para dela as mandar vender ao Rio de Janeiro, ou a Buenos Aires; e o Sr. Governador lhe disporá e que conformidades o há de fazer; e só poderão ficar nestas capitanias os negros filhos de Palmares de idade de sete anos até doze; que uns e outros serão vendidos por conta do dito Coronel e de sua gente; porque para eles será a sua valia.
[...]
14 - Que o Sr. Governador e Ouvidor Geral lhes concedem perdão geral dos crimes, que tiverem cometido não tendo parte nem sendo dos da primeira cabeça".
Valia, poder e direito (perdão) se unem aqui de uma maneira assombrosa. E a história das resistências políticas latino-americanas abre mais uma enorme porta para se compreender o direito entre nós, em seu colonialismo e tecnologização.
Esta auto-descrição do início mostra um compromisso de conhecer o Brasil em suas entranhas.
ResponderExcluirEntendi o argumento histórico no sentido de problematizar a contribuição que o direito desempenharia na luta social.
Fica ainda para a reflexão o fato de que Palmares constituiu uma estrutura de poder reconhecida como o "reino negro", a contribuição de um Zumbi, o caráter insurgente de sua luta.
Acho relevante a questão proposta pelo Betinho de se "pode o direito ser um instrumento emancipatório". Respondê-la negativamente é nosso papel neste momento, para o dia que formos afirmar este aparato "tecnológico" possamos fazê-lo em nome de Zumbi e não de Domingos.
Acho que há uma questão de fundo desenvolvida por Lyra Filho que precisa ser levantada nesse importante relato histórico do uso do Direito pelo poder colonizador-dominante: será que o Direito se resumia nesse caso ao Direito do opressor, ou havia também um Direito do oprimido que não apenas existia paralelamente ao Direito oficial (o que me parece fácil de afirmar em se tratando de uma experiência da magnitude de Palmares) mas contra ele lutava por se universalizar?
ResponderExcluirSe concedermos o "magnânimo" privilégio de reconhecer a juridicidade apenas ao Direito do oprimido, a resposta certamente será negativa à possibilidade de o Direito se tornar instrumento de libertação. Mas, se considerarmos que há uma dialética social do Direito que engloba também as relações jurídico-sociais não oficializadas dos oprimidos, me parece então que poderemos tratar da questão das potencialidades do Direito de forma menos fatalista, mas sem recair em otimismos ingênuos.
Diego,
ResponderExcluirEu, particularmente, acho que a questão é muito mais complexa do que considerar a positividade ou não do "direito dos oprimidos". Optar por defender esta perspectiva e não considerar todo o debate acerca da universalidade ou não da forma jurídica me parece cortar na própria carne todo o esforço da práxis marxista em superar o próprio direito burguês.
Não se trata de conceder um "magnânimo privilégio" à burguesia de ser a única dona do direito, mas sim de desfazer o "magnânimo privilégio" ao direito de ser universal. A história e a política são universais, mas o direito, a meu ver, se coloca como uma particularidade histórica (o que o insere num dos momentos da universalidade que a história possui, mas nada mais).
As relações sócio-políticas desempenhadas e realizadas pelos oprimidos precisam mesmo se equiparar à forma histórica do direito burguês e seu manto codificador, disciplinador e centralizador estatalmente?
O esforço da teoria crítica do direito, a partir da década de 1970, no Brasil, foi o de aproximar-se a um direito universal, ligado à noção de justiça, e nisso Lira Filho, Torre Rangel e Boaventura, por exemplo, se saíram bem sucedidos. Era o momento das ditaduras latino-americanas e ibéricas. Mas o fizeram à custa de jogar numa espécie de ostracismo teórico o riquíssimo debate soviético. Na verdade, todos resgataram o debate (isto temos de reconhecer!), mas se esforçaram, num determinado momento, em dizer que ele se encontrava superado. A meu ver, não há ledo engano maior. Será realmente impossível avançar rumo a uma visão revolucionária da teoria do direito se não resolvermos os problemas abertos pelo debate entre Estuca e Pachucânis e que a teoria crítica preferiu passar por cima, em nome da aposta na "redemocratização" da periferia e semi-periferia ocidental do capitalismo, trazendo à reboque uma visão "ampliada" e "emancipatória" de direito.
Enfim, esta minha ponderação não importa em negar o uso tático do direito e mesmo o papel da pluralidade jurídica e até do estado na transição pela qual temos de passar caso defendamos mudanças estruturais nas relações sociais. Só chamo a atenção para a importância do debate nestes termos e que ele continue até sairmos do beco histórico em que o fracasso das teorias críticas do direito nos puseram!
Em resumo, existe um direito. O resto, o que realmente se quer, é o além-direito, pois a configuração das necessidades, liberdades e felicidades das pessoas não pode estar centrada em um determinado modelo jurídico, e, a rigor, em nenhum. Por isso, o que considero obsoleto é, antes da discussão sobre a incompletude da dinâmica jurídica e a completude das relações que a extrapolam, o eterno debate "direito do opressor x direito do oprimido".
ResponderExcluirE como disse Pachuzello, mal se chegou próximo da interrogação monolítica imposta nas teorias de Estúca e Paxucânes.