Sua crítica contundente à universidade não faz com que, todavia, se perca o valor dado a ela. Mas tal valor não tem a ver com a história da universidade medieval européia, pois a nossa seria qualitiativamente distinta, seja pelo transplante colonial operado quanto pelas perspectivas que pode oferecer a uma sociedade subdesenvolvida, como gostavam os isebianos – dentre eles, Álvaro – de se referir.
Dessa forma, o autor diagnostica qual o papel da universidade numa sociedade periférica, premida pelo capitalismo das classes internas e do imperialismo: a alienação cultural. E com esta sentença, resume o que significou a sua construção para o Brasil, algo que nunca pode ser perdido de vista por todo estudante de direito:
“só com a instalação da sede do poder colonizador no território da própria colônia, o que iria facilitar, como ocorreu, a independência política, vieram a ser fundadas as primeiras escolas superiores. Estas foram, como é sabido, as de Direito, em Recife e São Paulo, e as de Medicina, na Bahia e no Rio de Janeiro. Compreende-se que assim ocorresse, pois eram estas as oficinas que deviam preparar os especialistas exigidos pela sociedade semicolonial no grau em que se encontrava: advogados para defender os direitos dos senhores de terras, uns contra os outros, e médicos que tratassem da saúde dos membros da classe rica” (p. 18).
Com esta fotografia histórica, Álvaro Vieira Pinto nos traz uma questão de grande importância em tempos de discussão sobre a universidade popular, sobre a centralidade do trabalho e sobre a assessoria jurídica popular. A universidade dominante produz não só o profissional diplomado, mas também – e principalmente! - o não-profissional. É a totalidade que sintetiza, centripetamente, a exterioridade. É Vieira Pinto quem no-lo diz:
“a universidade intervém então, procedendo à triagem dos ofícios admissíveis como aristocráticos, insignes, superiores, separando-os daqueles que classifica como espúrios ou de validade suspeita. Constitui-se deste modo em organismo repressor das funções bastardas e veta o surgimento de funções sociais originais. Cria ao mesmo tempo a hierarquia funcional entre diplomados e os que chama apenas de 'práticos' do ofício, como profissionais modestos, de nível menor. Cria, assim, uma classe de profissionais que sonham com as galas universitárias, sem jamais ter meio de obtê-las. Deste modo surgem as figuras do 'enfermeiro', do 'dentista prático', do 'rábula', do 'guarda-livros', e tantas outras que desempenham a atuação pública eficiente fora dos quadros do ensino oficial, relegados aos planos ínfimos da hierarquia intelectual, por efeito do papel seletivo exercido pela universidade. O mérito inferior que lhes é atribuído não está em relação com a eficácia menor da atividade social que dispendem, mas decorre dos preconceitos de classe, cuja guarda está confiada à universidade” (p. 28-29).
Assim, a certificação do jurista significa ao mesmo tempo, e historicamente, a expulsão do conhecedor popular do direito. Apesar de aparentemente ser uma necessidade do mundo jurídico, na verdade, pode ser interpretada esta tendência como uma burocratização e tecnificação do próprio direito em geral. A autonomia da “ciência do processo” e a multiplicação das disciplinas do direito público (constitucional, administrativo, tributário, financeiro, ambiental, econômico etcétera) dão o tom deste fenômeno que contrasta até com a suposta universalidade romanística do direito por via do direito civil.
O que fica da provocação de Vieira Pinto é, sem dúvida, o fato de que a universidade, tal qual ela se apresenta hoje, tem uma função na sociedade que ainda está bastante distante de ser um serviço popular. Em termos de estrutura histórica, estamos preocupante e demasiadamente perto de 1827 (no caso do direito, data em que se formava "advogados para defender os direitos dos senhores de terras, uns contra os outros") muito mais do que de um 2011 revolucionário. Sem reducionismos, este horizonte merece sempre nossa atenção e impulsiona à crítica de nosso ensino superior e o incentivo à construção do novo, a universidade popular a que tanto almejamos. O livro de Álvaro Vieira Pinto é um exemplo disso e precisa ser lido por todos os críticos do direito.
Onde encontrar este livro, Pazello? Fiquei curiosa...
ResponderExcluir50 anos atrás? O mais triste é que se voltarmos mais no tempo, ainda ouviríamos outras vozes críticas a expor os engodos do nosso mundo acadêmico.
=)
Nem fale, Naiara!
ResponderExcluirOlha só o livro de um estudante de direito português, que pode ser baixado, e que tem o mesmo título do livro do Vieira Pinto: http://www.archive.org/details/questodauniver00lima
Foi escrito em 1907. Voz corrosiva de seu tempo.
Pazello!
ResponderExcluirQue livro é este,caríssimo? Arrebatou-me, já nas primeiras páginas, aquela acidez audaz! Será assim até o final?
1907, em terras portuguesas...Interessantíssimo!
Abração!