domingo, 23 de janeiro de 2011

A repercussão de uma vitória no judiciário: o caso dos laranjais e a luta pela terra

A alegria que não há nos laranjais do latifúndio (arte naif de Araci)

A luta pela terra, em um país com extremíssima disparidade social em torno da propriedade imóvel rural como o Brasil, sempre foi uma das demandas que melhor conseguiu mobilizar a opinião em pública em favor de uma justa distribuição do uso e poder sobre o solo. Em vista justamente disso, talvez, a maior ofensiva contra a "singela" reforma agrária - reivindicada há tempos por organizações populares, políticos progressistas e estudiosos do assunto - venha dos meios de comunicação, haja visto o "caso Cutrale", como veio a ficar conhecido.

Em setembro de 2009, ocorrida a mobilização do MST nos limites da fazenda da Cutrale, onde se planta laranja, a gradne mídia comercial cumpriu seu papel histórico: o de assumir um lado na luta de classes instaurada no país e em todo o continente. Uma despreocupada pesquisa pelas páginas de busca mostra bem isto (ver notas e reportagens de alguns dos principais jornais comerciais sobre o assunto: MST invade fazenda de laranja em Iaras, MST destrói tratores e instalações antes de desocupar plantação de laranja em SP e Invasão da Cutrale: MP aceita denúncia contra 22 sem-terra). E é uma tomada de lado que simplesmente desconsidera a já decantada distinção entre invasão e ocupação, cristalizada em 1990 por um nome do porte de José Gomes da Silva; para não dizer na aguda denúncia de que as terras da Cutrale foram griladas e eram públicas.

Pois bem, após ocorridos os fatos, seguidos de denúncia e prisão preventiva de camponeses sem-terra, vem à tona acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo decidindo sobre o caso, ao apreciar um habeas corpus em prol de mais de vinte integrantes do MST. E a decisão é bastante clara:

"pelo exposto, concede-se a ordem para revogar a prisão preventiva dos pacientes; e, de ofício, concede-se-a também para, declarada a inépcia da denúncia, anular o processo desde o início, ressalvado o direito de ser oferecida nova peça vestibular que preencha, e sem contradição qualquer, todos os requisitos legais."

Mas o que expõe a sucinta decisão colegiada do tribunal paulista? Em primeiro lugar, que a denúncia oferecida não traz os pressupostos mínimos para que possa ter vida nos meandros burocráticos do judiciário, ressaltando-se o fato de que


"a denúncia não descreve referentemente a cada um dos corréus, os fatos com todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). Imputa-se a todos a prática das condutas nucleares dos tipos mencionados. Em outras palavras, plasmaram-se imputações em blocos, o que implicaria correlativamente absolvição ou condenação também coletiva. Isso é impossível. Imprescindível que se defina qual a conduta imputada a cada um dos acusados. Só assim, no âmbito do devido processo legal, cada réu poderá exercer, à luz do contraditório, o direito de ampla defesa."


Em segundo lugar, o acórdão também rejeita, com certa veemência e espirituosidade, algo que tem sido recorrente nos casos envolvendo os fortes movimentos populares brasileiros, em especial os do campo: a alegação de infringência dos crimes contra segurança nacional, da lei 7.170, de 1983 (atenção para a data!). Com a onda de repressão ao terrorismo que chegou a uma mesma espécie de auge qualitaitivo com o 11 de setembro de 2001, os aparatos de repressão de todo o ocidente têm lançado mão desta definição para enquadrar várias condutas transgressivas e insurgentes. Em território brasileiro, esta importação chegou a sua máxima morbidez com a ação civil pública do Ministério Público do Estado Rio Grande do Sul, propondo a dissolução do MST, caracterizado como "pessoa judiciária" apta a responder em juízo e como entidade terrorista que mereceria punição por crimes contra a segurança nacional. Trocando em miúdos, desencavaram a lei requentada do final da ditadura (e que até foi reeditada com bons propósitos) - conferir artigo de Heleno Fragoso, sobre referida lei, intitulado "A nova lei de segurança nacional".


Cabe-nos, a partir desta vitória na esfera do judiciário, questionar o que ela significa no panorama geral do direito oficial brasileiro, notadamente a partir das reflexões da assessoria jurídica popular. Isto porque trabalhamos nos quadrantes da crítica ao direito estatal e às limitações de seu monismo - ou sua monocultura de saberes, para fazer uso de uma terminologia mais modernosa, o que implica, em alguma medida, adotar uma visão do direito achado na rua, do direito insurgente ou de pluralidade jurídica. O puro e simples garantismo constitucionalista nos deixa refém de uma ordem em que é espinhosa sua defesa sem mais.


Muitos teóricos e assessores jurídicos populares vêm ressaltando esta problemática, no exato sentido que demonstra que as vitórias legislativas ou judiciárias podem ter efeitos perversos. Isto não quer dizer que se deva trabalhar com um instrumental teórico que preconize o fracasso nessas disputas políticas institucionais, mas sim com uma armadura crítica que anteveja que estas vitórias são sempre provisórias e contingentes. Afinal de contas, não são as classes populares que estão no timão desse processo histórico. Em todo caso, fica ressaltado que "as derrotas jurídicas sempre são vitórias políticas" na medida em que organizam os atingidos e dão espaço à conscientização (conforme verbete de Luiz Otávio Ribas sobre o advogado e assessor popular Jacques Alfonsin).


Os absurdos técnico-jurídicos se avolumam (como nos dois casos citados, o dos laranjais e o do MP gaúcho) e dariam, no mínimo, uma tese de doutorado. Por outro lado, a aceitação de novas argumentações jurídico-políticas entram muito penosamente no livre convencimento na classe causídica, pública e privada. Nesse sentido, é preciso dizer que algumas interpretações progressistas também podem ser consideradas "absurdas" e, portanto, esta não é a melhor vereda para seguir na crítica ao direito que emana de nossas instituições jurídicas. Fazê-lo significaria submetermo-nos a seus pressupostos (o jargão amebóide e pouco preciso da democracia, cidadania, sociedade civil e constituição - ainda que esta última tenha considerável dose de objetividade em seu uso).


O que importa, por ora, é incorporar a vitória judiciária no rol das bem-aventuranças dos movimentos populares dentro do judiciário (mesmo porque cerca de dez pessoas estavam sofrendo na carne, cruamente, os malefícios da prisão e outras tantas estavam ameaçadas de também participarem dos horrores deste patíbulo) e não continuar criando muitas expectativas de que mais delas venham. Pode haver alguns juristas alternativos, mas eles são a minoria. O único caminho que se pode continuar indicando - ainda que isto não seja novidade para quaiquer movimentos sociais e popular - é o da organização política, no mundo da vida e dos fatos. Porque o mundo dos autos é bastante pobre, ainda que às vezes se sensibilize com uma canção popular como a de Ataulfo Alves, lembrada por uma advogada popular: "laranja madura na beira da estrada/ Tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé".

Um comentário:

  1. Dos últimos tempos, esse certamente foi um dos casos emblemáticos...

    É a partir de situações como essa, que coloca na berlinda os principios constitucionais e os fundamentos democráticos do Estado brasileiro, que se enxerga as contradições, os interesses, as lacunas, o que ainda pode ser feito ou mesmo os seus limites (o que não pode ser feito dentro dele).

    E difícil manter o diálogo quando se ouve da boca de quem é formado em direito e supostamente iniciado nos princípios processuais e nas normas constititucionais, a condenação prévia de inocentes- conforme o próprio acórdão mencionado concluiu- pura e simplesmente pela força da imagem midiática. Força essa que deveria fazer parar para trazer à tona pelo menos a mais singela e devastadora das dúvidas: será que a história só tem esse lado, mesmo?

    É isso.

    Abraço

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