terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O Direito e as cadeiras

Em continuidade ao nosso espaço lúdico, disponibilizamos o texto-poema-crônica enviado por nosso colaborador Vladimir Luz, Professor da UNESC, ex-aluno da Faculdade de Direito da UFBA e integrante do SAJU-BA:

"Cadeiras até que poderiam ser apenas cadeiras. Algum dia cheguei mesmo acreditar nisso. Realmente, é mesmo útil e cômodo entender as cadeiras, assim como o mundo concreto que nos cerca, apenas como coisas. Na Faculdade de Direito, lá estão elas, as cadeiras, servis e silentes, prontas ao nosso banal uso cotidiano, acomodando nossos corpos em meio aos sincrônicos métodos de “aprendizagem”. Assim, ainda para alguns, na douta Faculdade, dia após dia, cadeiras eram apenas cadeiras, e aulas era apenas aulas.

Mas há uma vital e profunda importância nas cadeiras, um significado ainda a ser desvelado. Dei-me conta disso em meio a um desses rituais que os estudiosos chamam de “aula”. Ao entrar na sala, pude ver que as cadeiras eram, na verdade, personagens da nossa própria história, reflexo de nossas próprias condutas, espelhos vivos dos nossos medos e desejos. Cada espaço da sala, preenchido por uma cadeira, era a marca de alguma existência, o testemunho de alguma presença materializada no espaço. Percebi que estava diante de uma platéia viva. Foi assim, no início de uma aula, que procurei pela primeira vez ouvir o que me tentava me dizer aquele profundo silêncio das cadeias da Faculdade de Direito.



Prédio da Faculdade de Direito da UFBA

Como um exército disciplinado, as cadeiras da Faculdade encontravam-se perfeitamente enfileiradas, voltadas para uma única direção. “Olhando” sempre para o mesmo quadro-negro (que na verdade é verde escuro); as rígidas cadeiras deixavam de ver o belo ocaso do Vale do Bairro Canela, uma cena única e marcante, embora considerada menor perante o respeitável mundo dos futuros juristas. Vi, nos olhares congelados daqueles assentos de plástico e ferro, parte de nossa cegueira cotidiana para as coisas simples e belas. Talvez o ocaso, aquele que ocorre ao lado das salas todos os dias, seja o único a guardar a força e o mistério do ato de aprender.

Entrando nas salas, além das posições únicas, algo mais grave ocorria com as cadeiras. Elas, em sua totalidade, estavam pregadas ao solo. Assim como parte do direito “ensinado”, as cadeias passavam a me revelar, com uma nitidez incrível, a crença de estaticidade que permeia o ideário tradicional do jurista. E como se nada acontecesse − porque na verdade cadeiras são apenas cadeiras −, deixamos que isso ocorra, acostumados com uma única posição, entorpecidos com a falsa segurança dos pregos de aço que nos fixam ao chão.




Cadeira com 5 posições: do descanso à revolução

Mas talvez esses sinais permaneçam propositalmente ocultos à nossa brilhante inteligência jurídica. É preciso ser louco para ouvir o silêncio das cadeiras, e toda loucura é o inicio de algo novo. Ainda hoje, ao término das aulas, no apagar das luzes da Faculdade, tento ouvir e ver o silêncio das coisas, como se nelas estivessem verdadeiramente plasmadas as nossas intenções mais verdadeiras. O mármore branco, as placas de bronze, os livros de capa de couro, todos eles parte do que realmente construímos.

É possível que tudo o que percebi seja um delírio pessoal. Talvez cadeiras sejam realmente cadeiras. Mas, à noite, em reuniões clandestinas, quando os donos da verdade dormem e o Direito cochila, elas, as cadeiras, sonham ser algo mais. Querem sair do chão e voar, planando no Vale do Canela, sob a luz vermelha do ocaso. Porque sonhos são apenas sonhos, e isso já é o bastante".

9 comentários:

  1. Nunca mais vou olhar uma cadeira do mesmo jeito...

    Seu texto-poema-animístico permite-nos enxergar o problema do ensino estático e aprisionante a partir de uma singular observadora/participante universal desse teatro: a cadeira. E a ideia de várias delas dispostas entre aquelas quatro paredes, confundindo-se com seus respectivos ocupantes, enquanto o ocaso se manifesta para além da janela (imagino as luzes já opacas e as sombras descendo sobre os participantes da peça medonha) é perturbador...

    Obrigada, Vladimir!

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  2. Bravo, bra-vo! Lindo texto!

    Incrível como as cadeiras são disciplinadoras. Incrível também como uma simples movimentação ("dança das cadeiras") faz com que os corpos (disciplinados) estranhem o novo. Lembro-me dos "encorajamentos" (oficinas de discussão do CORAJE - Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil - UESPI)em que propunhamos a formação de círculos, ou mesmo sair das cadeiras e sentar no chão ... é o medo do rebuliço, do sonho, do vôo!

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  3. Bravo, bra-vo! Lindo texto!

    Incrível como as cadeiras são disciplinadoras. Incrível também como uma simples movimentação ("dança das cadeiras") faz com que os corpos (disciplinados) estranhem o novo. Lembro-me dos "encorajamentos" (oficinas de discussão do CORAJE - Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil - UESPI)em que propunhamos a formação de círculos, ou mesmo sair das cadeiras e sentar no chão ... é o medo do rebuliço, do sonho, do vôo!

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  4. Interessante ver que o inconsciente do Vladimir confundiu cadeira com cadeia. Por um "érre", desvelamos a realidade recôndita no inconsciente do autor...

    Agora, a dúvida: quais cadeiras (entendidas como "disciplinas" no curso de direito) o Vladimir leciona?

    Disciplinas, cadeiras, cadeias... eita direito com fronteiras!

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  5. Bem lembrado,Pazello. E achei o efeito fantástico!Muito sincero!

    Parabéns, Vladimir!Ao seu consciente e subcosnciente!

    Ps.Andréia...Tem toda razão.Ô sensação de liberdade boa nessa hora.

    :)

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  6. Aha... Pazello, as disciplinas indisciplinadas são;: História do Pensamento e Instituições Jurídicas e Prática Jurídica 3 e 4 (Escrit Modelo).

    Esse semestre vou oferecer Tópicos Especiais em Assessoria Jurídica Popular...

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  7. Tem uma peça de Ionesco: AS CADEIRAS...

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  8. Quantas cadeiras (diciplinas) tem uma faculdade de direiro?

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