O terceiro texto da coluna AJP naUniversidade, fruto das discussões realizadas pela turma de “Teorias Críticas
do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos
Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás, ataca questão chave para todo
assessor jurídico popular que pretende ter uma visão crítica da realidade: é
preciso, como diz o jovem advogado popular do MST, Diego Vedovatto, fazer um “trabalho
cotidiano de capinar no direito moderno e colher alguns frutos e, ao mesmo
tempo, em perspectiva geral também fuzilá-lo”. No dia em que, sugestivamente, se completam os 490 anos da execução do último imperador asteca, Cuauhtémoc, a 26 de fevereiro de 1525, assassinado a mando de Cortez, o conquistador espanhol que dominou o México, apresentamos esta potente reflexão sobre o direito, entre a capinagem e o
fuzilamento. Boa leitura!
***
Do Barraco de Lona ao Fórum, o exercício da Crítica
Cotidiana ao Direito
Diego Vedovatto
Advogado popular no Rio Grande do Sul
estudante da Turma de Especialização em
Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)
Militante do MST capina, durante ocupação |
Apesar de difícil, ser advogado popular
é o maior barato. Porque, além de não ter um vocabulário reduzidamente chato
como os especialistas engomados de plantão, temos muitos amigos, nos divertimos
bastante e, de quebra, podemos vivenciar concretamente – em debates, estudos,
bebidas e até mesmo no atuar judicial cotidiano – o gostoso sabor da crítica diuturna
ao Direito.
Não precisa ser especialista na área,
mas, simplesmente, um trabalhador reflexivo, pra logo perceber a distinção
entre, grosseiramente resumindo, duas perspectivas nesse laborar: de um lado a perspectiva
reprodutora do dogmatismo teórico positivista moderno, com todo seu fundamento
formalista, compreendendo, cheio de pompas, que o Direito seria a expressão
elevada de um campo autônomo de relações jurídicas lógicas, com espaços
interpretativos próprios, realizados sob um texto registrado em papeis oficiais
(as leis), distanciando-se, portanto, da moral, e ainda por meio do qual seria
possível produzir a melhor justiça racionalmente; e, de outro, uma compreensão
(sinceramente mais complexa e, às vezes, um pouco chata) que procura uma visão mais
estrutural sobre essas relações, dizendo que o buraco é mais embaixo, e que
toda forma jurídica, como tal, é expressão do complexo sistema estrutural de
produção e reprodução da vida social, com base nas relações econômicas desse
determinado sistema, propondo, ao fim, inclusive, até sua extinção.
É, acreditem se quiserem! Filio-me à
segunda, obviamente.
Pensemos que todo o Direito traduzido
na lei é produzido a partir de necessidades materiais concretas, fruto das contradições
de classes existentes e, assim, para regulação da vida social. Não apenas no
sentido punitivo, mas especialmente na regulamentação das relações de troca,
que envolvem propriedade em forma de mercadoria, porque o Direito não nasce da
abstração idealista dos indivíduos, mas da realidade histórica em que se
encontram.
De outra banda, todos os direitos que se
insurgem das classes exploradas ou resistentes à reprodução dessa exploração –
seja dos operários, camponeses, ou indígenas – cumprem a função de genuinamente
produzir a crítica interna e externa ao sistema. Ou seja, fazem com que a
atuação dos profissionais nele submersos tencione mudanças internas a essa
lógica e, no sentido mais amplo, promovam também a crítica estrutural a essa
lógica, contribuindo para sua extinção.
Os Direitos disso, daquilo, e daquilo
outro que reivindicamos em qualquer lugar, nas ruas, campos, fábricas e bares,
nasce das relações sociais entre os seres, sempre emergidos das relações
capitalistas concretas, em que tudo (melhor dizendo, quase tudo) passa a
possuir forma de mercadoria e tradução em forma jurídica.
Guerrilheiras da FMLN empunhando fuzis, em El Salvador |
Com o surgimento dessas relações econômicas
de produção, e da respectiva tradução jurídica, surgiu também sua contradição. Desde
a crítica marxista, até todas as outras perspectivas teóricas que buscaram, e
buscam, transformar o direito em defesa dos trabalhadores e da luta social para
mudança da realidade, encontramos ferramentas teóricas que ajudam nesse trabalho
cotidiano de capinar no direito moderno e colher alguns frutos e, ao mesmo
tempo, em perspectiva geral também fuzilá-lo.
Como dito, há de se lembrar que essas novas
possibilidades emanam a partir dos conflitos sociais, e é isso que nos dispomos
a fazer popularmente: criá-los, interpretá-los, compreendê-los, situá-los numa
perspectiva de libertação das amarras que o atual sistema lhes impõe.
Ao defender agricultores sem-terra na
ocupação de uma propriedade rural improdutiva, no atuar teórico e prático da
assessoria popular, que vai desde a conversa com as famílias, a negociação com
a polícia, a denúncia para a imprensa e a redação da peça judicial de defesa, por
exemplo, além de comer bolo frito e contar “causo” numa roda de conversas no
acampamento, desenvolvemos formas de disputar o direito dentro do direito com
conteúdos externos a ele, buscando espaços que permitam na própria ordem
jurídica moderna o reconhecimento “de tais novos direitos”, para esses que não os
têm. E, além, lá no fundo do sentimento, e do atuar político abstrato, buscamos
a explosão desse próprio direito, sua completa extinção, para dar lugar ao
surgimento de relações sociais novas, verdadeiramente livres.
É, enfim, nessa insurgência de direitos
que brotam da vida e clamam por liberdade, traduzidos em versos simples, que
vivemos e cantamos.
“Não tem preço, a liberdade
não tem dono
Só quem é livre sente
prazer em cantar
Se um passarinho canta mais
quando está preso
É no desejo de um espaço
pra voar”
(Cativeiros, de Antônio Gringo)
***
Leia também:
A atuação do advogado popular, no fio da navalha, por Ivo Lourenço da Silva Oliveira
A desnecessidade histórica do direito, por Luiz Otávio Ribas
Para uma economia política das carreiras jurídicas, por Diego Augusto Diehl
Marx e o não-direito: direito e marxismo, por Ricardo Prestes Pazello
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