quinta-feira, 28 de maio de 2015

Para uma (nova) sociedade insistente

A coluna AJP na Universidade de hoje traz o relato do militante do Movimento Camponês Popular (MCP) Jossier Boleão sobre uma nova ordem em que o direito tivesse outra função. Em momentos como de fortalecimento das lutas populares em nosso país, também cresce a necessidade de compreender este processo. O texto foi produzido originalmente para a disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás, ministrada por Ricardo Prestes Pazello.
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Para uma (nova) sociedade insistente, um direito insurgente

Jossier Boleão

O direito tem sido sempre um assunto temido entre os movimentos sociais e as classes trabalhadoras. Claro que há motivos para isso. O direito tem se apresentado historicamente contra a classe trabalhadora. E o resultado de relações de forças, com embates diretos e indiretos ocasionados pelo sistema capitalista.
O sistema capitalista fez com que o direito burguês assumisse uma ênfase como Direito apaziguador. Ao mesmo tempo em que este sistema de acumulação se globaliza, também individualiza. Isso ecoou no direito, fazendo com que as lutas de classes ressoassem, frente ao direito, como individuais e pessoais.
Desta forma, a criminalização dos movimentos sociais e das lutas populares ganharam força. Todas as lutas tem sido entendidas num aspecto pessoal, e não coletivo. De fato, o pressuposto do direito não é esse, suas ideias são para todos. Mas sua leitura e aplicabilidade é para poucos. Trava-se na atualidade uma disputa política para que haja comunicação e tradução deste direito da forma como o conhecemos.

O que deveria ser a igualdade jurídica tem se tornado uma nefasta renda para mascarar a imposição burguesa e sua ideologia de poder e dominação. Nesse viés, o direito tem se tornado um obstáculo real à transformação social. Não pela sua desvinculação com a vida social, econômica ou política. Mas justamente por estar diretamente vinculado a serviços que marginalizam e excluem.
Contextualizado no capitalismo, e atendendo à classe burguesa atual, esse ordenamento jurídico se tornou um dispositivo de (i)legalidade e de normatização. O papel de aplicabilidade dos conjuntos de normas e regras cabe ao Estado. Dessa maneira, dá-se, aparentemente, um caráter de imparcialidade. Mas isso é só aparente!
No processo de luta ideológica e política travada pelos movimentos sociais, pelas comunidades marginalizadas e grupos que têm seus direitos negligenciados é preciso uma outra aplicabilidade do direito. Na construção de um projeto de sociedade diferente da que temos atualmente. Isto não sendo possível, é preciso que os grupos marginalizados consigam relevantes avanços mesmo dentro da ordem capitalista.
Esse direito que questiona e que emerge de uma grande parcela da sociedade - aqui denominada insistente -, vai de encontro com a ordem imposta pelo grande capital, traz voz ao subalterno e possibilita um direito alternativo. Torna-se um direito insurgente, como bandeira de enfrentamento ao naturalismo mercadológico imposto pelo capitalismo – com sua forma de fazer do direito também um bem a ser privatizado.

Somente por meio das práticas alternativas e da resistência dos grupos populares de defensores dos direitos será possível uma nova ordem para o direito. Será concreta a criação de formas plurais de resolução do direito. Ou seja, a existência de uma justiça que não seja cega para o que acontece na vida social e para as diferenças existentes.
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Leia também: 

Alienação, Antonio Alberto Machado, 29 set. 2011
Livro Justiça e direitos, Terra de Direitos, 19 set. 2011
Do direito a insurgência ao direito insurgente, Ricardo Pazello e José Augusto Guterres, 29 fev 2012

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Dossiê rolezinhos

Enviado por NAJURP USP

“Nossa expectativa é a de que os textos aqui reunidos possam, em alguma medida, explicitar parte das contradições imbricadas nos processos judiciais envolvendo os chamados rolezinhos e contribuir com o embasamento teórico dos atos e decisões judiciais envolvendo tais fenômenos e com o fortalecimento dos ideais democráticos no interior das instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro”.
Apresentação Dossiê Rolezinhos


Clique aqui pra fazer download do Dossiê

Organizadoras:
Fabiana Cristina Severi (FDRP/USP).
Nickole Sanchez Frizzarim (NAJURP/USP)
Apoios:
Ministério da Educação – Programa PROEXT
Ministério da Educação – Programa de Educação Tutorial (PET)
Pró-Reitorias de Graduação e de Extensão da USP
Fundo Brasil de Direitos Humanos
Coletivo Negro da USP de Ribeirão Preto
Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB subseção de Ribeirão Preto-SP

Autores:
Antônio Alberto Machado
Caio Jesus Granduque José
Camilo Zufelato
Coletivo Negro da USP de Ribeirão Preto/SP
Fabiana Cristina Severi
Hugo Rezende Henriques
Inara Flora Cipriano Firmino
Jesus Pacheco Simões
Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua
Nickole Sanchez Frizzarim
Paulo Eduardo Lépore
Reinaldo Pacheco
Saulo Simon Borges
Thiago Marrara
Valquíria Padilha

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Sustenta a pisada na AJP

"O que nos une nos move é um conjunto de causas coletivas que se entrelaçam" 
Ludmila Cerqueira Correia é Coordenadora Técnica do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB, Professora no Curso de Direito da UFPB, doutoranda na Pós-Graduação em Direito da UnB e integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Júnior.
Ela também foi uma das responsáveis pela organização do primeiro livro do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB (disponível no site da Presidência da República*).
Em uma conversa com Priscylla Joca, para a fanpage da RENAP-CE, Ludmila Correia falou sobre Direitos Humanos, Direito Achado na Rua, movimentos sociais, e muito mais, partilhando conosco sua bela experiência no campo da Assessoria Jurídica Popular (AJP).

Confira a entrevista completa abaixo:
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A poesia “Sustenta a Pisada” (de Cátia de França) aparece como epígrafe no primeiro livro lançado pelo Centro de Referência de Direitos Humanos da Paraíba, bem como é subtítulo do mesmo livro. Nesses tempos em que parece que vivemos o encrudescimento do conservadorismo no Brasil e retrocessos no campo de direitos humanos, como você percebe que nós, assessores jurídico populares, podemos e devemos sustentar a pisada?

Acredito que a escolha pela Assessoria Jurídica Popular nos remete a uma caminhada que é feita a cada dia, sem fórmulas nem receitas, com rupturas e continuidades. O que nos move é a possibilidade de transformar a realidade em que vivemos, de continuar acreditando que outro mundo é possível. Nessa pisada, tem algo que vejo como diferenciado na Assessoria Jurídica Popular, e está justamente no modo de fazer as coisas, na forma de buscar as transformações e os avanços. E no quadro atual, pensar estrategicamente com quem nos aliamos e como podemos nos articular em rede para os desafios que nos vêm sendo colocados, acredito que seja um bom começo. Existe um compromisso quando optamos pela Assessoria Jurídica Popular, que passa pela dimensão coletiva e isso é o que diferencia a nossa atuação.

 Em sua trajetória na Assessoria Jurídica Popular (AJP), você teve oportunidade de vivenciar a AJP na graduação, como estudante e professora, na advocacia popular e agora, mais recentemente, na pós-graduação, como doutoranda na UnB, integrando o “Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua”, coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Júnior. Como você percebe a importância da AJP na sua vida e na educação e prática jurídica em geral?


Costumo dizer que a Assessoria Jurídica Popular me deu régua e compasso, me deu o norte num curso de Direito extremamente dogmático, pouco crítico e voltado, principalmente, ao estudo para concursos públicos. O mais engraçado disso tudo é que conheci a Assessoria Jurídica Popular num projeto de extensão dessa mesma Universidade, mas que não estava ligado ao Curso de Direito e sim, diretamente, à Pró-Reitoria de extensão. A partir dessa janela, um mundo se abriu com muitas possibilidades de vivências e experiências diversas, desde as temáticas de atuação (direito à moradia, direito à cidade, sistema prisional, luta antimanicomial, direitos da criança e do adolescente, direito à terra, e tantos outros), até as metodologias utilizadas (como a educação popular), os espaços institucionais, fóruns de debates e as organizações de defesa dos direitos humanos. Conhecer e participar dos encontros da RENAJU – Rede Nacional de Assessoria Jurídica Popular Universitária foi muito importante para fortalecer a minha escolha por este campo e para entender que era possível impregnar a nossa atuação, nos espaços/instituições em que estivéssemos, com os pressupostos da AJP. Após alguns anos de atuação como advogada popular em organizações de defesa de direitos humanos na Bahia e em Pernambuco, percebo que essas experiências contribuíram para me questionar sobre como pessoas e coletividades podem modificar a realidade em que vivem e qual a nossa co-responsabilidade, enquanto profissionais do Direito nesse processo. Acredito que esta preocupação tenha sido o embrião para decidir cursar o mestrado em direitos humanos, mais adiante, e compreender que a Universidade, com destaque para o curso de Direito, é um espaço a ser ocupado por nós para contribuir com a sua transformação. Daí a importância da Universidade se abrir a essas experiências da AJP e, mais que isso, assimilar as suas metodologias e formulações na educação jurídica, influenciando, assim, práticas jurídicas diferenciadas.

Movimentos sociais por vezes exigem o cumprimento de leis, por vezes tensionam por determinadas interpretações legais, por vezes resistem às leis (ou projetos de leis) consideradas como injustas e ilegítimas, por vezes propõem novas leis diante do Estado, e por vezes não reconhecem o Direito Estatal como único existente e reivindicam outros sentidos de Direitos.  Como o Direito Achado na Rua vê essas teias de resistências, reivindicações e insurgências existentes entre movimentos sociais e o Estado?

Acompanhando mais de perto o percurso de O Direito Achado na Rua, desde o arcabouço teórico dessa corrente que existe desde a década de 1980 no Brasil e os debates mais recentes a partir da disciplina que leva o mesmo nome no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior, percebo que todas essas teias fazem parte do processo de construção do Direito. Vale registrar que no semestre 2014.1, no curso da mencionada disciplina na UnB, tivemos uma experiência bastante significativa com a proposta do professor José Geraldo de estudar/construir a concepção e prática de O Direito Achado na Rua, no percurso de Roberto Lyra Filho, destacando os seus desafios tarefas e perspectivas atuais. Durante o programa da disciplina, conseguimos discutir essas questões das resistências, reivindicações e insurgências dos movimentos sociais frente ao Estado, sobretudo a partir da concepção de “sujeito coletivo de direitos” e os desafios postos atualmente com as novas configurações dos movimentos sociais no Brasil. Nesse percurso, houve um momento muito interessante, em que pessoas vinculadas a movimentos sociais diversos estiveram conosco para dialogar sobre tais questões, sobretudo com os últimos acontecimentos nas ruas do país: as jornadas de junho de 2013, a forma de representação e atuação desses sujeitos nesse período, a ausência de lideranças em alguns dos movimentos ali presentes, o momento de descentralização e dispersão ali evidente, os debates e enfrentamentos públicos sobre o decreto que instituiu a Política nacional de participação social. Assim, acredito que a partir de O Direito Achado na Rua, há a compreensão de que os movimentos sociais, através da sua atuação política (o que pressupõe resistências, reivindicações e insurgências), tencionam a ampliação da cidadania, o aprofundamento da democracia e a luta por novos direitos.

O Direito é achado na rua, nas praças, em Complexos Psiquiátricos, em povos indígenas, em comunidades tradicionais, na luta por direitos, em múltiplos espaços e temporalidades. Ao tempo em que vivemos sob a égide de um Direito Estatal que se tece em uma cultura jurídica positivista e monolítica, e que vêm restringindo direitos humanos garantidos em leis estatais. Nesse complexo contexto, que possíveis estratégias e caminhos podem ser trilhados por assessores jurídicos populares a fim de buscar construir culturas jurídicas plurais, descoloniais e interculturais no Brasil?

Há algo que é muito precioso na Assessoria Jurídica Popular e que constitui um dos seus pressupostos: a atuação junto com os movimentos sociais e grupos vulnerabilizados. É a partir do exercício da alteridade entre nós, assessoras/es jurídicas/os populares e os movimentos e grupos com os quais atuamos, o qual possibilita uma relação dialógica, que conseguimos enxergar novos caminhos de atuação conjunta. É justamente a partir das diferenças apresentadas por esses sujeitos coletivos que aprendemos quais possíveis novos caminhos e estratégias adotaremos nas lutas jurídicas e sociais pelo reconhecimento de direitos. Nesse caso, entendo que é a partir das práticas desses povos/grupos/comunidades que novas perspectivas de atuação e construção do Direito podem surgir, como tem ocorrido em alguns países da América Latina, com o novo constitucionalismo “desde abajo”, demarcando a centralidade da participação popular nos processos constitucionais.      

“O sol que virá, a pisada no susto, sustento sustentará”, assim termina a poesia de Cátia de França. O que você diria mais para aqueles e aquelas que seguem na AJP?

Me recordo de um evento, ou mais que isso, uma experiência que me marcou e foi decisiva na minha escolha em continuar no caminho da AJP: o Fórum Social Mundial, do qual participei em janeiro de 2003. Naquela época, eu atuava como advogada no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Bahia e fui para o Fórum representar essa organização em algumas atividades. Ali um mundo de coisas se descortinou pra mim e foi um dos momentos mais significativos para sentir que na luta coletiva nunca estamos sós, é a luta coletiva que nos fortalece. E me parece que é esse o sentido que encontro na AJP para continuar seguindo adiante: o que nos une e nos move é uma causa coletiva ou um conjunto de causas coletivas que se entrelaçam. Nesse percurso, queria chamar a atenção para um espaço que entendo estratégico para a AJP: a Universidade. Desde que comecei a lecionar no curso de Direito, sobretudo nas universidades públicas, percebi o quanto a formação crítica e na perspectiva da AJP é importante para esse outro mundo possível que buscamos e temos tentado construir. Daí a necessidade de ocuparmos esse espaço para a sua ressignificação e renovação; esse é um compromisso nosso, de assessoras e assessores jurídicos populares, que integra a nossa responsabilidade cidadã e contamina estudantes, a partir do ensino, da pesquisa e da extensão, pra lutar conosco nas velhas e novas trincheiras.    
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* O livro está disponível, de modo gratuito, no link seguinte: http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-defesa/publicacoes-2014-1/pdfs/centro-de-referencia-em-direitos-humanos

** As fotos, gentilmente cedidas pela entrevistada para a fanpage da RENAP-CE, retratam Ludmila Correia em diferentes momentos de atuação, junto a um grupo de estudantes extensionistas do grupo de pesquisa e extensão Loucura e Cidadania do CRDH/UFPB; em uma fala para grupo de estudantes sobre “O Direito Achado na Rua: contribuições para a assessoria jurídica popular”; e em reunião do coletivo Diálogos Lyrianos do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (UnB), com o professor José Geraldo de Sousa Júnior.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Advocacia delirante. Parte I.




No primeiro texto desta coluna, nos apresentamos como dois estudantes vindos de uma formação em AJUP e que, há poucos meses, tornaram-se advogados. Com a inscrição na OAB e prestado o respectivo compromisso (o famoso “juramento”), começamos a nos perguntar: onde chegamos? Ou melhor, até onde poderemos chegar dentre os limites da advocacia?


No geral, o próprio ato de inscrição na ordem, desde a graduação, parecia funcionar como uma fronteira para algo misterioso, como uma permissão com a qual se descobriria todo o conteúdo de uma velha fantasia de saberes e poderes institucionais. A advocacia, de fato, carrega uma simbologia densamente complexa, que ainda nos é difícil compreender. Passamos “para dentro” de algo ainda em grande parte desconhecido.

Cartaz do filme THX 1138
ficção em que a população
se individualiza por códigos
sequênciais em vez de nomes.
Esse algo do qual passamos a fazer parte, porém, começa já a trazer pequenas inquietudes, como quando, de um dia para outro, passamos a carregar o personalíssimo número de inscrição na OAB: esse esperado código, motivo de orgulho para muitos, doravante abeirado aos nossos nomes, feito sua própria sombra até que se encerre o exercício da profissão. Eis a nossa primeira marca  de um ferrete em brasas, pronto para seguir catalogando as sucessivas ninhadas que se somarão à seleta estirpe.

Pois bem. Esse texto marca uma série de escritos sobre as nossas primeiras experiências com a advocacia, nos quais pretendemos colocar em debate teorias, delírios e coisas reais.


Comecemos, aqui, com uma pequena incursão etimológica. É bastante aceita a tese de que a palavra advogar, a partir de origens latinas ad vocatus, seria equivalente a ser chamado para junto de. Seríamos então esse algo no particípio do passado? Talvez esteja superada em grande medida essa noção, que até poderia ser cômoda ou tranquilizante. Interessa-nos saber, por outro lado, quanto esse sentido original de passividade permanece nas atuais condições e, ainda, como se coloca enquanto possibilidade conceitual na história em aberto.


Rendemos, dessa forma, homenagem a Florestan Fernandes ao afirmarmos que, assim como qualquer categoria social, o conceito de advocacia aparece saturado em sua especificidade histórica atual. É necessário, portanto, não apenas desvelar o remoto aparecimento dessa palavra em uma Roma Antiga, mas investigar o que está em jogo quando afirmamos à sociedade atual, diariamente, a nossa condição de advogados.
 
O debate terminológico não nos interessa por si mesmo.
É que o uso das palavras traduz relações de dominação. [...]
Ora, em uma sociedade de classes
da periferia do mundo capitalista e de nossa época,
não existem "simples palavras”.
- Florestan Fernandes¹


Quando afirmamos tal condição e buscamos saber a real projeção de nossa existência advocatícia, deparamo-nos, novamente, com a pergunta: até onde poderemos chegar considerando os limites da advocacia?


Não nos propomos, é certo, assumirmos simplesmente a identidade de advogados, chamados para junto de quem quer que seja. Pois, muito antes de prestarmos um compromisso formal com a ordem, assumimos um compromisso exatamente com quem está à sua margem ou à sua exterioridade. Aí talvez possamos encontrar o princípio de um conceito que nos é caro e sobre o qual, no futuro desta coluna, ainda nos caberá desenvolver melhores aprofundamentos: a advocacia popular.



Oswaldo Goeldi: Solitário
Xilogravura pertencente ao álbum 
10 Gravuras em Madeira de Oswaldo Goeldi.
Rio de Janeiro, 1930.
Nesse campo específico do atuar jurídico, ao qual nos filiamos, torna-se ainda mais difícil tatear quais seriam os limites do exercício da advocacia como um todo, ainda mais quando nosso “número da OAB ainda é novo” e somos apenas jovens advogados, com muita inquietude, mas sem muita experiência. Porém, a mesma práxis que nos inquieta remete nosso olhar ao alto, para o horizonte no qual se coloca a busca pelo transbordamento dos limites vigentes, busca que se revela conceitualmente utópica, todavia, concreta.


A advocacia popular implica percebermos e enfrentarmos uma cotidiana não afirmação do Outro que nos chama para junto, negatividade revelada a partir da advocacia junto a movimentos sociais, ocupações urbanas etc. (eis a concretude), e ao mesmo tempo implica apostar na possibilidade – também dentro da ordem, da advocacia e da operação da lei – de se conquistarem significativas e importantes mudanças sociais (eis a utopia).

Mas isso não nos basta. É preciso delirar galeaneamente alla de la infamia.

Ante a angústia de desvendar os limites da advocacia, percebemos que trabalhar com esta legalidade posta e operar este direito institucionalizado significa por si só, considerando a especificidade capitalista do direito moderno, reafirmar a condição de negatividade desses que nos chamam para junto. Damos conta que a história da humanidade como nos é contada é a história da legalidade de injustiças. Portanto, para fins de extrapolar os limites dessa condição histórica, necessário é pensar em uma possível justiça desde a ilegalidade².


– Ora, que advogados são esses, que mal se inscreveram na “ORDEM” e já preferem atuar pela ilegalidade? – logo nos diria o advogado não delirante.


A preferência pela ilegalidade – lhe diríamos – vem do delírio que muitas vezes falta aos juristas, vem da própria práxis de uma advocacia popular que, consciente de seus limites positivados, descobre na extrapolação desses mesmos limites a possibilidade ontológica da inversão da negatividade do ser, do Outro, para sua positividade.  


Para os espantados, que podem pensar como o advogado que foge do delírio, explicamos que tomamos a in-legalidade não como “aquele que comete um crime contra a lei vigente”³, mas sim como a expressão genérica de algo que vai mais adiante do projeto vigente. O prefixo “in-”, que por assimilação assume a forma de “i-”, não expressa necessariamente contrariedade, porém, no caso, a falta de(assim como na palavra inexistente). Ou seja, ao afirmarmos que a justiça pode estar na ilegalidade, queremos dizer que, na conjuntura atual, na ordem vigente, é preciso pensar em novas formas de se compreender o que é justo, não (apenas) contra a lei, mas principalmente para além de sua própria insuficiência.

O delírio na advocacia popular, portanto, reside na fundamentação da própria práxis em uma ilegalidade projetada como abertura a mudanças sociais. Faz-se delirante por, mantendo os pés no chão, mirar o horizonte e pensar mais além do projeto vigente, tendo como fundamento as novas possibilidades de sociabilidade que excedem os limites da juridicidade moderna.


Nessa caminhada, já nos basta que seja inevitável carregarmos um número de série que nunca irá se apagar nem se alterar. Frente a isso, optamos pelo delírio e apostamos na possibilidade de participarmos das  transformações do presente no qual estamos imersos.  


[...] Cambia el rumbo el caminante
Aúnque esto le cause daño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño [...]
- Mercedes Sosa


O resultado dessas escolhas é, para além da advocacia, a possibilidade de superá-la com o sentido de esperança em uma história aberta, esse recorrente tema da poetisa argentina, autora da música com a qual encerramos a primeira parte desta reflexão como marco de nossa aposta no cambiar de este mundo.



_______________________________
[1] FERNANDES, Florestan.“O que é revolução”. Em: PRADO JUNIOR, Caio; FERNANDES, Florestan.Clássicos sobre a revolução brasileira. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 55-148.

[2] DUSSEL, Enrique. Para una Ética de la Liberación Latinoamericana. Tomo II. Siglo XXI, 1973. p.66

[3] DUSSEL, Enrique. Para una Ética de la Liberación Latinoamericana. Tomo II. Siglo XXI, 1973. p.71


[4] Verbete in-. Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/in->. Acesso em: 20 mai 2015.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Um caso de criminalização no relato de um advogado popular

Hoje, a coluna AJP na Universidade traz um relato que, infelizmente, é comum entre os movimentos populares do campo, no Brasil. Trata-se de texto do advogado popular pernambucano Edgar Menezes Mota sobre a criminalização que atinge o MST. O relato coincide com a data da greve portentosa dos 100 mil, na Vila Euclides, em 1980, mas também coincide com o mês em que, no Paraná, vários sem-terra foram criminalizados, em dois julgamentos, por terem vivido histórias próximas da contada por Edgar. O texto foi produzido originalmente para a disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás, ministrada por Ricardo Prestes Pazello.

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TRABALHADORES PRESOS HÁ MAIS DE CINCO ANOS SÃO LEVADOS AO BANCO DOS RÉUS PELO PODER JUDICIÁRIO

Edgar Menezes Mota
Advogado popular em Pernambuco, estudante da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)


Vivemos em um Estado bruto, cheio de ideologias das classes dominantes. Todavia o direito emanado destas é um direito parcial e, portanto, injusto.

Quando se trata de direito à terra ou à reforma agrária, a ação dos latifundiários e do Estado torna-se ainda mais enérgica no sentido de coibir aqueles que se insurgem a lutar contra as injustiças sociais e pela conquista da terra.

Conflitos agrários no Brasil são muitos. Se fôssemos elencar todos aqui, passaríamos uma eternidade quantificando-os, pois são incomensuráveis. Por isso, aqui neste texto, vamos nos ater a apenas um que nos chamou bastante atenção. Refiro-me ao conflito ocorrido nos Acampamentos Jabuticaba e Consulta, localizados no município de São Joaquim do Monte, Agreste Pernambucano.

O fato ocorreu no dia 21 de fevereiro de 2009, em um sábado de carnaval, onde quatro pistoleiros foram mortos ao tentarem invadir um dos acampamentos mencionados, com o intuito de assassinar integrantes do MST, em especial o coordenador regional do MST na época.

Neste mesmo dia, os Sem Terra reocuparam a Fazenda Jabuticaba da qual já haviam sido violentamente expulsos na quinta-feira anterior – por força de mandado judicial – e lá permaneceram acampados, sem terem para onde ir. Afinal, já estavam lá há mais de oito anos.

Imediatamente, os integrantes do grupo MST sofreram ameaças e tentativa de massacre pelos pistoleiros contratados pelo Fazendeiro (suposto dono das terras). Eles chegaram de motocicletas, fortemente armados. Neste momento foi solicitado auxílio policial, que conteve momentaneamente o conflito, evitando um massacre das famílias acampadas.

Com a presença da polícia, os pistoleiros recuaram e se refugiaram num vilarejo, por nome “Monte Alegre”, próximo ao Acampamento.

Quando a Polícia se ausentou do local, dois trabalhadores saíram para informar o ocorrido às famílias do Acampamento Consulta que fica próximo ao Jabuticaba. Quando chegaram a Monte Alegre, os quatro pistoleiros, em três motos, passaram a persegui-los.

As famílias do Acampamento Consulta ficaram então em alerta. Pouco tempo depois que os trabalhadores entraram no Acampamento juntamente com o coordenador regional do MST, os pistoleiros em suas motos invadiram o local e, fortemente armados, passaram a agredi-lo com socos e tapas, levando-o ao chão. Quando um dos pistoleiros se preparou para matá-lo, os acampados reagiram em defesa de sua vida, bem como das pessoas que ali estavam, inclusive idosos e crianças.

O conflito resultou em ferimentos à bala em alguns trabalhadores e na morte de quatro pistoleiros.

Em consequência do assunto ocorrido, não somente quatro trabalhadores foram presos como também alguns pais de família tiveram prisão preventiva decretada. E, ainda, o empresário, suposto dono das terras onde aconteceu o conflito, é condenado pela justiça por sonegação de impostos. E quanto a um dos policiais militares que prestava serviço de forma ilegal como segurança das Fazendas – principal motivador do conflito – continua integrando a corporação sem qualquer punição.

Passados mais de cinco anos, os trabalhadores ainda se encontram encarcerados à mercê de uma resposta do poder judiciário, que, por incompetência ou falta de vontade, só ouviu os trabalhadores cinco anos após suas prisões, embora a legislação brasileira determine que tal procedimento (audiência para ouvir testemunhas e acusados) deverá ser realizado em no máximo 90 dias, por se tratar de réu preso, por crime doloso contra a vida.

Os acusados só foram ouvidos pelo juiz porque os trabalhadores ocuparam o Fórum da Comarca de São Joaquim do Monte para pressionar o poder judiciário a marcar a audiência de instrução e julgamento. Mas pouco adiantou, uma vez que a sentença do juiz, no último dia 13 de maio de 2014, foi no sentido de pronunciar todos os trabalhadores acusados, ou seja, foram enviados (para o banco dos réus) a júri popular. Mas, segundo os defensores dos trabalhadores, ainda cabe recurso.

No entanto, com a presença do Ouvidor Agrário Nacional, o Superintendente do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – e de Representantes do Governo do Estado de Pernambuco, foi realizado um acordo que garantia a segurança das famílias acampadas e estabelecia o prazo de 30 dias para a desapropriação de uma área para o assentamento destas famílias.

Atualmente, os trabalhadores continuam embaixo de lona preta e sob ameaça constante, inclusive de policiais militares contratados de forma ilegal pelo fazendeiro. Em total descumprimento das legislações vigentes, bem como do acordo firmado anteriormente com os órgãos públicos, todavia, o INCRA não desapropriou nenhuma área para assentamento das famílias como prometido, nem tampouco o Governo desapropriou a Fazenda Consulta por interesse social, como havia sido acordado.           

Diante de tantas injustiças, parece que esse direito que aí está posto não serve para as classes menos abastadas, pois a legislação oficial apresenta ainda uma expressão clássica de dominação. A prova disso é que as elites dominam as formas econômicas, a mídia forma a opinião pública e, ainda por cima, elege os titulares do poder judiciário. Enquanto isso, o proprietário volta a montar trincheiras com pistoleiros. As famílias ficam sem nenhum amparo, em específico, o do Estado. Assim, os trabalhadores viram presas fáceis à ação dos pistoleiros. Principalmente as famílias dos trabalhadores que continuam presos.