"O que nos une nos move é um conjunto de causas coletivas que se entrelaçam" |
Ludmila Cerqueira Correia é Coordenadora Técnica do Centro
de Referência em Direitos Humanos da UFPB, Professora no Curso de Direito da
UFPB, doutoranda na Pós-Graduação em Direito da UnB e integrante do Grupo de
Pesquisa O Direito Achado na Rua, coordenado pelo professor José Geraldo de
Sousa Júnior.
Ela também foi uma das responsáveis pela organização do
primeiro livro do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB (disponível
no site da Presidência da República*).
Em uma conversa com Priscylla Joca, para a fanpage da
RENAP-CE, Ludmila Correia falou sobre Direitos Humanos, Direito Achado na Rua,
movimentos sociais, e muito mais, partilhando conosco sua bela experiência no
campo da Assessoria Jurídica Popular (AJP).
Confira a entrevista completa abaixo:
A poesia “Sustenta a Pisada” (de Cátia de França) aparece
como epígrafe no primeiro livro lançado pelo Centro de Referência de Direitos
Humanos da Paraíba, bem como é subtítulo do mesmo livro. Nesses tempos em que
parece que vivemos o encrudescimento do conservadorismo no Brasil e retrocessos
no campo de direitos humanos, como você percebe que nós, assessores jurídico
populares, podemos e devemos sustentar a pisada?
Acredito que a escolha pela Assessoria Jurídica Popular nos
remete a uma caminhada que é feita a cada dia, sem fórmulas nem receitas, com
rupturas e continuidades. O que nos move é a possibilidade de transformar a
realidade em que vivemos, de continuar acreditando que outro mundo é possível.
Nessa pisada, tem algo que vejo como diferenciado na Assessoria Jurídica Popular,
e está justamente no modo de fazer as coisas, na forma de buscar as
transformações e os avanços. E no quadro atual, pensar estrategicamente com
quem nos aliamos e como podemos nos articular em rede para os desafios que nos
vêm sendo colocados, acredito que seja um bom começo. Existe um compromisso
quando optamos pela Assessoria Jurídica Popular, que passa pela dimensão
coletiva e isso é o que diferencia a nossa atuação.
Costumo dizer que a Assessoria Jurídica Popular me deu régua
e compasso, me deu o norte num curso de Direito extremamente dogmático, pouco
crítico e voltado, principalmente, ao estudo para concursos públicos. O mais
engraçado disso tudo é que conheci a Assessoria Jurídica Popular num projeto de
extensão dessa mesma Universidade, mas que não estava ligado ao Curso de
Direito e sim, diretamente, à Pró-Reitoria de extensão. A partir dessa janela,
um mundo se abriu com muitas possibilidades de vivências e experiências diversas,
desde as temáticas de atuação (direito à moradia, direito à cidade, sistema
prisional, luta antimanicomial, direitos da criança e do adolescente, direito à
terra, e tantos outros), até as metodologias utilizadas (como a educação
popular), os espaços institucionais, fóruns de debates e as organizações de
defesa dos direitos humanos. Conhecer e participar dos encontros da RENAJU –
Rede Nacional de Assessoria Jurídica Popular Universitária foi muito importante
para fortalecer a minha escolha por este campo e para entender que era possível
impregnar a nossa atuação, nos espaços/instituições em que estivéssemos, com os
pressupostos da AJP. Após alguns anos de atuação como advogada popular em
organizações de defesa de direitos humanos na Bahia e em Pernambuco, percebo
que essas experiências contribuíram para me questionar sobre como pessoas e
coletividades podem modificar a realidade em que vivem e qual a nossa
co-responsabilidade, enquanto profissionais do Direito nesse processo. Acredito
que esta preocupação tenha sido o embrião para decidir cursar o mestrado em
direitos humanos, mais adiante, e compreender que a Universidade, com destaque
para o curso de Direito, é um espaço a ser ocupado por nós para contribuir com
a sua transformação. Daí a importância da Universidade se abrir a essas
experiências da AJP e, mais que isso, assimilar as suas metodologias e
formulações na educação jurídica, influenciando, assim, práticas jurídicas
diferenciadas.
Movimentos sociais por vezes exigem o cumprimento de leis,
por vezes tensionam por determinadas interpretações legais, por vezes resistem
às leis (ou projetos de leis) consideradas como injustas e ilegítimas, por
vezes propõem novas leis diante do Estado, e por vezes não reconhecem o Direito
Estatal como único existente e reivindicam outros sentidos de Direitos. Como o Direito Achado na Rua vê essas teias
de resistências, reivindicações e insurgências existentes entre movimentos
sociais e o Estado?
Acompanhando mais de perto o percurso de O Direito Achado na
Rua, desde o arcabouço teórico dessa corrente que existe desde a década de 1980
no Brasil e os debates mais recentes a partir da disciplina que leva o mesmo
nome no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e do
Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, sob a coordenação do professor José
Geraldo de Sousa Junior, percebo que todas essas teias fazem parte do processo
de construção do Direito. Vale registrar que no semestre 2014.1, no curso da
mencionada disciplina na UnB, tivemos uma experiência bastante significativa
com a proposta do professor José Geraldo de estudar/construir a concepção e
prática de O Direito Achado na Rua, no percurso de Roberto Lyra Filho,
destacando os seus desafios tarefas e perspectivas atuais. Durante o programa
da disciplina, conseguimos discutir essas questões das resistências,
reivindicações e insurgências dos movimentos sociais frente ao Estado, sobretudo
a partir da concepção de “sujeito coletivo de direitos” e os desafios postos
atualmente com as novas configurações dos movimentos sociais no Brasil. Nesse
percurso, houve um momento muito interessante, em que pessoas vinculadas a
movimentos sociais diversos estiveram conosco para dialogar sobre tais
questões, sobretudo com os últimos acontecimentos nas ruas do país: as jornadas
de junho de 2013, a forma de representação e atuação desses sujeitos nesse
período, a ausência de lideranças em alguns dos movimentos ali presentes, o
momento de descentralização e dispersão ali evidente, os debates e enfrentamentos
públicos sobre o decreto que instituiu a Política nacional de participação
social. Assim, acredito que a partir de O Direito Achado na Rua, há a
compreensão de que os movimentos sociais, através da sua atuação política (o
que pressupõe resistências, reivindicações e insurgências), tencionam a
ampliação da cidadania, o aprofundamento da democracia e a luta por novos
direitos.
O Direito é achado na rua, nas praças, em Complexos
Psiquiátricos, em povos indígenas, em comunidades tradicionais, na luta por
direitos, em múltiplos espaços e temporalidades. Ao tempo em que vivemos sob a
égide de um Direito Estatal que se tece em uma cultura jurídica positivista e
monolítica, e que vêm restringindo direitos humanos garantidos em leis
estatais. Nesse complexo contexto, que possíveis estratégias e caminhos podem
ser trilhados por assessores jurídicos populares a fim de buscar construir
culturas jurídicas plurais, descoloniais e interculturais no Brasil?
Há algo que é muito precioso na Assessoria Jurídica Popular
e que constitui um dos seus pressupostos: a atuação junto com os movimentos
sociais e grupos vulnerabilizados. É a partir do exercício da alteridade entre
nós, assessoras/es jurídicas/os populares e os movimentos e grupos com os quais
atuamos, o qual possibilita uma relação dialógica, que conseguimos enxergar
novos caminhos de atuação conjunta. É justamente a partir das diferenças
apresentadas por esses sujeitos coletivos que aprendemos quais possíveis novos
caminhos e estratégias adotaremos nas lutas jurídicas e sociais pelo
reconhecimento de direitos. Nesse caso, entendo que é a partir das práticas
desses povos/grupos/comunidades que novas perspectivas de atuação e construção
do Direito podem surgir, como tem ocorrido em alguns países da América Latina,
com o novo constitucionalismo “desde abajo”, demarcando a centralidade da
participação popular nos processos constitucionais.
“O sol que virá, a pisada no susto, sustento sustentará”,
assim termina a poesia de Cátia de França. O que você diria mais para aqueles e
aquelas que seguem na AJP?
Me recordo de um evento, ou mais que isso, uma experiência
que me marcou e foi decisiva na minha escolha em continuar no caminho da AJP: o
Fórum Social Mundial, do qual participei em janeiro de 2003. Naquela época, eu
atuava como advogada no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Bahia e
fui para o Fórum representar essa organização em algumas atividades. Ali um
mundo de coisas se descortinou pra mim e foi um dos momentos mais
significativos para sentir que na luta coletiva nunca estamos sós, é a luta coletiva
que nos fortalece. E me parece que é esse o sentido que encontro na AJP para
continuar seguindo adiante: o que nos une e nos move é uma causa coletiva ou um
conjunto de causas coletivas que se entrelaçam. Nesse percurso, queria chamar a
atenção para um espaço que entendo estratégico para a AJP: a Universidade. Desde
que comecei a lecionar no curso de Direito, sobretudo nas universidades
públicas, percebi o quanto a formação crítica e na perspectiva da AJP é importante
para esse outro mundo possível que buscamos e temos tentado construir. Daí a
necessidade de ocuparmos esse espaço para a sua ressignificação e renovação;
esse é um compromisso nosso, de assessoras e assessores jurídicos populares,
que integra a nossa responsabilidade cidadã e contamina estudantes, a partir do
ensino, da pesquisa e da extensão, pra lutar conosco nas velhas e novas
trincheiras.
* O livro está disponível, de modo gratuito, no link
seguinte: http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-defesa/publicacoes-2014-1/pdfs/centro-de-referencia-em-direitos-humanos
** As fotos, gentilmente cedidas pela entrevistada para a
fanpage da RENAP-CE, retratam Ludmila Correia em diferentes momentos de
atuação, junto a um grupo de estudantes extensionistas do grupo de pesquisa e
extensão Loucura e Cidadania do CRDH/UFPB; em uma fala para grupo de estudantes
sobre “O Direito Achado na Rua: contribuições para a assessoria jurídica
popular”; e em reunião do coletivo Diálogos Lyrianos do Grupo de Pesquisa O
Direito Achado na Rua (UnB), com o professor José Geraldo de Sousa Júnior.
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