"Cuando no duermo, yo sueño" (1955), do pintor cubano Vilfredo Lam
No Brasil e na América Latina, houve uma constitutividade histórica de movimentos de resistência ao poder instituído que nos alça às mais importantes discussões sobre a realidade social, desde uma perspectiva que procure observar a totalidade das condições de produção e reprodução dos modos de vidas, em suas múltiplas paticularidades históricas.
Toda formação social que se apresenta como que orientada por uma estrutura econômica, aliás, deverá sempre refletir também processos contra-hegemônicos. É isto que caracteriza essa resistência à qual me refiro. Mas dizer sobre a "orientação da estrutura econômica" não pode significar, aqui, nenhuma espécie de reducionismo acerca da realidade. Ao contrário. Trata-se, sim e como não poderia deixar de ser, de uma abstração racional feita pelos atores e intérpretes do mundo. No entanto tal momento abstrativo não deixa de se compreender em toda sua complexidade. Este é o maior argumento que se pode dedicar à defesa do marxismo em seu debate específico com as chamadas correntes pós-modernas da filosofia: em termos de valorização da complexidade, não houve quem mais o fizesse que o velho Marx. Isto não quer dizer, porém, que a complexidade possa fazer perder de vista a estruturação do todo e isto implica observar orientações. Daí falarmos em "economia". Isto, contudo, merece sempre uma ressalva, na medida em que a expressão significa muito mais do que a divisão social do trabalho intelectual quer dizer, como ciência recortada e delimitada no âmbito do conhecimento moderno. Talvez, materialidade fosse um termo melhor que economia, já que a menção se volta para significar âmbitos econômicos, ecológicos, libidinais, políticos, geográficos, biológicos, dentre muitos outros (para que fiquemos só com designações próprias da referida divisão social do trabalho intelectual).
Pois bem, a verificação de que há orientações materiais/econômicas (que alguns preferem chamar de "leis") e de que tais condicionamentos produzem resistência(s), nos permite enxergar o trabalho da assessoria jurídica popular para além de o mero acaso histórico, apesar de em uma boa medida ser uma contingência.
A formação colonial do direito latino-americano - para acessarmos uma mediação mais concreta da totalidade -, ainda que envolta nas especificadades de cada grupo nacional ou intranacional, produziu-se de modo a estabelecer uma ordenação concentradora e centralizadora das formas jurídicas. Nada de específico até aqui, já que esta é a característica própria do direito moderno em seu nascedouro europeu: com a ascensão da burguesia, econômica e politicamente, busca-se desfazer o conjunto de pequenas ordenações para agrupá-las em torno do estado moderno. Nesta medida, o estado moderno destrói a complexidade medieval do direito europeu e erige um centro único - o estado. Isto não pode querer dizer, entretanto, que houve um retrocesso, por se ter concentrado o poder de dizer o direito. A volta ao direito medieval é mais que uma quimera, é um conservantismo injustificável tendo-se em vista que apesar de a sedução que gera a pluralidade jurídica, o estado apresentou-se como um fenômeno histórico que não pode ser desconsiderado, pois, como diria o pensamento tributário do hegeliano, é uma síntese frente à qual há necessidade histórica de nos relacionarmos.
Conforme este direito foi se concentrando também acabou expelindo com maior vigor suas contestações de dentro de seu seio. E com a emancipação política, alcançou uma reviravolta, qual seja, a possibilidade de uma sua coordenação. Vale dizer: o direito antes colonial (e plural por natureza, já que convive com o ordenamento metropolitano) passa a ser nacional e tem de articular a regulação social em todo seu território soberano. Com o sensível avanço das relações sociais do modo de produção capitalista entre nós, no século XX, este mesmo direito nacional teve de se deparar com novos mecanismos de sua própria desintegração já que sua unidade é deôntica, mas nunca sociológica. Se a sociedade européia encontrou no estado a síntese necessária para a unidade social, esta mesma fórmula está longe de ser a resolução da periferia do mundo, já que a ela foi imposta uma "tecnologia" política que promoveu uma artificial aceleração de sua história. Nem por isso deixa de ser histórica a nossa forma jurídica (portanto, real), mas, por outro lado, também não é por isso que para ela não há alternativas.
A contínua, ainda que bastante incompleta, tomada de consciência continental, nacional e de classe de nosso povo e de nossos intelectuais produziu fortíssimos enfrentamentos político-jurídicos, seja no âmbito das lutas práticas, seja no plano das disputas ideológicas. Podemos dizer, com alguma certeza, que após os períodos presidenciais de Vargas e o desenvolvimento industrial que nos permitiu a organização sindical, anarquista e comunista, assim como após o surgimento do pensamento social crítico no Brasil e suas formas mais contudentes de nacional-desenvolvimentismo e marxismo, o nível da reflexão jurídica mesma teve grandes saltos de qualidade. Antes mesmo da organização jurídica nacional contra o estado de exceção da ditadura de 1964 (que em alguma medida, ainda que menor, houve também de 1930 a 1945), teve vida a formação de advogados populares que auxiliaram um dos mais importantes movimentos populares deste século, as Ligas Camponesas. A partir daí, construiu-se um pensamento crítico e uma capacidade de mobilização de juristas em prol das causas populares, redundando no movimento de assessoria jurídica popular a que hoje assistimos e no qual atuamos.
Até aqui, tem prevalecido a hegemonia do modo de produção capitalista em seus estágios mais avançados e formas contra-hegemônicas que trabalham no sentido da resistência no plano institucional. O apoio das chamadas AJUPs - assessorias jurídicas populares - se dá, sensivelmente, na esfera da defesa popular para assegurar direitos tidos como conquistas históricas. Ocorre que a experiência de já meio século consolidado nesse caminho traz novos desafios e a necessidade de se pensar novos caminhos para as AJUPs. Daí a pretensão de trazer esta reflexão a público e colocá-la à prova de todos os interessados e engajados neste campo.
Sem dúvida, faz-se preciso articulação nacional, que já há. Mas nos espaços presentes desta articulação vige uma divisão política que parece não ser muito benéfica ao aprofundamento das questões que envolvem a assessoria popular: unidade nas lutas práticas versus pulverização do debate sobre as concepções sobre o direito e a política. Ante esta contestação, dizemos todos os assessores jurídicos, quase que em uníssono: "ou é isso ou é nada". Maior demonstração de fragilidade política não há. Por outro lado, os movimentos, organizações e grupos políticos de fora do movimento das AJUPs não vêem a pertinência dessa discussão.
Além de isso, tal articulação nacional precisa se fazer observando uma nova dinâmica entre pautas locais e demandas nacionais. Mas este ponto delicado só pode ser resolvido se claro estiver o que politicamente se quer com a assessoria, assim como tendo no horizonte a dimensão das lutas sociais e dos grupos envolvidos nas lutas locais, o que muitas vezes é desconhecido pelos próprios ajupianos.
Junto a isso, a aproximação com a universidade e seus protagonistas (os estudantes), com o trabalho de arte e cultura, assim como a produção e reprodução do conhecimento adquirido na prática da assessoria, são pontos nodais para uma nova configuração da assessoria jurídica popular.
Agora, sem dúvida, o maior apelo que se pode fazer para referida rearticulação, é a ultrapassagem do paradigma do apoio institucional para o da produção da resitência positiva, ou seja, a construção de uma organização política contra-hegemônica, reconhecendo-se a ela uma contra-juridicidade capaz de sintetizar um poder dual e transitório diante do estado de direito/poder atual. A meu ver, esse é um caminho que só pode ser tomado caso se verfique a integração entre as assessorias e os movimentos populares, de acordo com uma direção política destes, forjada na construção coletiva de uma nova unidade a partir da pluralidade de reivindicações materialmente respaldadas (aquilo que chegamos a chamar de o "econômico" anteriormente).
Eis um desafio que precisamos enfrentar, já que o refluxo dos movimentos e organizações populares é seguido de perto pela desarticulação dos grupos de assessoria, ainda que o nosso momento histórico seja justamente o que esteja parindo os melhores teóricos/práticos possíveis dentro da tradição ampliada das AJUPs, que hoje integram as cadeiras das faculdades de direito como professores, são advogados com causas populares, adentram o aparelho de estado como funcionários do povo, pesquisam e assessoram formal e informalmente as mais variadas comunidades. Urge atarmo-nos todos, com a pauta da socialização dos meios de produção e das causas populares.
Assessores do continente todo, uni-vos!
Bem, bem, totalidade, totalidade...
ResponderExcluirEsta postagem do Sr. Pazello toca num dos pontos que me parece mais sensível das discussões das AJUPs: definição do que seria o direito e definição política. Um reflexo das contradições da realidade vivida por cada um dos ajupianos? Não é fácil escapar delas, se é que é possivel- superar algumas, mergulhar em outras. Mas apontar o fato é muito válido, claro, quem sabe não se aflora alguma definição?
E minha insignificante opinião: definir o direito dentro da realidade da AJUPs parece-se mais factível, através do pluralismo por exemplo, que a definição política.
Abraços