Expressar a realidade, diferentemente de defini-la, é um ato do pensamento que se dá por categorias. A categoria - ou a qualidade de categorialidade - é um momento da capacidade intelectiva de expressar a realidade em sua universalidade abstrata. Trata-se, portanto, também de uma abstração. Já o conceito - ou a qualidade da conceptualidade - identifica-se com um pensamento suficiente sem a necessidade de atuação. É uma abstração, obviamente, mas que se apresenta estaticamente (logo, não é uma totalidade, mas uma particularidade) abstrata.
Conceito e categoria, assim, são formas diversas de manifestação fenomênica do pensamento. E elas são importantes de serem visualizadas na medida em que é igualmente importante esclarecer a complexidade, a amplitude e o inacabamento da expressão que se faz da realidade. As categorias, e não os conceitos, nos permitem entender isso. Desse modo, os conceitos são; as categorias vêm a ser.
Esta discussão prévia que faço serve para apresentar uma opção não reducionista da expressão da realidade concreta. Esta, como totalidade que vem a ser, não pode ser mecanizada. A partir de seu método de representação, por excelência - o materialismo histórico -, não comporta conceitos estanques, mas sim compreensões que acumulam significados e que atraem, qual um ímã, várias condicionantes, até que no final do processo de compreensão da realidade concreta (fim este utópico por natureza) os elementos que servem à interpretação do mundo angariam uma estrutura multifacética e interligada a vários níveis e dimensões deste mundo mesmo, só analiticamente separáveis.
A proposta de se analisar a insurgência - para a compreensão de nossa realidade concreta mesma, mas também como elemento-chave para a inteligência do problema jurídico-político - tem exatamente este espírito.
Insurgência aparece, portanto, como uma categoria. Pode ser percebida a partir de fatos concretos isolados, mas também é o cerne da crítica que destrói e propõe, a um só tempo. É ela, portanto, um arremate categorial do ato de pensar para a transformação da realidade. Mas este arremate, como ficou assinalado, não estandardiza o quadro que podemos pintar sobre a realidade.
Como a noção de insurgência deve ser mais categorial que conceptual, sua observação passa pela percepção de que ela congrega aspectos de: a) resistência; b) trabalho-fonte; c) organização; e d) conscientização.
Negar a realidade presente em seus âmbitos opressivos (como a noção de insurgência deixa entender) é afirmar outras formas de realidade e, desse jeito, se conforma uma resistência. Afirmar tal resistência exige perceber um critério-fonte de desenvolvimento das vidas que resistem e insurgem-se: eis o trabalho vivo e desalienado. Mas canalizar a resistência a partir do trabalho vivo demanda a organização coletiva. E esta organização impende a formação comunitária, a educação popular, a tomada de consciência revolucionária: e aqui estão os caracterizadores da conscientização.
A partir da realidade histórica e geopolítica da América Latina, gostaria de sugerir três interessantes caminhos para a percepção da categoria da insurgência. A esfera da categorialidade se destaca, na medida em que estamos inferindo de realidades particularidades distintas um universal abstrato para nosso intento: a insurgência mesma.
1. Começando por dialogar com os "fazedores" de conhecimento, os acadêmicos, podemos resgatar a expressão da ciência rebelde em Orlando Fals Borda. Na verdade, todos produzimos conhecimento, estejamos ou não na academia. Mas a autoconsciência sobre isto tem sido relegada à universidade, hoje. Este é um aspecto que devemos superar, mas é impossível deixar de observá-lo. Por isso este primeiro diálogo. Senão vejamos:
"Esta possibilidade da função positiva da subversão (problema, no fundo, epistemológico) é periodicamente esquecido pelos pensadores ortodoxos que tendem a saturar-se de tradição. A análise das experiências latino-americanas (e de outras regiões) prova que muitas transformações significativas e profundas da sociedade foram possíveis em virtude da ação subversiva e do pensamento rebelde" ("As revoluções inacabadas na América Latina", cap. 1).
2. Outro importante aspecto com o qual se deve dialogar é o histórico. Na obra de Clóvis Moura, por exemplo, os negros brasileiros são apresentados na pujança de sua resistência organizada, a qual os encaminhou, apesar de todos os arbítrios com que sofreram, a protestar. É Clóvis Moura quem nos diz:
"O negro brasileiro foi sempre um grande organizador. Durante o período no qual perdurou o regime escravista, e, posteriormente, quando se iniciou - após a Abolição - o seu processo de marginalização, ele se manteve organizado, com organizações intermitentes, frágeis e um tanto desarticuladas, mas sempre constantes. A organização de quilombos, de confrarias religiosas, irmandades, dos cantos, na Bahia, de grupos religiosos afro-brasileiros como o candomblé, terreiros de xangô e mesmo umbanda, mais recentemente, são exemplos significativos" ("Brasil: as raízes do protesto negro", cap. 5).
3. Por fim, poderíamos lembrar todo o legado de busca revolucionária pela qual passamos em nossa América, geralmente envolvendo as idéias de libertação e revolução. Do marxismo à teologia da libertação, dos pais libertadores à esquerda do século XXI, fiquemos com um depoimento só, o do padre Camilo Torres:
"Nos países subdesenvolvidos, as mudanças de estrutura não se darão sem pressão da classe popular. A revolução pacífica está diretamente determinada pela previsão da classe dirigente, já que o desejo, por parte desta, é difícil de ser alcançado. A revolução violenta é uma alternativa bastante provável devido à dificuldade de previsão que têm as classes dirigentes" ("Cristianismo e revolução", cap. 8).
Pois bem, subversão, rebeldia, protesto e revolução se encaminham para a categoria de insurgência. Esta, porém, se qualifica geopoliticamente e dentro de uma perspectiva que permita congregar esforços de resistência, cooperação, organização e conscientização, sob o viés popular. É a esta categorialidade que, doravante, referir-se-á a insurgência, para nós. É ela que devemos passar a construir.
Muito bom. Uma das tarefas é pensar as categorias jurídicas que possam se vincular à insurgência.
ResponderExcluirAbraços, Pádua.
Caro Ricardo, bom o texto. Acredito que nessa época de pensamento único hegemônico, aqueles que buscam insurgir-se contra os opressores se encontram mais na resistência aos tempos atuais, buscando novas ferramentas de análise e ação para superar esse momento critico para a luta contra o capital.
ResponderExcluirTomo a insurgência como um processo, e não como um momento. Se insurgir, individual ou coletivamente, exige sempre a contínua auto-avaliação e autoconsciência de contra quem se insurge e com quais propósitos/estratégias.
ResponderExcluirPelo texto de Pazello, percebo a insurgência como característica contra-hegemônica dos países/sujeitos/povos que, de alguma forma, se colocam contrários a determinadas ideologias e projetos políticos assentados entre os marcadores da opressão social (capitalismo, colonialismo, homofobia, racismo, etnocentrismo, patriarcalismo, adultocentrismo, entre outros), mas com o adicional de conceber a condição de "estar sendo insurgente" como palco de várias estratégias políticas (organização, trabalho, resistência e conscientização) que servem, a meu ver, para o fortalecimento dos insurgentes, enquanto grupos e ideologias.
Sendo assim, é óbvio que o campo jurídico se coloca como espaço de disputa, sendo, ao mesmo tempo, campo onde se pode obter proteção e promoção contra os marcadores da opressão social e, por outro lado, local de reprodução dos marcadores da opressão social, e cujos quais não é possível superar sem que supere os próprios fundamentos da Teoria do Direito, a respeito, por exemplo, das concepções de Estado e de pluralismo jurídico.
Boa postagem, novamente, Pazello.
Meus caros,
ResponderExcluirSem dúvida, para mim a nota de nosso tempo presente (ao menos, na onda de curta duração) é de RESISTÊNCIA.
No que toca ao problema teórico (que também é prático) da insurgência, devo concordar com o Assis: a insurgência é processo, mas sua compreensão é categorial (quer dizer, apreende-se-a conforme um caminho interpretativo que se constitui, inclusive, na prática - este caminho tem momentos analíticos mas é fenômeno sinteticamente processual).
Recebi algumas outras críticas que gostaria de responder aqui. O companheiro e também integrante do blogue, Tiago Hoxino, problematizou o seguinte:
a) uma certa artificialidade e retórica na distinção entre categoria e conceito - sem dúvida, pode ser tomada como tal, caso se esgote aí a discussão. No entanto, a partir dos estudos do método em Marx, achei por bem expor esta distinção, já que não podemos, a meu ver, trabalhar com conceitos estanques, fechados, suficientes em si. A visualização e interpretação teórica dos fenômenos é dinâmica, movimenta-se, é processo. Assim, a distinção é uma opção pelo inacabamento da noção: insurgência "destrói e propõe"; é resistência, trabalho, organização e conscientização; é subversão, rebeldia, protesto e revolução; ou seja, aparece sob várias formas, mas vem a ser o todo.
b)a centralidade do trabalho (que se pode inferir) corre o risco de economicizar a insurgência - também estou de acordo com a rejeição ao reducionismo mecanicista e economicista. Para mim, o aspecto material é o que dá sentido ao trabalho como fonte do valor. E este trabalho que expressa a produção da vida não se restringe à pureza da economia, mas liga-se também aos planos cultural, ecológico e da libido, bem conforme o concebe Dússel. Estes planos, porém, não desnaturam a necessidade da produção da vida ao nível de uma teoria do valor das coisas usadas para a satisfação das necessidades humanas.
c)necessidade de acrescentar os aspectos de "identidade" e "projeto" à noção insurgência - neste ponto, eu diria que a insurgência não se confunde com a organização dos seus sujeitos; esta organização exige um projeto (político etc.). Também, o plano da consciência de si e para si dá o amálgama para a identidade, que se faz, inclusive, no plano material do trabalho-fonte e na prática da resistência. Parece-me questões que derivam e que não fundem. Neste sentido, é a maior divergência que tenho com referência aos apontamentos críticos.
Abraços a todos e agradecido pelas contribuições.
Ora, depois de tamanha demonstração pública de afeto e consideração, sinto-me obrigado a revisitar as pazéllicas idéias expostas, para injetar um pouco (mais) de dialética no debate (não querendo inferir, é claro, que a síntese já apresentada das minhas próprias críticas não seja acurada). Treplicando:
ResponderExcluira) o que pretendi argumentar é que a distinção entre conceitos e categorias é importante, mas se resume à forma como conceitualizamos essas categorias. Ou seja, em última instância, afirmar que as categorias seriam recursos teóricos necessariamente mais dinâmicos que os conceitos é uma visão que parte de um determinado conceito de "categoria" e, nesse sentido, como Ricardo bem apontou, o que importa fundamentalmente é se, e em que medida, convidamos a dinamicidade e a dialética a participarem de nosso intrumental teórico, seja ele "conceitual" ou "categorial". Isso para que não caiamos no tipo de retórica que busca meramente adiantar as críticas que se poderiam fazer a nós mesmos, sem colocar em cheque radicalmente a linguagem e as ferramentes que adotamos. É preciso aqui lembrar de uma outra tradição, a kantiana e neo-kantiana, por exemplo, dentro da qual o "categórico" se revela muito mais dogmático do que se poderia supor;
b)quanto à questão do trabalho-fonte como um dos aspectos essenciais da insurgência, já fico reconfortado com a ressalva apresentada. É inegável a centralidade do trabalho na crítica insurgente, porém é preciso avançar no problema da "materialidade" para além do econômico, embora sempre vinculado a um conjunto de necessidades humanas. Estas, contudo, podem expressar-se como necessidades de outras ordens, como a do pulsional e do simbólico, por exemplo, o que levou Gramsci a observar que "outra posição da filosofia da práxis é também esquecida: de que 'crenças populares' e idéias similares são em si mesmo forças materiais";
c)posso concordar com a perspectiva de que a "resistência" apenas, como parte apenas do que chamamos aqui "insurgência", prescinda das noções de identidade coletiva e projeto. Não posso concordar, todavia, que a "insurgência" enquanto "categorial total", possa delas se afastar, uma vez que mesmo a dimensão da crítica meramente negativa (a "denúncia" freiriana) pressupõe um determinado critério ético (deontológico) positivo que permite a realização da crítica (ou a concretização da resistência). Apenas se insurge quem se credita uma determinada concepção (utópica, porque ainda a concretizar) de justiça tensionada/violada. Além disso, não se pode desprezar que aquilo que Pazello denominou "conscientização", não é uma passagem nem automática, nem unívoca. Thompson indica a fissura que existe entre experiência de classe e consciência de classe, de modo que diferentes sujeitos históricos, ainda que sujeitos às mesmas condições históricas de opressão, podem elaborar - e efetivamente elaboram - no plano da consciência e da identidade de classe, respostas diversas, ao passo que se auto-representam de maneira diversa. Para ficarmos no exemplo mencionado por Clovis Moura sobre o protesto negro, existe todo um panorama identitário diferente - e por vezes em tensão - entre a resistência das revoltas negras (como a dos Malês, na Bahia), das religiões afro-brasileiras (a umbanda, o candomblé, o batuque, etc.) e o movimento negro (que se imbrica, pelo menos até meados do sec. XX no Brasil, no movimento operário), o que se expressa em discursos, práticas e projetos utópicos contrastantes.
Sigamos! A reflexão é riquíssima e o tema dá um bom pano pra manga e fio pra meada.