Após ter tido a oportunidade de conhecer a atuação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos Constitucionais (CAOP de Direitos Constitucionais) do Ministério Público do Estado do Paraná, trago para o blogue o texto da jornalista popular Ednubia Ghisi, que trabalha junto a este CAOP bem como ao CEFURIA, sobre a realidade dos quilombolas paranaenses da região mais pobre do estado, o Vale da Ribeira, e sua luta no plano institucional, o que demanda nossa reflexão e sensibilidade sobre os vários níveis de reivindicação/contestação dos movimentos populares.
Quilombolas do Paraná lutam pelo reconhecimento de direitos
por Ednubia Ghisi
por Ednubia Ghisi
Em 1760, chegavam à região de Adrianópolis (PR), no Vale do Ribeira, os primeiros habitantes da comunidade São João. As memórias passadas de geração para geração relatam que João Muratinho e Tomázia Fernanda de Matos foram os precursores da ocupação, vindos da cidade de Eldorado Paulista, em São Paulo. São João é uma das 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos no Paraná, fruto da resistência da população negra escravizada durante mais de 300 anos. Até 2010, foram identificadas mais de 80 comunidades quilombolas no Estado, segundo relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura – grupo intersetorial criado em 2005 pelo Governo do Estado, com o objetivo de realizar o Levantamento Básico de Comunidades Negras.
A pequena vila iniciada por João e Tomázia, localizada na margem do Rio São João, hoje é habitada por 12 famílias quilombolas. Está a seis quilômetros da cidade paulista de Barra do Turvo e a aproximadamente 175 km da sede do município a que pertence, Adrianópolis, 374ª cidade no ranking estadual do Índice de Desenvolvimento Humano. A comunidade já foi maior, mas as dificuldades decorrentes do isolamento geográfico têm forçado a migração para o meio urbano, especialmente depois da criação do Parque Estadual das Lauráceas, na divisa entre Barra do Turvo e Adrianópolis, em 1979. Reserva importante do bioma Mata Atlântica, com 29.086 hectares de extensão, o Parque, por outro lado, dificultou ainda mais o acesso dos quilombolas às políticas públicas, desde a ligação com a rede elétrica até a construção de estradas que os conduza à sede do município de Adrianópolis.
Além de São João, as comunidades quilombolas Estreitinho, Três Canais e Córrego do Franco, de Adrianópolis, e Areia Branca, de Bocaiúva do Sul, vivem o mesmo contexto de isolamento desencadeado pela criação do Parque e são obrigadas a procurar os serviços públicos, como saúde e educação, no município de Barra do Turvo, em São Paulo, cidade mais próxima.
A partir da reivindicação das comunidades do Vale do Ribeira e de outros povos remanescentes de quilombos no Estado, desde 2008, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais tem buscado assegurar a efetivação dos direitos fundamentais destes grupos. Para o procurador de Justiça Marcos Bittencourt Fowler, que atuava no Centro de Apoio dos Direitos Constitucionais, incluir a questão quilombola nas incumbências do Ministério Público foi uma grande conquista, uma vez que não havia nenhuma atuação nesse sentido no Paraná ou em outros estados. Antes, apenas o Ministério Público Federal atuava, voltado especialmente às questões indígenas. “O trabalho tem sido o de inserir as demandas comunitárias na agenda do Estado em sentido amplo, pois estes povos estão há muitos anos à margem das políticas públicas, o que torna as respectivas necessidades estruturais e urgentes. É preciso ter atuação ampla”, afirma.
Osvando Morato dos Santos, morador da comunidade São João, avalia que, para além do isolamento geográfico, a população quilombola está invisível aos olhos do Estado. “Nós temos tido muito pouca atenção do estado e do município. O acompanhamento dos nossos problemas precisa ser mais presente e constante por parte do poder público”. Segundo Santos, a intervenção do MP-PR tem sido positiva e precisa continuar: “O Ministério Público tem nos ajudado bastante e trazido esclarecimentos sobre nossos direitos”.
Pé na comunidade
Se a existência de comunidades quilombolas era desconhecida no Paraná, intervir nesta realidade exigiu do Ministério Público um esforço de aproximação e compreensão das especificidades e da conjuntura em que vivem atualmente os remanescentes quilombolas. Na avaliação de Fowler, o poder público precisa levar em conta as peculiaridades dos diferentes grupos que formam o povo brasileiro quando executa uma política, para evitar injustiças e imposições. No caso da população quilombola, o procurador de Justiça sinaliza a origem como principal especificidade: “Os quilombolas nascem no contexto de opressão do regime escravocrata, em que seres humanos foram tratados como mercadoria. Eles têm a marca viva da opressão e se constituem enquanto resistência àquela realidade. O Estado precisa ter o cuidado de levar em conta essas particularidades, inclusive por ter sido protagonista e responsável pela escravidão”.
Dentro do projeto estratégico “Ministério Público Social”, o Centro de Apoio realiza visitas de campo para conhecer a realidade quilombola e sistematizar informações referentes ao grau de acesso às políticas públicas nas localidades. Para tanto, vem sendo realizados seminários, audiências públicas e reuniões com a intenção de fomentar e ampliar o diálogo entre as comunidades e órgãos estatais, estudiosos e integrantes das comunidades. As dificuldades encontradas nas diferentes localidades são parecidas e confirmam a precariedade em que vivem esses povos.
Há muito tempo os moradores reivindicam o reconhecimento de suas terras. Segundo informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), existem 36 processos de regularização de territórios quilombolas abertos no estado, mas por falta de técnicos a previsão é de que o reconhecimento demore a chegar: “A equipe do Incra está reduzida, são quatro servidores para atender todas as demandas. Os processos levarão pelo menos de quatro ou cinco anos para serem finalizados”, afirmou Claudio Marques, responsável pela regularização dos territórios quilombolas, durante audiência pública organizada pelo CAOP no Córrego do Franco, em Adrianópolis, em 20 de novembro de 2010.
No Vale do Ribeira, a extração de madeira de reflorestamento e a criação extensiva de búfalos em fazendas formam paisagem recorrente, em contraste visível com as práticas de agricultura familiar das comunidades tradicionais. Para ter acesso à estrada, os moradores precisam passar pelo rebanho, dando ensejo a repetidos casos de ataques dos animais, especialmente às crianças. Igualmente, a criação de búfalos nas fazendas da região contamina a água utilizada pela população.
O acesso à educação e à saúde é outra dificuldade recorrente. Para frequentar a escola, as crianças quilombolas são obrigadas andar de dois a seis quilômetros. “Se alguém fica doente precisa ser levado para a cidade a cavalo, como foi com a minha esposa, que adoeceu e acabou falecendo. Em outro caso recente, precisamos carregar nas costas um rapaz que tinha quebrado uma perna”, relata Santos.
O conjunto de demandas apresentadas pelas comunidades tem sido levado a órgãos públicos, federais e estaduais, a fim de que possam ser estruturadas políticas públicas específicas. Todavia, para além de esperar a iniciativa do Estado, as comunidades estão avançando na organização política e na inserção em espaços públicos de decisão, por meio da Federação de Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná (Fecoqui), fundada em 2009, e da participação no Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural da Agricultura Familiar, nos Conselhos Gestores dos Fóruns Territoriais nos Territórios da Cidadania, nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rurais e nos Conselhos Municipais de Saúde, entre outros.
Resultados
A partir da intervenção do MP-PR, o município de Adrianópolis passou a deslocar para a região equipe técnica das áreas de saúde, educação e assistência social, a fim de solucionar os problemas detectados. Corrigiram-se, por exemplo, falhas no atendimento pelo posto de saúde e pela escola que assistem aquelas comunidades. As famílias também foram inscritas em programas sociais, como o Bolsa Família e o Luz para Todos. Foi disponibilizado, ainda, o acesso à aposentadoria destinada a trabalhadores rurais, por meio do INSS, que passará a destacar equipe para orientar os moradores e receber a documentação. Também já foram finalizados pelo Incra os laudos antropológicos necessários para o reconhecimento das áreas como territórios quilombolas.
Raízes reconhecidas
No Paraná, de acordo com dados de 2010 do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, existem 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos, 20 comunidades negras rurais e 32 indicativos de comunidades que poderão receber a certificação como quilombolas.
Durante o governo Lula, de 2003 a 2010, 1.573 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares, a partir da emissão de Certidões de Autodefinição, principalmente nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul. A certificação é a primeira etapa do processo de reconhecimento, quando a própria comunidade se autodefine quilombola. Depois da certificação, o processo segue para o Incra, para relatório que identifica e delimita as comunidades. Na terceira etapa, é realizada a identificação dos imóveis rurais dentro do território da comunidade quilombola, quando os imóveis particulares são desapropriados e as famílias não-quilombolas que se enquadram no Plano Nacional de Reforma Agrária são reassentadas pelo Incra. A quarta e última fase é a titulação, quando a comunidade recebe um único título correspondente à área total. Segundo informações da Fundação Palmares, de 1995 até 2010 foram emitidos 113 títulos, beneficiando 11.506 famílias. No Paraná, nenhuma comunidade foi titulada até o momento. Atualmente existem mais de dois mil processos abertos para certificação de comunidades quilombolas no país.
(O presente artigo se encontra em "Contexto: revista do Ministério Público do Estado do Paraná", n. 1, março de 2001, p. 20-22.)
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