domingo, 15 de maio de 2011

O canto que é soluçar de dor: a subversão epistemológica de Ana Esther Ceceña

Em um instigante artigo de 2004, fruto de uma reunião do Grupo de Trabalho Hegemonia e Emancipações (CLACSO), a economista mexicana Ana Esther Ceceña encerra sua argumentação com um exemplo eloqüente: em 1996, os rebeldes zapatistas se reúnem com representantes do governo mexicano para acordarem sobre os direitos e cultura indígenas, representando, à época, um concerto de paz. Na reunião, os governantes pedem para que os insurgentes conceituem juridicamente a “dignidade” à qual tanto se remetiam os zapatistas. Estes últimos riem e contestam: “vejam, os representantes do governo não sabem o que é dignidade e nos pedem para defini-la”.

Ana Esther Ceceña é professora da UNAM e seus estudos refletem uma das grandes preocupações dos intelectuais irredentos que não se submetem ao modo de produzir conhecimento em suas versões canônicas. Tanto assim é que seu artigo, acima referido, se intitula “Sujeitando o objeto de estudo, ou Da subversão epistemológica como emancipação”.


Muito este debate tem influído na academia contra-hegemônica brasileira (ainda que ela seja um oásis em nosso deserto acadêmico). Desde os estudos culturais pós-coloniais até o grupo de estudo latino-americano do giro (des)colonial, esta discussão vem ganhando alguma força entre nós. Talvez, para dar o exemplo do contexto jurídico, o nome de Boaventura de Sousa Santos seja o mais representativo em termos de divulgação editorial. Em um dos seus últimos escritos - “A gramática do tempo”, de 2006 -, consubstanciou a mudança de perspectiva de seu pensamento: ele que se reivindicava um teórico pós-moderno de contestação, agora se diz um pós-colonialista oposicional. No entanto, muitos são os autores que, na periferia do sistema-mundo colonial/moderno/capitalista, vêm construindo sua obra a partir dessas preocupações. Para citar apenas os latino-americanos, vale lembrar que Quijano, Mignolo e Dussel são dos mais festejados.

Ao nível de uma reflexão epistêmica, Mignolo chega a propor uma gnosiologia liminar, feita nas bordas do sistema-mundo (totalidade) e que é marcada pela experiência da colonialidade prática e simbólica.

Ceceña acaba por seguir o mesmo rumo, ainda que com preocupações de estudo bastante específicas. No artigo que me levou a esta pequena reflexão, seu problema central é a militarização do mundo, em sentido total, indo do átomo e chegando ao cosmos. A globalização e o neoliberalismo deixam, cada vez mais, cair suas máscaras econômicas, bélicas e culturais. E, entrementes, instauram uma “estratégia universal de contra-insurgência”. Quer dizer, operam um mundo de finanças, tecnologia e informação encarapitado na dissuasão da revolta, é uma hegemonia do anti-revolucionário.

A tecnologia, e seu uso dual, confirma este estado constante de contra-insurgência que é caracterizado em suas últimas conseqüências: tamanho é o “contra-reformismo” (para brincar com expressão histórico-teológica européia que nos é tanto familiar) que a sociedade (regional, nacional ou global) é vista como um “coletivo universal de suspeitos”. Todos, portanto, são potenciais inimigos e, assim, a “arte da guerra” se desdobra em eterna guerra preventiva.

Para comprová-lo, Ceceña lembra das 725 bases reconhecidamente existentes pelo mundo, segundo os próprios Estados Unidos da América Anglo-Saxã, seus “mecenas”. Mecenato bélico que encontra nas Américas, Ásias e Áfricas seus principais alvos. O mundo portanto é a nação estadunidense e, logo, a segurança nacional é a de todo o planeta e para além de ele. O Plano Colômbia, a guerra do Iraque e a exploração mineral em África (os EUAAS dependem, por exemplo, de 100% de minerais metálicos como o manganês, o índio, o nióbio, a bauxita e a alumina, para não citar os 99% de gádio, 91% de platino e assim por diante; os principais fornecedores são os países africanos e de outros continentes) são seus mais fortes índices.

De tal modo, encalacra-se nos corpos e mentes de povos e nações a impossibilidade da superação do regime mundial assim configurado. É melhor não intimidar o grande irmão que a um só tempo é o tio de todos porque, do contrário, a guerra é inevitável. E as multinacionais mais a indústria cultural estão aí para assegurá-lo.

Daí, segundo Ceceña, a necessidade da subversão epistemológica. Sem dúvida, um grande passo para compreender a insurgência a que com tanta ardência nos pomos a defender no quadro da assessoria jurídica popular, corpo mais do que prático das teorias críticas do direito. Movidos pela indignação e pela violência (negatividades) que sofrem, os povos se conhecerão – portanto, autoconscientemente, como queria o velho filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto – como sujeitos rebeldes, subversivos e revolucionários em seu mundo “desdinamizado” e dinamitarão as estruturas que fragilmente o sustenta. É isto que os intelectuais irredentos, porque irritados, devem difundir, este é o seu evangelho, sua arte.

As mobilizações insurgentes se enraízam em seus territórios, e estes são complexos porque reais e simbólicos – e é Ana Esther quem no-lo diz. Congregam a sociedade como povo e aglutinam, concretamente, a força da transformação estrutural daquilo que estruturalmente pesa sobre nossas costas e faz ecoar nosso canto, que é também nosso choro:

Canto Das Três Raças (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro)
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil

Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou

Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

ô, ô, ô...

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador

Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor


Conferir:

- Revista Chiapas, coordenada por Ana Esther Ceceña;
- “Militarização na América Latina”, entrevista com Ana Esther Ceceña.

6 comentários:

  1. Amigo Pazello, gostaei da postagem. Não me lembro agora, mas seria interessante fazer abordagens específicas sobre Quijano, Dussel, Mignolo e Boaventura, acho que quatro teóricos centrais da perspectiva pós-colonial.

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  2. Tem toda razão, Assis. Acatada a sugestão que, aliás, tinha pensado já em concretizar (em especial, no caso do Dússel). Por outro lado, poderíamos dividir uma postagem sobre Boaventura, o que acha? (isto porque é um autor que provoca paixões, inclusive a minha, no sentido de uma severa crítica e um resgate de seus primeiros textos, bastante distintos de sua produção ulterior)

    Abraços

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  3. Pazello, aceito o convite. Mas não tenho cabedal para falar da trajetória acadêmica do Boaventura, posso, apenas, tratar de alguns livros que tenho familiaridade de leitura, o que permitiria discussões pontuais e sobre os aspectos que mais me interessaram no pensamento de Boaventura.
    Ah, quanto a Dussel, sugiro que convide o Diehl para escrever junto.
    Abraços.

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  4. Olá, muito bom o artigo. Concordo com a necessidade de aprofundarmos os estudos e reflexões do pensamento e das práticas descoloniais. Gostaria de saber mais do "grupo de estudo latino-americano do giro (des)colonial". Ele está vinculado a alguma instituição?
    bjs, Paula

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  5. Olá, Paula

    O grupo ao qual me referi chama-se, na verdade, "Grupo Modernidade/Colonialidade" e propõe o giro descolonial das teorias críticas da sociedade, inclusive as dos grupos de estudos sobre a subalternidade asiática (pós-colonial) e latino-americana (pós-moderno).

    Não está alocado em nenhuma instituição em específico, pois reúne pensadores de todos os países do continente. Ver, dentre outras, as páginas:
    http://grupo-decolonial.blogspot.com/
    http://www.decolonialtranslation.com/
    http://www.ram-wan.net/restrepo/decolonial/
    http://www.revistatabularasa.org/numeros.html

    Recomendo 2 textos:
    "Nova eprspectiva filosófica na América Latina: o grupo Colonialidade/Modernidade", de Damián Pachán Soto
    http://168.176.26.17/recipo/sites/default/files/file/Numero%205/1.%20Nueva%20perspectiva%20filosofica%20en%20America%20Latina.pdf

    "Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global", de Ramón Grosfoguel
    http://www.febf.uerj.br/periferia/V1N2/02.pdf

    Me agrada muito a discussão deste tema. Continuemos conversando sobre ele!

    Grande abraço

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