quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cineclube AJP: "Narradores de Javé"

Em acordo com a sugestão do amigo Diego Diehl - aliás, o espaço é de tod@s, espero suas constribuições também Diehl e de outr@s comp@s - o espaço no blog passa a se chamar Cineclube AJP, sendo que hoje iremos apresentar e refletir sobre o filme "Narradores de Javé", da diretora Eliane Caffé, produzido no ano 2003.


Numa curta sinopse, podemos dizer que o filme trata dos moradores da pequena cidade de Javé, que será submersa pelas águas de uma represa. Seus moradores não serão indenizados e não foram sequer notificados porque não possuem registros nem documentos das terras. Inconformados, descobrem que o local poderia ser preservado se tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado em "documento científico". Decidem então escrever a história da cidade - mas poucos sabem ler e só um morador, o carteiro, sabe escrever. Depois disso, o que se vê é uma tremenda confusão, pois todos procuram Antônio Biá, o "autor" da obra de cunho histórico, para acrescentar algumas linhas e ter o seu nome citado.


Quem fundou a comunidade de Javé, Indalécio ou Maria Dina? Eis uma pergunta que não vale a pena ser respondida com aqueles famosos atos retóricos de excluir as múltiplas possibilidades para eleger uma única verdade. No filme “Narradores de Javé” o surgimento da comunidade se apresenta como fato salpicado num caleidoscópio de versões que, como bem diz Lévi-Strauss, coloca cada versão como valendo por si e da junção de todas elas surge não “a” história da comunidade, mas sim a riqueza dos detalhes e dos meandros que compõe a diversidade cultural da comunidade.

No entanto, será Antonio Biá um farsante ou um criativo contador alfabetizado de histórias? E o que significa todo o esforço de cada pessoa para se colocar no centro da história da comunidade? Sem dúvida, “Narradores de Javé” é um filme encantador e que propõe muitos assuntos ao mesmo tempo (identidade, patrimônio, relações de parentesco, direito a terra, grandes projetos, entre outros) sem perder o liame do humor que torna o fatídico destino dos moradores um “causo” emblemático para pensar o nosso contexto e nossas vidas.Saliento a interessante relação estabelecida entre a emergência do conflito social – inundação da cidade ante construção da represa – e a necessidade de proceder à organização social – o planejamento dos moradores para coletar as histórias de fundação da comunidade e montar o livro – vinculada com certa política de identidade, que se desenvolve numa sucessão de atos e falas que, no fundo, reivindicam o direito a terra e a ligação dos atuais moradores com seus antepassados, construindo, com isso, a terra e as memórias como patrimônio cultural, ou seja, algo que possui importancia social para a comunidade.

A comunidade sendo inundada



Mas resta uma dúvida: por que somente depois que o conflito emerge é que os moradores percebem a necessidade de registrar – cientificamente – suas histórias? Um conhecido antropológico, Roque Laraia, afirma que a cultura não se pensa, se vive. De fato, quem pensa – no sentido de estudar ou pesquisar – a cultura é antropólogo, preocupado em sistematizar suas lógicas e definições, nós, que estamos imersos na cultura, respirando-a 24 horas por dia, estamos fazendo a cultura, assim como os moradores de Javé faziam sua cultura desde a fundação da localidade, e bem antes disso. E, por isso, pergunto: quem já se preocupou em registrar ou escrever um livro sobre a história de sua família, com todos os contornos que isso possa assumir? Mais do que uma crítica, trata-se de perceber o caráter político e dinâmico que envolve a necessidade de construção e afirmação da identidade, e de como o seu acionamento está quase sempre ligado à necessidade de confrontação a alguma situação social que coloca em risco à comunidade, tornando-a um instrumento de luta, assim como fizeram os povos indígenas após a Constituição Federal de 1988, a partir da qual tornou-se possível, no Brasil, afirmar-se indígena de modo a requerer o respeito às diferenças culturais e o controle das discriminações.


Por outro lado, o que representa a “divisa/posse cantada”, que é mostrada no filme, numa perspectiva de compreensão da terra e do direito a terra? Do alto de uma montanha, Indalécio (ou será Maria Dina?) entoa os marcos geográficos da divisa da nova comunidade e funda o território de Javé. No Curso de Etnodesenvolvimento, temos refletido coletivamente sobre a distinção entre as noções de terra e território, tal qual se apresentam numa perspectiva dos direitos dos povos diferenciados. De maneira bem simples, a noção de terra é apreendida enquanto título jurídico emitido pelo Estado que define o que o próprio Estado entende (ou reconhece) como sendo o espaço geográfico que é do direito de alguém, em contrapartida o território são as noções nativas (ou dos agentes locais) sobre as formas de uso, apropriação e simbolização desse espaço em que se vive, e no qual se entrelaçam aspectos biológicos, socioeconômicos e culturais. Daí porque, na maioria das vezes, a noção da terra outorgada pelo Estado para determinado grupo não é igual à noção do próprio grupo com relação ao seu território, sendo que esta “outra” noção permanece mesmo quando já não mais exista a própria terra, como no caso de Javé que, mesmo depois da inundação, o sino permanece como sendo o elo que os liga a Javé e aos antepassados.


Indalécio, de acordo com as narrativas


Ao trabalhar com os direitos coletivos dos povos diferenciados (ditos povos e comunidades tradicionais, no Brasil), uma das coisas que mais se ressalta é que a autonomia a que tem direito estes povos/comunidades implica, dentre outras coisas, no reconhecimento de suas autodefinições territoriais como elemento central para a demarcação/titulação das terras, é dizer, deve-se partir do que eles entendem – da compreensão advinda com a “divisa/posse cantada”, em referência ao filme – para então traduzir estas referencias em reconhecimentos jurídicos, respeitando suas definições nativas tal como se apresentam. O procedimento é mais aceito e usado no caso dos povos indígenas e das comunidades quilombolas, o que não retira o desafio, ao INCRA, por exemplo, de repensar seus modos/regulamentos de titulação de terra às comunidades de agricultores, que também são “tradicionais”, respeitando as autodefinições que cada uma possui do seu território.


Por fim, fico com a interessante reflexão dita no filme: “uma terra vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde.” O que significa este esconder? E por que vale tanto mais? Há muitas possibilidades de leitura, para mim significam duas coisas: a primeira, de considerar o ato de esconder ou de não se mostrar como estratégico em contextos de embates políticos, como no caso do filme, é dizer, como forma de esconder informações de agentes externos a comunidade e, em especial, do conhecimento científico, seja porque não pode ser inteligível/traduzível para os mesmos, ou porque a tradução implicaria em usos indevidos, como no caso da bio/etnopirataria. Mas esconder, por outro lado, é também recurso estratégico para valorizar ainda mais o conhecimento tradicional, porque no ato de esconder surgem diversas questões: quem esconde e por quê? De quem esconde? De que forma pode deixar de ficar escondido? Quais os impactos quando se revela? São muitas questões que envolvem aspectos históricos, políticos e culturais, mas que remetem sempre a certa necessidade de fortalecer identidades, sobretudo quando elas se colocam em situações de conflito com agentes externos.

3 comentários:

  1. Olá Assis

    Que grande idéia!
    Este filme que tu comentou é excelente pra trabalhar com o MAB muitos outros movimentos, uma obra-prima do cinema nacional!
    Gostaria de lembrar que o Phelipe Braga já postou algumas vezes com o objetivo de sugerir filmes para serem trabalhados em oficinas. Que te parece, Phelipe, o novo nome da coluna "CINECLUBE AJP"?
    Abraços

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  2. Ah, esse eu conheço!

    Gosto da idéia de narrativa viva que ele passa, um "algo a ser". As várias possíveis versões da história.

    Só faltou a imagem pra ficar mais bacana ainda...

    Xeruu

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  3. Nay, a sugestão foi acatada, segue o texto com as imagens. Estava (e ainda estou) com dificuldades para acessar a internet e, por isso, não pude colocar as imagens antes.
    Ribas, li as matérias do Phelipe, e achei bem legal. Uma rotina de produção de textos sobre as implicações (e os usos) das linguagens artísticas (e não somente do cinema) na AJP seria muito bom, e temos feito isso - digo, todos os autores desse blog - de uma forma ou de outra. Espero que as produções continuem!

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