sábado, 23 de abril de 2011

Com a paz dos ovos de páscoa

"Feitor castigando escravo", por Debret

“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes”
(Castro Alves)

Com a paz dos ovos de Páscoa
A paz dos ovos de Páscoa
Paz dos ovos de pás
Coa paz dos ovos de
Pás com a paz dos
Ó, vós, de Páscoa!

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Segundo corredor à direita
Ovos de Páscoa embrulhados
Com reluzentes papéis metálicos
Coloridos e ofuscantes...
E uma multidão à procura
Do chocolate oval.

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Sexta-Feira Santa:
Cristo crucificado - Paixão

Terra negra
Regada a sal,
Solução de suor e lágrimas,
Que escorre diariamente
Ao som do açoite da chibata
Das bicudas ao flanco esquerdo
De ensopados e lacrimosos
Braços robustos
Infelizmente vetustos
No martírio da subserviência
Dos grilhões,
Da liberdade cerrada
Em cubículos de feno
E latifúndios
Odisseicamente resguardados.
- Para o tronco!
Açoitemos e espanquemos
Quem vai ao tronco,
Subjuguemos e castremos
Quem vai ao tronco
E que continua indo.

Sábado Santo:
Cristo sepultado – Aleluia

A volta à terra
Ainda negra e regada a sal
Agora com mais sal,
Com maior fragor.
Cuspindo sangue,
Marcas nas costas,
Lesões nas pernas.
Sol, muito sol,
Ração diminuta,
Deplorável situação.
O ar é escasso,
O sangue não bombeia,
Os órgãos todos param,
Um tombo
E nem um adeus sequer.
- Para a vala!
Desovemos e escondamos
Quem vai à vala,
Decepemos e empilhemos
Quem vai à vala
E que continua indo.

Domingo Santo:
Cristo ressuscitado - Páscoa

Hoje ninguém mais lembra
Se ontem houve
Mais um caído, mais um...
A não ser os próximos,
Esses sabem
Mas, pobres, são os próximos apenas,
Não têm voz.
- Para o próximo!
Continuemos e prossigamos
Ao açoite seguinte,
Façamos e executemos
O açoite seguinte
E que continuará seguindo.

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Chocolate branco, preto,
Cacau industrializado,
Uma multidão à sua procura
Na semana santa
- Apazigüemos nossa alma
E continuemos
Com a paz dos ovos de Páscoa
E que continua...

"Pés acorrentados: castigo aplicado aos escravos", escultura em argila de KZé e Álvaro Lopes

Da biblioteca "Poesia crítica do direito"


7 comentários:

  1. Nossa...

    Foi um longo período em que um grande números de seres humanos foi simplesmente ignorado em sua dor- em sua existência enquanto ser humano,mesmo ( e essa definição dá muito pano para manga.
    Os herdeiros dessa forma de não-ser... Estão por aí e não são vistos e nem chorados da mesma forma.

    Obrigada pelo poema, Pazello!

    Boa Páscoa para você...

    =)

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  2. A paz dos ovos de páscoa ...
    A paz sem voz, que não é paz, é medo ...
    A paz de um doce que desce amargo para continuar admitindo ...

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  3. Bela poesia Pazello.
    Acho que a indagação repetida ao final "e que continua indo/e que continuará seguindo" dá bem o tom de problematização para pensarmos os atuais "escravos" do mundo. Escrevo isso e lembro dos assassinatos de jovens em São Paulo, da repressão a burca das mulheres mulçumanas na França, da chacina de rebeldes na Síria ou das torturas sofridas por Amadeu. Enfim, a pergunta se repete: são humanos também? Ou melhor: para quem eles são mais ou menos humanos?
    Lembro que a melhor definição para o processo de pacificação dos povos indígenas implementada pela Comissão Rondon, e depois pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e FUNAI, foi a de Antonio Carlos de Souza Lima, que é o ´titulo de seu livro: "Um grande cerco de paz". O cerco é bem a alusão a guerra que se travava para se garantir a "domesticação" dos indígenas e assegurar a paz, uma paz que impõe o silêncio e a violência como solução à pacificação dos "menos humanos" pelos "mais humanos".
    Esta mesma busca pela paz é encontrada nos discursos da educação em direitos humanos, que serviria para se produzir certa consciência de convívio harmonioso entre as pessoas que soubesse de seus direitos e deveres, ou seja, para se viver em paz. Pois bem, estranho todo discurso que propõe a paz sem atacar as causas estruturais do conflito.
    Gandhi não lutou pela paz na Índia e na África do Sul sem antes utilizar a desobediência civil para atacar as condições coloniais.
    Da mesma forma, lembro de Ignacio Martín-Baró, "pai" da psicologia da libertação, com quem aprendi a reconhecer nos atos revolucionários do povo nicaraguense para se libertar da opressão militar a tentativa estratégica de utilizar a violência como mecanismo de libertação contra a violência institucional.
    Dei várias voltas e posso bem dizer que tudo foi fruto dos sentimentos que surgiram ao ler a poesia de Pazello. Obrigado pela inspiração.

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  4. Muito intensa a poesia...

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  5. Agradeço os comentários de todos vocês: Naiara, Andréia, Macel e Assis.

    Aproveito, ainda, para dizer que concordo com o Assis (meu maior interlocutor no blogue, nos últimos tempos, haha) quando sugere que paz sem compreensão do conflito é, no fundo é uma violação, violência pela domesticação. É a pacificação de um Domingos Jorge Velho ou de um Duque de Caxias. É a paz dos bandeirantes, melhor exemplo de "bando" que, se estudado em sua historicidade, teria deixado Agâmben de cabelos em pé: ele teria visto o outro lado da lua da modernidade, a expansão ultramarina européia e a exportação do seu quefazer político, ou seja, a transformação de piratas em heróis desbravadores.

    De toda forma, fica o constrangimento que nos envolve hoje: a tradição cristã, naquilo que produz resistências, lembra que a páscoa é a saída da escravidão dos judeus ou a crucificação de um libertador político e espiritual, como Cristo. O tempo presente se cuida em tornar tudo isso "chocolate", não coincidentemente feito por pés escravos, de ontem e de hoje, daqui e delá.

    Por fim, fica o exemplo histórico de Martin-Baró, que viu a Nicarágua aliar cristãos e guerrilheiros, assim como o padre Camilo Torres, na Colômbia. Neste elo, um dos textos máximos de Martin-Baró: http://dialnet.unirioja.es/servlet/dcfichero_articulo?codigo=2652421&orden=0

    Abraços

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