domingo, 3 de abril de 2011

Contra o legado do “ministério do silêncio”: a longa marcha de um golpe de 47 anos


“Ministério” e “silêncio” são palavras, a princípio, logicamente antitéticas. Uma representa a imposição; a outra, a permissão. Ao lado dos ministros estão os ad-ministradores. Ante o silêncio, só o mistério. Mistério e ministério, porém, têm uma longa marcha de conjunções. Os sacerdotes ministram seus ensinamentos e dons, assim como as lideranças e os governos administram a vida social. Historicamente, sacerdotes e governantes formaram um mesmo corpo, que a modernidade quis ferir de morte. Obviamente, um ferimento discursivo, uma intenção irrealizável. “Ministério” e “silêncio” são palavras muito vivas no sacerdócio da administração de nossas vidas.

Em 1964, no indizível dia-da-mentira, o Brasil assiste a um golpe militar, atônito e inerte. As forças sociais agudizavam seus conflitos, mas não a ponto de servirem de anteparo a uma calculável, ainda que misteriosa, reação. O golpe militar, na contra-corrente do ascenso popular, viria como a redenção das classes subalternizadoras e colonizadas, ainda que montadas nas riquezas nacionais.

Assim é que foram escritos os versos memoriais, no “Calendário perplexo”, de José Paulo Paes:

31 de março/1º de abril

ontem foi hoje?
ou hoje é que é ontem?

Ainda em 1964, portanto há 47 anos, era criado o Serviço Nacional de Informações (SNI), pelo general Golberi do Couto e Silva. De abril a junho, o general se dedicara a formular a nova estrutura da inteligência da “segurança nacional”. Formulador que fora da “doutrina da segurança nacional”, dotada de íntima relação com ideologias sustentadas no exterior, no contexto da guerra fria, uma coisa Golberi, inegavelmente, tem a nos ensinar: não há teoria política sem ação política, assim como não há doutrina sem prática.

O primeiro presidente da ditadura militar de 1964, marechal Castelo Branco (de terno), junto dos altos oficiais das forças armadas e futuros manda-chuvas do país Costa e Silva, Golberi e Geisel (da esquerda para a direita).

O SNI seguia a trilha da burocracia estatal tupiniquim no que diz respeito ao controle da sociedade e a todo esboço de sedição mais ao nível popular. Nesse sentido, é assustador ler, ainda hoje, na página da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a força legatária da ad-ministração da vida social brasileira no sentido mais descendente (de cima para baixo). Informa-nos a página:

“Na década de 1920, o Brasil foi marcado pela ascensão do tenentismo e pelo surgimento de movimentos operários, os quais objetivavam profundas mudanças na estrutura política e social do País. Esse cenário foi agravado devido a sérias dificuldades nas economias do Brasil e do mundo, cujo ápice se deu com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.

Apreensivo com esta conjuntura desfavorável, o governo brasileiro decidiu criar um organismo de Inteligência para acompanhar, de modo interdisciplinar, as importantes evoluções conjunturais e avaliar as suas conseqüências para os interesses do Estado brasileiro.”

Acompanhar, de modo “interdisciplinar”, a conjuntura brasileira da década de 1920 custou caro ao país que, em suas cúpulas, tinha por lema: “questão social é questão de polícia”. O republicanismo patrimonialista do Brasil novecentista rendia seus mais notáveis frutos, legado inconteste, mesmo que esfumado, para as memórias do tempo presente.

Daí a surpresa, para não dizer susto mesmo, quando se lê na mesma página citada:

“O Brasil, no início da década de 60, apresentou um cenário interno bastante conturbado, gerando manifestações de segmentos da sociedade. O quadro evoluiu para uma intervenção militar no processo político nacional em 1964.

No mesmo ano foi criado o Serviço Nacional de Informações - SNI, mediante a Lei nº 4.341, cujo texto lhe atribuía a função de ‘superintender e coordenar as atividades de Informações e Contra-Informações, em particular as que interessem à Segurança Nacional’. O novo órgão era diretamente ligado à Presidência da República, e operaria em proveito do Presidente e do Conselho de Segurança Nacional.”

Que inteligente memória é esta que se gaba de tão nefanda tradição? De certo que é a mesma que se apresenta legatária do grande “ministério do silêncio” (o SNI), ainda hoje testamenteiro de nossa sociedade.

Golberi do Couto e Silva deu vida a uma instituição política que formaria grandes quadros da direção do país. Basta lembrar que além de ele mesmo, de 1964 a 1967, dirigiriam o órgão futuros presidentes da ditadura: Médici, de 1967 a 1969, e Figueiredo, de 1974 a 1978. Mais do que isso, porém, formaria um “monstro”, como ele mesmo se referiria ao Serviço. Seu depoimento, digamos, autocrítico é mais do que eloqüente:

esse tipo de trabalho deforma as pessoas. Muitos oficiais que começaram a trabalhar no Serviço comigo estão irreconhecíveis. Você olha para o sujeito e não acredita que ele é o capitão ou major que um dia encontrou na sua sala para se apresentar” (extraído do relato de Élio Gáspari, no primeiro tomo de seu “As ilusões armadas”).

Dessa declaração, muito poderia ser estudado, com a ajuda de todos os estudos da psique humana e, quem sabe, com especial apoio de um Lucien Seve até um Slavoj Zizec, passando por Agâmben.

Bom sempre é lembrar, entrementes, que o SNI sobreviveu à devolução do governo do país aos civis. No governo hemi-tancrediano de Sarnei, o SNI atuou fortemente, até que Cólor, tendo o prometido, desfez este sinal de antipatia da sociedade para com o estado. Em verdade, criou outro órgão de inteligência, com nome distinto, no que o seguiriam Itamar e Cardoso.

Os mais misteriosos e importantes acontecimentos do medieval Brasil pós-1964 passam pelo SNI: a operação condor, a Escola Nacional de Informações (EsNI), a cooperação com os Estados Unidos da América Anglo-Saxã e os treinamentos sediados no Panamá ou ainda a operação Riocentro, para ficar nos mais “vistosos” exemplos.

A incógnita maior fica por conta das razões que impedem hoje que, 47 anos depois da deflagração de um golpe militar que amordaçou a crítica nacional e declarou moratória para com as classes populares brasileiras, não tenhamos nenhuma clareza acerca das responsabilidades que o estado deve assumir com relação a seu passado. O que a inteligência institucional brasileira tem a dizer sobre documentos da inteligência institucional brasileira pretérita que se perderam? Ou ainda o que têm a dizer sobre os documentos vedados ao acesso irrestrito do povo ao qual eles se destinam à defesa?

A irrealidade – ou realidade fantástica mesmo, porque fantasmagórica – da não superação do simples resgate memorial faz com que nosso povo e nossa sociedade sintam na pele o desgosto e o desconforto de não se saberem conscientes de sua própria história. Autoconsciência tão propalada no pré-1964 mas tão defesa a todos nós, hoje, em pleno 2011 internético e informático.

Certamente, é este império ministerial do silêncio que se fez ação política entre nós. Misteriosamente, eternizou-se, para além de sua fetichização no plano institucional. Ação política que explica a subsistência de uma lei de segurança nacional, ainda que elaborada por juristas progressistas nos estertores da ditadura, e que hoje serve de tipificação penal, por exemplo, para criminalizar movimentos sociais, tais como no ocorrido gaúcho em que o Ministério Público ofereceu uma ação civil pública pedindo a dissolução “jurídico-política” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra... Também, a mesma ação política que fez a assembléia constituinte passar em branco quanto à extirpação do SNI da cena administrativa e política brasileira, exigência feita por muitos e que teve, por exemplo, em Rui Mauro Marini, uma das vozes mais aguerridas, colocando o desmonte do SNI como ponto central para “democratização” do país.

Nos tempos atuais, quando vemos e ouvimos avanços políticos no que tange ao chamado “direito à memória e à verdade” em países irmãos, como a Argentina (ver notícia General argentino é condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade), ou ainda quando vemos outros países irmãos serem constrangidos internacionalmente, como nós, devido à impropriedade de sua regulação legislativa e judiciária no que respeita à apuração desta “memória” (conferir notícia OEA decide que Uruguai precisa derrubar lei que protege torturadores), fica impossível não indagar sobre qual o principal legado que o “ministério do silêncio” – ápice de uma prática histórica já anteriormente colocada – nos deixou. Contra o que devemos lutar quando nos opomos ao “ministério do silêncio”? Contra a falta de memória, sim, mas muito mais ainda contra inanição, contra a passividade, contra a falta de ação política, em último caso, contra a inexistência de práxis.

Um espectro ronda a América Latina: os centro-americanos e os caribenhos vivem-no desesperadamente como também o viviam nos fins da década de 1950 e inícios da de 1960 (quando as ditaduras avançaram, no pré-1964, por sobre a Nicarágua, o Haiti, a República Dominicana e El Salvador). E nós? Pagaremos pra ver e viver?

2 comentários:

  1. Oi, Pazello!

    Muito bom esse seu resgate.

    Tenho uma teoria simplória: vão segurar estes arquivos do nosso último período ditatorial até que estejamos distantes o suficiente daquele passado, tão distantes que não haja mais memória viva, de modo que a memória registrada nos calabouços oficiais não provoque mais vivo repúdio, ou asco e que muito menos sirva de mote para uma demonstração de indignação mais contundente.

    Mas bem bizarro mesmo, em pleno regime democrático formal, a existência de um órgão desse tipo, que nunca sofreu uma devassa completa, nunca teve suas vísceras escancaradas para o povo decidir o que fazer com elas.

    Alfinetada oportuna.

    Xeru!

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  2. Concordo com a teoria: o legado silencioso tem várias facetas, dentre elas a econômica, a simbólica e a desmobilizadora. O estado (entenda-se por estado os governos e os altos escalões de carreira) não quer se responsabilizar, inclusive materialmente, pela história do Brasil, em tempos de cortes na educação e enxugamento da máquina pública, discurso que volta a galopar sobre nossos ouvidos e couros. Os militares e familiares não querem arcar com o ônus da "mancha" na história que inevitavelmente carregam e carregarão os apoiadores da ditadura. Nesse medida, "vai pegar mal" tornar pública que muito democrato de plantão hoje (a começar pelos meios de comunicação) foram golpistas de primeira hora, ontem. E, em termos de exemplo político, prefere-se abafar a situação, pois "vai que o povo se identifica com as rebeldias nacionais de 47 anos atrás"?

    Valeu pelo comentário, Naiara!

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