sexta-feira, 1 de abril de 2016

Direito e conjuntura - O papel do Direito no "golpe de Estado de novo tipo"

A nova coluna "Direito e conjuntura", do blogue AJP, publica a segunda parte de um ensaio de interpretação sobre o que pode vir a ser um "golpe de Estado de novo tipo" que está sendo gestado no Brasil. Veja aqui a parte 1 da análise, que contém ainda algumas explicações gerais sobre a proposta deste novo espaço de discussão.

A parte 3 tratará da conjuntura internacional e nacional que trazem os elementos fundamentais (a "essência") dos fatores políticos que levaram à escalada golpista no Brasil. Antes no entanto, o intuito é deixar como reflexão para o fim de semana a nós da AJP sobre os modos como o Direito tem sido utilizado como ferramenta de destaque na legitimação deste golpe midiático-jurídico-parlamentar.

E faz isso após as belíssimas mobilizações populares pela democracia deste histórico dia 31/03. A luta segue, a batalha não está perdida!

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2. O papel do Direito no “golpe de Estado de novo tipo”

Diego Augusto Diehl



O “golpe de Estado de novo tipo” pretende ser afirmado como “constitucional”, buscando legitimar-se por meio do discurso (jurídico-político) de que a figura do impeachment está prevista regularmente na Constituição. De fato, em repúblicas presidencialistas, esta é uma figura (ou “forma jurídico-política”) prevista para casos de crime de responsabilidade cometidos sempre de forma dolosa e por meio de autoria pessoal do Presidente de República. Diferente portanto do sistema parlamentarista, a mera impopularidade (80, 90%, que seja...) de um governo ou a falta de maioria no Parlamento não são razões (jurídico-políticas) suficientes para a interrupção de um mandato presidencial obtido de forma democrática pelo voto majoritário, por menor que seja essa maioria. Não estando previsto na Constituição (como de fato não está na CF/1988) o chamado recall (ou referendo revogatório, instituído por exemplo na Venezuela), o único modo legítimo de cassar o mandato conferido pelo povo ao Presidente da República ocorre no caso do cometimento de crime de responsabilidade, apurado nos termos dos direitos e garantias da própria Constituição. O resto é golpe, e é de golpe que se trata.

Antes de analisar a conjuntura política (ou a “essência”) do golpe, é preciso entender o papel que o Direito está desempenhando para a legitimação desse “golpe de Estado de novo tipo” (na dimensão da “aparência”, que apesar de falsa ou ideológica, é um elemento objetivo da realidade concreta que não pode ser desprezado: trata-se da legitimação do golpe perante o povo e perante a “comunidade internacional” por meio do Direito).

Rupturas com a ordem constitucional vigente por meio de golpes militares se tornaram hoje algo “obsoleto” e “inaceitável”  (ainda que sempre muito agradável) à “comunidade internacional” (leia-se: EUA e União Européia, suas classes dominantes, seus aparelhos de mídia, sua “inteliggentsia” etc.). Não é que rupturas institucionais não possam ocorrer (elas sempre ocorreram e provavelmente continuarão ocorrendo), mas elas devem ser “democráticas” aos olhos desses “observadores internacionais”, pois essa (a democracia) é a base da legitimidade (a “soberania popular” de Habermas) para a construção de uma nova ordem jurídico-constitucional. Sem isso, a chamada “comunidade jurídica internacional” tende a ser um fator de pressão contrário ao reconhecimento do novo governo “de fato”, o que é sempre algo geopoliticamente seletivo (para se “reconhecer” a legitimidade de um governo bolivariano são necessários sufrágios – eleições, referendos, plebiscitos etc – quase que anuais, enquanto para regimes ditatoriais apoiados pelos EUA as medidas “necessárias” são muito menos cobradas, inclusive dentro do sistema ONU). Perante o Direito Internacional, o “golpe de Estado de novo tipo” deve ser não um golpe, mas uma atitude “constitucional” (porque se enquadra no rito da Constituição vigente e das normatizações prévias definidas pelo STF).

Para ser “constitucional”, o impeachment da Presidenta da República deve atender aos requisitos estabelecidos no plano do Direito Penal e Processual Penal (regidos em primeiro lugar pela Constituição). O Direito Penal e as instituições jurídicas do sistema de direito criminal são utilizados para fornecer então os argumentos jurídicos que pretendem identificar o suposto “crime de responsabilidade”, e assim legitimar a cassação do mandato presidencial. Aqui é onde até o momento se encontra o “calcanhar de Aquiles” do “golpe de Estado de novo tipo” que está em pleno desenvolvimento no Brasil: não há um crime de responsabilidade sequer cometido pela Presidenta da República desde o início de seu mandato atual, em 1º de janeiro de 2015, que tenha qualquer indício mínimo para ser processado!

O processo de impeachment foi instaurado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, o – quase – inominável Eduardo Cunha, cuja descrição é desnecessária nesse momento, mas que, como veremos adiante na conjuntura política nacional, é um personagem central na dissolução da “Nova República”, entre outros fatores por dispor de ferramentas jurídicas de peso que só a condição de Presidente da Mesa Diretora pode lhe dar. Esse processo, se aceito pelo Presidente da Mesa Diretora e autorizado pela Câmara dos Deputados, pode ou não ser instaurado pelo Senado Federal, tendo como “juiz natural” o Presidente do STF e tendo como uma espécie de jurados os Senadores da República (esses coronéis regionais que se consideram uma espécie de “Poder Moderador” no Brasil). Trata-se portanto de um processo jurídico (ainda que não judicial), que deve(ria) se ater ao suposto crime de responsabilidade que é objeto da denúncia: no caso, aquilo que passou a ser denominado na mídia golpista como “pedaladas fiscais”.

O argumento jurídico das “pedaladas fiscais” é tão ridículo que tem gerado dificuldades de legitimação nos meios jurídicos, políticos e da sociedade em geral. Ademais, a conduta do “árbitro inicial” deste processo previsto constitucionalmente é tão parcial que os vícios afetam todo o processo desde o início (nunca, nem mesmo no impeachment de Collor – que não foi golpe – se viu um Presidente da Câmara dos Deputados “devolvendo para aditamentos” as denúncias contra o Presidente da República!). Como consequencia, o impeachment passou bons meses sem poder seguir seu curso a contento das forças golpistas.

Isso porque faltava um conjunto de argumentos jurídico-penais suficientes para configurar o crime de responsabilidade da Presidenta da República cometido durante o mandato atual. Passou-se todo o 2º semestre de 2015 discutindo nos meios jurídicos, até que se compreendesse que a denúncia aceita pelo Presidente da Câmara era inepta – por falta de argumentos sólidos, de fatos que indicassem o crime de responsabilidade, e por incompetência de seus próprios autores (além de uma insuficiente legitimidade dos denunciantes, dois advogados tucanos e um ex-petista ressentido manipulado pela direita paulista).

Portanto que não se enganem aqueles que acham que o Direito é “mera ideologia”: se dependesse do conjunto de forças políticas e sociais que passaram a aderir ao golpismo desde o fim das eleições presidenciais de 2014, o “golpe de Estado de novo tipo” já teria ocorrido no mínimo desde agosto de 2015, executado sob os argumentos da petição assinada por Miguel Reale Jr. (criminalista e filho do mais renomado “uspiano” do séc. XX, o prof. Miguel Reale de tantos serviços jurídicos prestados à ditadura militar), Janaína Pascoal (professora reacionária “uspiana” e advogada da direita golpista de SP) e Hélio Bicudo (ex-paladino dos DDHH do PT, convertido em suposta “reserva moral” do golpe). Mas a denúncia era tão inepta (se ocorreu e se for crime de responsabilidade da Presidenta, essas “pedaladas” referem-se ao mandato anterior apenas) e o processo estava tão contaminado em termos simbólicos (com a presença do arqui-corrupto Eduardo Cunha) que foi preciso mais tempo e elementos para a legitimação do “golpe de Estado de novo tipo”, um golpe supostamente “constitucional”.

O que ainda faltava para legitimar juridicamente o golpe e executá-lo finalmente?

1º retirar Eduardo Cunha da Presidência da Câmara dos Deputados (nem que fosse para assumir o cargo seu aliado, Dep. Valdir Maranhão, Vice-Presidente da Mesa Diretora). Essa medida tem sido cobrada pela mídia burguesa para tentar tirar a mácula do golpe. Não é certo que ocorrerá, e talvez seja o principal indicador do caráter golpista do impeachment (como alguém com dezenas de processos criminais com denúncias recebidas pelo STF, com contas secretas na Suíça reconhecidas pelo próprio deputado, pode ser o “verdugo” de uma presidenta eleita por 54 milhões de eleitores sem ter 1 crime sequer com indícios suficientes?)

2º encontrar um novo denunciante que tivesse mais respaldo da “opinião pública” (basicamente a mídia golpista e setores da burguesia que vão firmando posição em prol do golpe, como FEBRABAN, FIESP etc.) e que tenha maior legitimidade no campo jurídico (capital simbólico). Esse problema está agora resolvido: a OAB vergonhosamente entrou como elemento legitimador do golpe, formando fileiras com outras instituições jurídicas capturadas por juristas conservadores e politicamente analfabetos (Ministério Público, Polícia Federal, Poder Judiciário) para dar legitimidade jurídica ao golpe.

3º encontrar novos fatos e/ou argumentos que legitimem a identificação de crimes de responsabilidade cometidos em mandato atual pela Presidenta da República. A nova denúncia protocolada pela OAB vem tentar solucionar este elemento com novas acusações: “obstrução da justiça” ao nomear Lula para a Casa Civil em pleno momento de crise política (argumento jurídico que simplesmente desmoraliza o STF e o convida a ser a última instituição a aderir ao golpe); “delações premiadas” de um Senador desesperado por salvar-se e que levarão um grande tempo para a eventual comprovação; isenções fiscais concedidas à FIFA para a realização da Copa do Mundo de 2014 (que, apesar de imorais, foram aprovados pelo próprio Parlamento Brasileiro e referem-se também ao mandato anterior); além das infundadas “pedaladas fiscais” já vistas antes como argumentos insuficientes.

Politicamente o golpe está portanto decidido há bastante tempo, mas ainda não ocorreu por falta deste conjunto de “condições jurídicas” suficientes. Um conjunto de “formas jurídicas” que foram sendo construídas ao longo da formação do Estado brasileiro (república, separação dos poderes, constitucionalismo, mandato presidencial, prerrogativas etc), das lutas de classes que foram formatando as formas do exercício (juridicamente legitimado) do poder foram se estabelecendo como condições, limites ao mero exercício arbitrário do poder. Se não houvesse tais “formas jurídicas”, instituições etc., Dilma e o PT já estariam fora do governo há mais tempo. O Direito precisa legitimar o golpe. E a AJP tem o dever neste momento de denunciar essa tentativa de legitimação.

Um outro agente jurídico-político importante nessa tentativa de legitimação jurídica, cuja movimentação em termos políticos analisaremos mais detidamente ao tratar do junho de 2013 no Brasil, é sem sombra de dúvidas o Ministério Público (e mais especificamente o Ministério Público Federal). Formou-se nos últimos anos nesta instituição um grupo de atuação que assumiu para si a tarefa de “passar o país a limpo”, e arquitetou meticulosamente a famosa “Operação Lava Jato” para ser um mega-processo que funcionasse como “exemplo” de moralização (seletiva) da política e da Administração Pública no Brasil. Quem pensa que a “Lava Jato” é apenas a “República de Curitiba” se engana profundamente. A coordenação geral da ação está toda dentro da Procuradoria Geral da República, que encontrou em Curitiba o conjunto de condições jurídico-políticas ideais para pôr em prática a operação.

Como consequencia, a “Lava Jato” está na vanguarda do processo de corrosão da chamada “Nova República”, arquitetada pelo PMDB na transição da ditadura para a democracia burguesa reinstituída de forma “lenta, segura e gradual”, e executada por esta “federação de caudilhos regionais” que é o partido de Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Jader Barbalho e outros tantos nomes que convém deixar aqui registrado para a posteridade. Para salvar a “Nova República” é preciso calar a “Lava Jato”, tanto em seus braços jurídicos (por intervenção na Polícia Federal, interferências no MPF etc) como sobretudo em seu braço midiático (que é de longe o principal fator de desestabilização atual e de formação de um ambiente golpista: daí o golpe ser em primeiro lugar mídiático, antes de ser jurídico-parlamentar). E o impeachment de Dilma seria o meio mais rápido para tentar salvar a "Nova República" peemedebista, pois “acalmaria” um conjunto de “fatores reais de poder” (lembrando o célebre conceito de Ferdinand Lassale) que passariam a ser beneficiados pela nova coalizão representada por um governo Temer.

São portanto estes “fatores reais de poder” que devem ser o ponto de partida para explicar o “golpe de Estado de novo tipo” que está em curso no Brasil, e que está sendo operado com um conjunto de ferramentas jurídicas. A movimentação desse conjunto de instituições jurídico-políticas, de normas e de argumentos jurídicos não se dão por si sós, num “sistema jurídico autopoiético” empiricamente inexistente. É simplesmente errado dizer que a “forma jurídica” é uma “ilusão” ou “mera ideologia”, e que tudo na verdade não passa de um grande "teatro"; mas é ainda pior o efeito da absolutização do Direito, como se este fosse um fenômeno social dissociado do Poder. Direito é “política concentrada” e seu exercício é uma forma de poder simbólico cada vez mais complexo no capitalismo contemporâneo.

Trata-se portanto de compreender a conjuntura política do “golpe de Estado de novo tipo”, que é a verdadeira “essência” que busca legitimar-se por meio da “aparência” de legitimidade que o Direito pretende conferir.


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Próximos posts, que completarão a presente análise na próxima semana:


3. Da aparência à essência do “golpe de Estado de novo tipo”: a conjuntura política que movimenta as instituições jurídico-políticas



3.1. A conjuntura política internacional: reascenso da China, decadência dos EUA e o início da “guerra fria 2.0”


3.2. A conjuntura política nacional: a implosão da “Nova República” desde junho de 2013 até o processo de impeachment de 2016

4. O "golpe de Estado de novo tipo", se consolidado, representará simbolicamente o fim da Constituição da "Nova República". Mas o que virá depois?


5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?

Um comentário:

  1. Excelente matéria, argumentos sólidos e que me faz repensar meus próprios entendimentos.

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