Hoje, na
coluna AJP na Universidade, de modo a continuar a apresentação dos textos
formulados para a disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”, apresentamos
um relato de experiência feito por Washington Palandri Sigolo, no qual se
descreve uma oficina de Teatro do Oprimido que foi ministrada em uma aula da já
mencionada disciplina. Destaca-se, aí, um belo exemplo das potencialidades do
Teatro do Oprimido, mesmo dentro de um âmbito tão formal quanto a faculdade de
direito.
***
Relato de experiência com o Teatro do Oprimido
Washington Palandri Sigolo
Como
toda experiência – única em sua essência – fazer uma faculdade de Direito pode
levar (e deveria) a reflexões intensas a respeito da profissão, do papel do
advogado ou do operador jurídico e de sua articulação com a sociedade em que
vive. Considerando que estamos, muitas vezes, encerrados em uma academia que
prestigia o formalismo e o conservadorismo em essência e forma, a experiência a
seguir relatada quebrou paradigmas. Ideias surgiram a respeito da relação
ensino-aprendizagem no ambiente acadêmico, do nosso papel enquanto cidadão e de
nossas atitudes no mundo.
A
vivência teve como base o texto de Augusto Boal a respeito de uma experiência
peruana com o Teatro do Oprimido. Após a leitura do texto, fomos convidados a
experimentá-lo, senti-lo, vivenciá-lo, de forma lúdica, mas não superficial.
Cênica, mas não performática. Sutil, mas não imperceptível. Nossa facilitadora
não impunha, convidava, dando lugar ao novo, parideira de percepções, gestos,
expressões.
Foram
vários os movimentos propostos dentro daquele espaço, a fim de proporcionar o
conhecimento do próprio corpo, seu reconhecimento e atuação para além do
esperado culturalmente, transformando o corpo em linguagem, fala, discurso.
Assim nasce o corpo expressivo e a tentativa não só de comunicar, mas também de
transformar. Corpo-objeto, transformador de atitudes nos sujeitos, no mundo.
Atitudes políticas, pois impossíveis de serem desvinculadas deste aspecto.
O
teatro como linguagem e como discurso, se não amplamente explorados dentro do
tempo-espaço cênico que tivemos – dadas suas limitações-, apareceram
pungentemente durante todo o percurso vivencial, de forma mais ou menos
consciente. Vislumbramos a linguagem do corpo e pudemos perceber que o ato fala
o que a voz cala. As quatro etapas do “plano geral da conversão do espectador
em ator” (Boal, 1980: 131) foram, de maneira única, assim experienciadas.
Inicialmente,
procurou-se desmanchar, ao menos parcialmente, as conservas culturais.
“Conservas culturais são objetos materiais (incluindo-se obras de arte),
comportamentos, usos e costumes que se mantêm idênticos em uma dada cultura”
(Gonçalves, 1988: 48). Este desmantelamento serviu para a conscientização do
movimento, “para que cada operário, cada camponês, compreenda, veja e sinta até
que ponto seu corpo está determinado pelo seu trabalho” (Boal, 1980: 134). No
caso do estudante, o quanto nossa inércia foi determinada pela atividade de
nossa “máquina de pensar”, em detrimento de nós mesmos enquanto corpos,
carregados de sentimentos e sensações.
Ao convite de nos movimentarmos
em câmera lenta, tivemos de nos fazer conscientes de cada gesto, cada movimento
e do espaço que poderíamos alcançar naquele momento, assim como temos de ter a
mesma consciência dos passos que damos em nossa existência.
Hipnotizando-nos,
torcemo-nos, retorcemo-nos, ora guiando, ora sendo guiados pelo outro. O quanto
somos hipnotizados por circunstâncias (pessoais, políticas, sociais) não
percebidas em nossa vida? Confiamos no outro? Pareceu-me ser o início do
trabalho de percepção daquilo que nos guia e de quais forças deixamos ou não
nos guiar. A confiança no outro é testada.
Aprofundando-nos mais no
trabalho consigo e com o outro (indissociáveis, se pensarmos que o outro representa
também o mundo que nos rodeia), guiamos e fomos guiados às cegas pelo parceiro.
Insegurança, medo, lentidão, entrega, confiança. Oportunizamos o afastamento do
individualismo que assola a sociedade capitalista em que vivemos e
possibilitamo-nos a aproximação do outro e o trabalho no coletivo a partir da
construção teatral que passo a passo fizemos.
Crianças – criativas, originais
e espontâneas – brincamos e lançamo-nos ao espaço... Vivenciamos o lugar do
outro e o nosso próprio ao fazê-lo, prática tão afastada dos nossos bancos
acadêmicos. Como advogar se diferentes realidades não são conhecidas? Como
assumir uma causa como sua, sem empatia, sem colocarmo-nos no lugar do outro?
Vivências e experiências são tão (ou mais) importantes para a vida acadêmica
quanto uma pilha de livros. Elas dão alma ao saber.
Paulatinamente, percebemos que
o teatro representava a vida e uma nova forma de expressão para nossos corpos.
Ao promover nossa percepção de si, refletimos também nosso estar no mundo a
partir do teatro e suas implicações. Das ações – em duplas ou separadamente –
advinham percepções de nosso lugar no mundo e da transformação que nele podemos
empreender. Teatro não é apenas expressão, movimento, mas também mudança.
A proposta de Boal, chamada de
terceira etapa da conversão do espectador em ator, é o Teatro como Linguagem. O
Teatro-Imagem foi explorado sob a forma de um conjunto estático em que os
atores/ autores da escultura geral tinham de formar uma imagem diante da
palavra “despejo”, como possibilidade fática de uma dada coletividade. Um a um
alinhamo-nos, músculos rijos, alma aquecida, posicionando-nos sob a evocação da
palavra e da própria imagem que ia se formando diante de nós. Sustentamos
posturas, que por sua vez evocavam sentimentos e sensações, em uma escultura
que pouco a pouco ia tomando forma. Uns despejados, outros, algozes.
Como atividade final, formamos
uma alternativa ao despejo, em que o coletivo trabalhava na construção de uma
casa. Momento certo para, como um espelho, verificarmos o que nos une e nos
separa. Oportunidade de apreendermos a imagem e transformá-la para um coletivo
organizado. Desta forma, construindo pelo e com o coletivo, vivenciamos a
construção social que tanto almejamos.
Textos base:
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 2 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 124-169.
GONÇALVES, C.S. e outros. Lições de
Psicodrama: introdução ao pensamento de J.L. Moreno. São Paulo: Ágora,
1988.
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