A coluna AJP na Universidade retorna neste ano de 2016 com
uma seleção de textos produzidos para a disciplina tópica (equivalente às disciplinas eletivas de outras instituições)
Assessoria Jurídica Popular, ministrada por Ricardo Prestes Pazello, na
Universidade Federal Paraná, durante o primeiro semestre de 2014. Como primeiro
tema, trazemos a discussão sobre a relação da Assessoria Jurídica Popular com
uma teoria crítica da sociedade – no caso, especificamente o marxismo – e quais
contribuições esses construtos teóricos oferecem à prática das AJPs. O autor,
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira, é graduando em direito na Universidade Federal
do Paraná e participou do MAJUP – Isabel da Silva.
***
As AJPs e uma teoria crítica da sociedade
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira
Entre várias questões que são necessárias para fundamentar
uma boa prática de educação popular e, portanto, da própria assessoria jurídica
popular, uma das mais basilares é a construção de uma concepção crítica da
sociedade, que, se bem realizada, permitirá desde uma satisfatória crítica ao
direito à possibilidade mesma de formular alternativas à realidade atual.
Isso é importante porque, na prática de assessoria junto ao
povo, não basta convalidar-se com o sofrimento deste; urge, se se pretende um
compromisso real com os esfarrapados e as esfarrapadas do mundo, uma explicação
lógica e rigorosa da realidade, que permita compreender o porquê da situação de
opressão e que, então, propicie a possibilidade de pensar alternativas à
sociedade vigente.
Nenhum caminho, até hoje, parece melhor explicar a situação
de pauperismo presente na nossa sociedade do que o marxismo. Marx, n’O Capital,
faz uma cirúrgica análise da construção da riqueza capitalista: em aparência,
ela parece relacionada à mercadoria e à sua esfera de distribuição (gera
riqueza quem compra barato e vende caro); em essência, descobre-se que a
geração de riqueza é impossível sem a compra da força de trabalho alheia, que
produz mais valor do que recebe em salário. Assim, o trabalho, essa capacidade
humana de transformar a natureza humanizando-a e transformar-se a si mesmo
humanizando-se, torna-se atividade repetitiva, alienada, feita tendo em vista
um mísero salário e não a plena realização do ser humano. Os setores burgueses,
para lucrar, precisam utilizar meios diretos (reduções de salários, aumento da
jornada de trabalho, etc.) e indiretos (aumento da tecnologia capitalista e,
portanto, da produção e de suas forças produtivas) de exploração. A sociedade,
dessa forma, deixa de ser controlada por homens e mulheres que buscam
humanizar-se, mas sim por pequenos grupos que, cegados pela busca do aumento da
produção e das riquezas, constroem uma sociedade com prioridades invertidas: o
ser humano passa a ser governado pelo ímpeto do capital de acumular-se
infinitamente, insaciavelmente.
Contudo, o rigoroso método usado por Marx para a apreensão
da realidade não serve apenas para a denúncia dos problemas da sociedade; ele
nos sugere a busca de alternativas para a construção de uma humanidade
emancipada.
Sua atuação política e teórica esteve estreitamente ligada à
organização do operariado: participou em reuniões de seitas socialistas de
trabalhadores franceses, defendeu as revoltas dos tecelões da Silésia em 1844
contra as opiniões de antigos companheiros, participou da Liga dos Comunistas,
atuou durante as insurreições de 1848, teve estreitos laços com o movimento
cartista na Inglaterra, teve parte protagonista na Primeira Internacional dos
Trabalhadores, acompanhou ativamente o breve governo da Comuna de Paris e
fez-se importante interlocutor para os populistas russos em sua luta contra o
tsarismo – para citar apenas alguns casos. Sempre teve tais condutas almejando
aprender com a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras e, dela, extrair alternativas
ao capitalismo.
Lenin, por exemplo, captou com muita propriedade essa
tendência, ao comentar a relação de Marx com a Comuna de Paris:
“Alguns meses antes da Comuna, no outono de 1870, Marx,
pondo de sobreaviso os operários parisienses contra o perigo, demonstrava-lhes
que qualquer tentativa para derrubar o governo era uma tolice ditada pelo
desespero. Mas quando, em março de 1871, a batalha decisiva foi imposta aos
operários e estes a aceitaram, quando a insurreição se tornou um fato
consumado, Marx saudou com entusiasmo a revolução proletária. Apesar dos seus
sinistros prognósticos, Marx não teimou em condenar por pedantismo um movimento
‘prematuro’ [...]. Muito embora o movimento revolucionário das massas falhasse
ao seu objetivo, Marx viu nele uma experiência histórica de enorme importância,
um passo para a frente na revolução proletária universal, uma tentativa prática
mais importante do que centenas de programas e argumentos. Analisar
essa experiência, colher nela lições de tática e submeter à prova a sua teoria,
eis a tarefa que Marx se impôs” [1].
Não é à toa que Marx, após ser influenciado pela Comuna de
Paris, reescreve O Capital, criando sua edição francesa – que ele próprio
recomendou ser lida mesmo por quem já conhecia a versão alemã –, quando é, por
exemplo, desenvolvida e estendida a parte sobre o fetichismo da mercadoria:
esse fenômeno que só terá o fim de seu misticismo quando a denominada “figura
do processo social da vida”, enfim, “como produto de homens livremente socializados,
[...] ficar sob seu controle consciente e planejado” [2].
Logo, a construção teórica de Karl Marx é imprescindível
para a consecução de uma atuação concreta e realmente libertadora das AJPs,
porque, primeiro, explica de forma rigorosa a construção desigual e exploradora
da sociedade capitalista; depois, dá indicações de como construir uma
alternativa ao modo de produção vigente: com um estreito vínculo ao lado dos
movimentos emancipatórios dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos oprimidos
e das oprimidas. Uma teoria crítica da sociedade que explique as razões da
exploração e da opressão, como a propiciada pelo materialismo histórico – que,
certamente, nunca deve isolar-se do diálogo com outros pensamentos críticos –,
então, é um fundamental ponto de partida para pensar em temas caros à
assessoria jurídica popular, como uma crítica ao direito, o estudo da completa
marginalização de grande parte da sociedade e a reflexão incessante sobre a
árdua execução de ações libertadoras que rumam para a construção “da felicidade
que segue caminhando” [3].
[1] LENIN, Vladimir Ilitich. O estado e a revolução. Campinas-SP: FE/UNICAMP, 2011, p. 72,
grifos nossos.
[2] MARX, Karl. O
Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996, p. 205.
[3] Trata-se do final de poema de Roque Dalton sobre Marx,
com “tradução” nossa. Ver: DALTON, Roque. Karl Marx. Em: CHERICIÁN, David
(comp.). Asalto al cielo: antología
poética. 2. ed. Caracas: El perro y la rana, 2010, p. 445.
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