Continuando a publicação
de textos produzidos na disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”,
ministrada no primeiro semestre de 2014, na Universidade Federal do Paraná, por
Ricardo Pazello, apresentamos um texto de Kamila Anne Carvalho da Silva, graduada
em direito pela UFPR e integrante do MAJUP Isabel da Silva. Nele, abordam-se as
possibilidades de uma formação contra hegemônica no direito, a história e a
composição das universidades brasileiras e os conflitos entre a organização das
AJUPs estudantis e os cursos jurídicos, além de discutir meios de resistência e
possíveis contraofensivas da AJUPs dentro das universidades.
***
AJUP e a formação contra hegemônica no direito
Kamila Anne Carvalho da
Silva
A Universidade
brasileira sempre foi um espaço elitizado, surgiu pública e gratuita para que
toda a sociedade dividisse os custos da formação intelectual das elites (o que
não implica que não deva ser pública e gratuita). O curso de direito, um dos
primeiros a surgir e até hoje um dos mais "tradicionais", foi
instituído para formar a administração do novo Estado Nação que surgia,
portanto reservado exclusivamente para os filhos dos grandes latifundiários.
De lá pra cá a
Universidade mudou, mas não estruturalmente. O curso de direito tornou-se um pouco
mais permeável aos trabalhadores e trabalhadoras, ainda que estes e estas
estejam prioritariamente nas pequenas faculdades e centros universitários de
qualidade duvidável. Políticas públicas como o sistema de cotas, vestibulares
indígenas e as recentes turmas do PRONERA, além da abertura de cursos noturnos,
tornaram os cursos de direito das universidades públicas um pouco, bem pouco,
mais acessíveis. No entanto, o conteúdo do curso tem a mesma função que dos
primeiros cursos de direito, defender os interesses da elite do alto da
legitimidade universitária. E faz pouca diferença se o curso é um dos ditos
"críticos", a sala de aula não é capaz de nos fazer refletir a quem
serve esse direito que estudamos. Além disso, a lógica universitária mantém
rígida a hierarquia entre professor — aquele que detém o conhecimento — e aluno
— aquele a quem, como a própria etimologia da palavra diz, falta a luz do
conhecimento. Assim, cabem aos, e as estudantes apenas reproduzir.
Nesse sentido, a
Assessoria Jurídica Popular se coloca como um espaço de produção de saber
contra hegemônico dentro da Universidade, já que se propõe a refletir a quem
serve o direito e o conhecimento universitário e a agir concretamente na
realidade, ainda que dentro de suas limitações. Se pautando pelas demandas
coletivas populares e tendo como suas bases epistemológicas a educação popular,
a teoria crítica da sociedade e a teoria crítica do direito, a AJUP subverte a
função da universidade porque traz pra dentro do sacrossanto espaço do saber as
demandas populares, põe seus integrantes em contato com o conhecimento popular,
os faz pisar no barro e ver gente de verdade, não gente de Academia. É contra
hegemônica também porque é construída por estudantes, ainda que às vezes junto
com professores e professoras, de forma horizontal. A autonomia estudantil é
sem dúvidas uma das características centrais da AJUP, sem a qual dificilmente
podemos ter a pretensão de que ela se torne um espaço de formação militante.
Sem protagonismo estudantil o e a estudante não pensam politicamente os rumos
da AJUP e consequentemente não refletem, ou refletem de forma limitada, sobre a
sua prática, sobre como isso se contrapõe ao que é dito em sala de aula. Sem
protagonismo estudantil não há reflexão sobre a quem serve o direito e o
conhecimento universitário. A AJUP, cabe destacar, é um espaço de produção de conhecimento marcado pela relação entre sujeitos estabelecida com a
comunidade, portanto um conhecimento que traz ao espaço acadêmico as lutas
populares, ainda que pudessem ser muito melhor trazidas pelos próprios sujeitos
luta. Assim, é parte do papel da AJUP fazer resistência à produção de
conhecimento tradicional da Universidade, intrinsecamente ligada aos interesses
das classes dominantes.
No entanto, precisamos
ir além de resistir à forma de produção do conhecimento posta. Uma forma de
fazer isso é traspor a nossa práxis para a produção teórica acadêmica. É
impossível que os membros da AJUP não pesquisem, mas costumamos deixar nossas
conclusões apenas para nós. A existência da AJUP já subverte, por si só, a
lógica universitária, mas levar essa reflexão a pesquisa acadêmica potencializa
essa capacidade. A pesquisa acadêmica ainda permite que usemos a legitimidade
dada ao saber proveniente da academia em favor das causas populares. É
compreensível que exista uma certa aversão as burocracias da produção
académica, aos seus prazos, suas bancas, seus intelectuais sendo prolixos e
usando expressões difíceis de entender. Motivo maior pra que a gente também
interfira nesse espaço, "formalize", nossas reflexões, mas com a
nossa cara, tentando levar as pessoas de verdade pros anais e revistas, as
tratando como sujeitos da produção desse conhecimento. A pesquisa acadêmica
ainda é uma maneira de guardarmos o que tiramos da AJUP para as próximas
gerações, permitindo, que os acúmulos dos núcleos não se percam. É claro que
individualmente, especialmente em suas monografias, alguns membros da AJUP se
propõem a isso, mas a pesquisa na AJUP deve ser uma tarefa coletiva, tocada ao
longo dos trajetos individuais nela, e a muitas mãos.
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