segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A formação de uma casta

A formação de uma casta

(que ajuda na tantalização de um mundo)



Imagem do filme “Pink Floyd The wall” (1982- A. Parker).


O texto abaixo foi coletado sorrateiramente da cabeça de uma desconfiada participante de uma solenidade de entrega da carteira da ordem dos advogados, enquanto a moça recebia o documento quase mítico...

“A sacralização das vestes formais, a ostentação do anel, uma solene promessa. A afirmação das normas enquanto tais como ontologia do mundo. Atos que contribuem para manter a bacharela, recém- advogada, numa ilusão de pedestal, afastando-a - ou tentando afastá-la- dos contornos do mundo de cheiros, cores, sons e também de terra e suor que a cerca.

‘Estamos todos realmente acreditando nestes discursos proferidos do alto daquele púlpito? Justiça, igualdade. Acho que já ouvi isso antes...’

Hostes de bacharéis-zumbis para manter as veleidades do nosso sistema e não só o jurídico. Sistema imperfeito, porque humano. A consciência desta imperfeição, contudo, deveria ser um motor a nos impulsionar, a sempre buscar superar as falhas, as injustiças que percebemos. Mas como percebê-las, se estamos imersos num mundo de ritualizações (e trato do jurídico) que distanciam o ser-humano-bacharel, do ser humano que ele mesmo é, oferecendo-lhe uma imagem distorcida e homogeneizada de si mesmo? Isto termina por refletir na própria visão de mundo que aquele indivíduo tem, já que ele é o ponto de partida de tudo o que (indivíduo-mundo). Imensa contribuição ao solipsismo que parece inerente ao direito.

Claro que nem todos optam por utilizar a nova máscara institucional de modo acrítico- e ao longo da vida podemos utilizar várias delas, umas para esconder e outras, paradoxalmente, para revelar. Mas há aqueles que parecem ansiar anos para obtê-la sem, contudo, preocupar-se em manter viva a face que há por baixo dela. Parecem não notar (e eu gosto de pensar que é um tipo de cegueira momentânea da qual nenhum de nós livre está) que agindo deste modo, contribuem para a manutenção daquelas falhas e injustiças.

‘Como eu detesto estas vestes formais...’

Formalidade sem substância gera permanência do mesmo, numa teia de ilusões que num primeiro momento parece até beneficiar a um determinado grupo, mas que, de fato, destrói a todos com a imobilidade, com a apatia, com o conformismo. A própria morte do novo que nem sequer teve chance de ser cogitado.

Se é que ainda é para se querer o direito e, sim, nós “o temos” no aqui e agora, poderíamos pensar numa forma de ser do direito sem tantos rituais, ou ainda com eles, mas desmitificados, desnudados, com seus participantes mais próximos de tudo e todos. Um rito de aproximação e não de distanciamento como o que se vivencia nos anos de graduação, na formatura ou no recebimento da carteira da ordem dos advogados, como esta cerimônia de agora. E estes são apenas alguns dos incontáveis momentos da ritualização castradora que o direito insiste em impor.

‘Por que eu tive que me submeter a isto?’

Neste ponto é de se pensar na relevância da proposta do Luís Alberto Warat, ainda nos idos anos 1980, de carnavalizar o direito: trazendo elementos da informalidade e espontaneidade do social para os ritos do jurídico. Uma das muitas aplicações possíveis de sua deliciosa sugestão, a fim de “sublimar a parte maldita da cultura jurídica.” (A ciência jurídica e seus dois maridos). A carnavalização como instrumento de se evitar a tantalização do mundo praticada pela permanência do mesmo. Em vez de tantalização, concretização.

Como posso cogitar qualquer esboço de transformação se estou presa a tais rituais absurdos que aclamam o velho como novo, o mesmo como necessário, como inquestionável, como imutável, atando minha mente e entorpecendo-a para que eu não possa sequer notar as amarras que me prendem astuciosamente num emaranhado de padrões de comportamento e linguagem institucionalizada, que confirmam uma hierarquia sufocante e mantenedora de práticas deletérias?

‘Tudo passou como num longo filme ruim. A cerimônia está perto fim, mas o fluxo de pensamentos continua. Agora é hora de receber a carteira e posar para a foto ao lado da minha querida mãe e dos ‘famas*’ que me sorriem... Somos todos ‘famas’ ali? “

E foi isso que se conseguiu extrair da confusão que era mente daquela testemunha-participante do evento. Alguns pensamentos foram perdidos, isto é fato, e outra parte estava initeligível- marcada de sensações, não foi possível transcrevê-las. A mente humana realmente não é um livro para ser lido, pelo menos não linearmente... **


*Para saber sobre famas, cronópios e esperanças, ler o segundo capítulo d“A ciência jurídica e seus dois maridos”, Warat, capítulo que recebeu o nome de: ”Balada para um ‘cronópio’: o canto da sensibilidade”.

**E este texto montado numa sistemática um tanto esquizofrênica teve como norte a própria experiência da cerimônia jurídica pela autora, associada às lembranças da leitura do livro “Carnavais, malandros e heróis” do Roberto DaMatta e mais os escritos do Warat, especialmente “A Ciência Jurídica e Seus dois Maridos”. O subtítulo é uma homenagem ao poeta piauiense H. Dobal, que gostava muito desta incrível palavra: “tantalizar.”

3 comentários:

  1. Muito boa a descrição do zumbi bacharel. E cuidado. É uma classe que se prolifera como vírus.

    Até

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  2. Olá Nayara

    Que beleza de reflexão sobre a "pinguinização", conforme nos lembra a crítica afiada de nosso Warat!

    Imaginemos que esta cerimônia simboliza ainda um compromisso de suicídio teórico, para aqueles que defendem o fim do Estado e do Direito.

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  3. Brigada, aí, Diu e Luiz...

    E eu, que sou a maior braba na internete, não soube colocar um linque para algum vídeo do THE WALL, mas meu amigo Simplício sempre me ajuda nessas horas. Aí embaixo vai uma mostra com legendas em português e inglês:

    http://www.youtube.com/watch?v=GQT7vE3trlY&feature=related

    Xeru!


    Ps. Para meu amigos sulistas vale uma explicação: braba aqui quer dizer que eu sou péssima em tecnologia. Não é braba de zangada. E obrigada pela dica, Pazello.hehehe!

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