terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Uma contribuição de Miguel Baldez


Conselho Popular

Miguel Lanzellotti Baldez *


O movimento pela reforma urbana no Rio de Janeiro, embora algumas referências mais remotas, vai ganhar registros recentes e cores fortes na segunda metade do século passado, quando o capital investido na cidade se torna mais agressivo e especulativo e intensa a migração conseqüente das crises econômicas e do estágio subdesenvolvido da economia brasileira.
Com o inevitável adensamento da cidade, esse povo expulso do campo, repetindo antigo exemplo histórico, foi alojando-se nos espaços sobrantes que a apropriação e mercadorização da terra lhes deixara.. Aqueles que contavam com algum recurso aventuravam-se na compra de lotes, em áreas periféricas da cidade, a grande maioria, porém, sem qualquer meio de sobrevivência, acuada pela ferocidade do poder econômico de um lado, e do outro pelo desinteresse e abandono do poder político, acomodava-se como podia ou em favelas já construídas ou em novas comunidades enfaveladas. Era preciso viver, e para viver, equilibrar-se à beira do abismo social, atendendo, por baixo é verdade e contra o permanente assédio da classe dominante e seus serviçais, as duas necessidades fundamentais da mulher e do homem: alimentar-se e morar.
Na vida não tinham, como, aliás, aconteceu com o povo brasileiro no curso histórico deste eterno projeto de pátria amada gentil, voz nem voto, descendentes que são daquele proletariado que, encorpando o terceiro estado moderno na figuração burguesa, ficou nele encapsulado em normas jurídicas de tutela, controle e repressão. Esse o estado – da formatação política burguesa e composto sobre o direito de propriedade privada, o contratualismo e a subjetivação jurídica individual – que veio repercutir e prevalecer na construção do Estado brasileiro.
Pois neste Estado a classe trabalhadora, universalizada no Ocidente, ou vista nos limites geográficos e sociais do Brasil, só teve fala e presença nos momentos em que, revolucionária, impôs sua vontade. Nesta mal lembrada Pindorama, de rios e florestas "uma terra em que se plantando tudo dá", eu diria se o povo plantasse, são referências gloriosas a Federação de Palmares, um estado negro libertário construído na terra branca da colônia portuguesa; a Cabanagem, luta dos miseráveis do Pará contra o poder colonial; a epopéia de Canudos, duro enfrentamento contra o latifúndio; o Contestado luta cruenta pela posse da terra tomada do povo para financiar a construção da ferrovia São Paulo – Porto Alegre. Essas duas últimas, Canudos e Contestado, desqualificadas pela história oficial como ações místicas, mas respostas em seu conteúdo estratégico das lutas contra o latifúndio e pela posse da terra por Rui Facó em Cangaceiros e Fanáticos (Editora Bertrand S.A.).. E mais perto no tempo Trombas e Famoso. Todas elas envolvendo a terra, ou diretamente pela conquista da terra. No campo e na cidade contra o capital, na área rural por vários movimentos estratégicos, com destaque para o bem organizado e politizado MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, na área urbana, a luta, que carece de melhor organização, como no Rio de Janeiro, dá-se permanentemente contra a insaciável especulação imobiliária, paroxístico efeito do capital sobre a terra, apropriada e transformada em rentável mercadoria.
À massa trabalhadora, estocada em favelas e loteamentos abandonados, como se fossem prateleiras de mão de obra barata, antes exército (de baixo custo) de reserva do capital, depois e agora, com o desemprego estrutural, lixo incômodo e, por isso de variada forma descartável... descartável com urgência, pois o capital, que fez da tecnologia, além das guerras de extermínio, seu principal instrumento de sobrevivência, tem pressa, muita pressa... que um dia – quem sabe? – lembrando o "Seu Oscar" do Oduvaldo Vianna Filho e do Ferreira Gullar, a mais valia pode acabar.
Sufocado e escravizado em subjetivações e relações jurídicas, esta gente, a classe trabalhadora, em bom número excluída da produção desta dita mais valia, não mais logrando sequer a condição de capital variável, sem acesso à posse dos valores de uso, não dispõem minimamente dos meios indispensáveis para satisfazer as necessidades de alimentar-se e, principalmente, morar, e aqueles que conseguem trabalho, independentemente dos itens do IBGE e da boa vontade de bolsas e de um outro bolso mais generoso, continuam submissos à juridicidade imposta ao conceito ético da posse, consolidada pelo direito por Rudolf Von Ihering.
Bom lembrar que o conceito de posse, fundamento da vida, seqüestrado da ética pelo juridiscismo do século XIX, não sofre no Brasil modificação substancial alguma durante o curso do século XX, mantendo no artigo 1196 do Código Civil de 2002/03 a mesma redação do artigo 485 do Código Civil de 1916/17, uma tentativa de Clóvis Bevilacqua de submeter a posse aos efeitos da propriedade privada, tentativa, segundo Pontes de Miranda, frustrada, pois, diz bem Pontes (volume X do Tratado de Direito Privado), quem tem o exercício de fato dos poderes inerentes à propriedade, como dispõem os dois Códigos ( 1916 e 2002), está no mundo fático e não no universo jurídico, e as grandes contradições sociais que explodiram no curso do século XX e avançam neste início do século XXI certamente dão razão a Pontes de Miranda.
Tanto no campo como na cidade embora a cerca jurídica construída em torno da terra para proteger, no campo, antes o latifúndio e hoje a agro-exportação, que agrava o risco transgenizado da soberania alimentar do brasileiro, e nas cidades, como no Rio de Janeiro, a especulação imobiliária, os trabalhadores vão se organizando em movimentos populares à procura de uma nova subjetividade que os identifique na práxis da ação coletiva contra o encapsulamento jurídico da posse imposto, no interesse do capital, pelo estado moderno.
Como no século XIX, quando o proletariado, encarcerado pela burguesia no terceiro estado, lutou seguidas vezes para romper o juridicismo e presentear-se em si mesmo no processo histórico, aqui, hoje, a exemplo de grandes lutas passadas, os excluídos estão a tercer por dentro do estado formas diferenciadas e atuantes de um novo estado em que prepondere uma bem elaborada proposta de democracia horizontal. No campo, com as práticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, depois do V Congresso melhor enformado politicamente para os enfrentamentos institucionais; na cidade, com a multiplicação de sindicatos e associações e federações de moradores, além de entidades não governamentais, as chamadas do terceiro setor, umas poucas de relevo social, ainda não se logrou ultrapassar a fórmula burguesa da representação.


* MIGUEL BALDEZ . Procurador do Estado do RJ Aposentado. Fundador do Apoio Jurídico Popular (AJUP) na década de 80. Fundador do Curso de Direito Social da UERJ. Assessorou a Articulação Nacional do Solo Urbano (que atuou intensamente na luta pela Reforma Urbana e na Constituinte de 1988) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), quando este se organiza no Rio de Janeiro. Atualmente assessora Movimento de Sem-tetos, Movimento em defesa da Moradia em Favelas, Professor de Direito Processual Civil, orientador do NAJUP(Núcleo de Apoio Jurídico Popular) do IBMEC. é Assessor do Conselho Popular no RJ, é uma iniciativa de movimentos sociais e entidades, entre os quais a Pastoral de Favelas, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj).

Um comentário:

  1. A excelente análise do professor Baldéz me faz pensar em o quão negligenciado foi a proposta teórico-prática do direito insurgente. Uma dívida que começou a ser resgatada (e, aqui, louros à dissertação do prof. Luiz Otávio Ribas) mas que ainda muito precisa ser retomada.

    A meu ver, o texto vai nas raízes do problema e coloca os horizontes viáveis do contexto atual: crítica ao capitalismo, sua carapaça jurídica e o anúncio da organização popular, a partir do trabalho e do território. Sintonia privilegiada com o que estamos discutindo no blogue, em termos de novas formas e conteúdos para o ensino jurídico. Todo estudante de direito deve ter acesso a este texto!

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